O delicado sabor das fêmeas fatais (10)

Quinze dias depois do falecimento de Mr. Seth Moore, de manhãzinha, uma garota de cabelos de corte militar, porém azuis, saltou de um Ford Fox vermelho – calçava tênis, vestia jeans azul desbotado com manchas cor-de-rosa e uma blusa de malha azul-celeste. Ela tocou a campainha: três toque rápidos, um toque prolongado, dois toques curtos. Um código?

Então ela voltou para o veículo e sentou-se no capô, cruzando as pernas. Tirou da bolsa de barbante trançado uma lixa de manicure e ficou cuidando das unhas. Em dado momento levantou os olhos para o meu quarto no segundo andar e me acenou amistosamente, um sorriso estampado na face. Gostei daquela atitude amigável, na verdade gostei de tudo na garota. De seus trajes, de seu andar meio desengonçado, dos cabelos tingidos de azul. Pareceu-me uma moça de personalidade libertária, de espírito alegre – ou seja, era uma jovem para se amar. Naquele preciso momento a van dos Correios parou perto da mocinha e fiquei intrigado quando ela recebeu das mãos do carteiro um pacote do tamanho de uma caixa de sapatos – ela agiu de maneira tão natural que ninguém duvidaria que fosse a proprietária da residência. Aliás, e vinda do carteiro quase todos os dias em sua van de Sedex me deixava também muito intrigado. No tempo de Mr. Seth Moore raramente recebíamos cartas ou encomendas. Agora não.

Só depois de alguns minutos me dei conta que eu era o empregado da casa – o único – e assim era de minha obrigação atender a porta, houvesse ou não códigos nos toques da campainha. Dei uma olhada no espelho para ver se estava vestido corretamente com minhas roupas de auxiliar de enfermagem e desci para o andar térreo. No saguão, dei de cara com a moça – Miss Millie a comprimia contra a parede, uma de suas mãos debaixo da blusa de malha azul-celeste afagava o seio esquerdo, um seio miúdo. A garota tinha uma estatura semelhante à minha e devíamos ter o mesmo peso. Ela desvencilhou-se de Miss Millie e me estendeu a mão. Abri um sorriso para a jovem, mas não peguei em sua mão. Senti um arrepio de medo ao constatar que os olhinhos frios de Miss Millie me dilacevam com extrema maldade. A jovem era território proibido.

– Vá pegar a bagagem de Blue Hair – ordenou Miss Millie.

– Para onde devo levá-la?

– Para o meu quarto, é óbvio!

A garota pegou no chão o pacote entregue pelos correios, colocou-o sob o braço esquerdo e com a mão direita me jogou o molho de chaves do Ford Fox, me piscando matreiramente. Fiquei um instante parado observando-as pelas costas enquanto se dirigiam para as acomodações de Miss Millie. Em seguida fui pegar as malas. Eram poucas, duas maletas de mão e uma sacola de butique lotada de peças íntimas. Cheirei o interior da sacola buscando algum perfume especial – não havia aroma nenhum, exceto o de artigos nunca usados. Levei as malas para o quarto, fingindo ignorar o que as duas faziam sobre a cama. Mas logicamente observei de soslaio aqueles corpos se contorcendo como cobras no cio. Miss Millie enganava todo mundo com suas roupas severas e sem contornos – na verdade a mulher era incrivelmente bonita fisicamente, com curvas bem delineadas, seios magníficos e glúteos redondinhos, simetricamente proporcionais. Estava em cima de Blue Hair e ronronava entre gemidos obscenidades capazes de enrubescer até mesmo algumas putas sexagenárias. Debaixo dela pude ver os olhos – cinza – de Blue Hair me fitando com gravidade desavergonhada. Gostei daquele olhar, tive a impressão que a garota adorava ser subjugada. Acho que naquele momento invejei Miss Millie e desejei como nunca ter o corpo de Blue Hair à minha disposição... para fazer sexo. Nem me passou pela cabeça transformar aquele corpo sensacional em alimento!

Deixei as bagagens perto da cama e saí de fininho, fechando cuidadosamente a porta. E agora, o que eu iria fazer? Eu estava desnorteado, sem rumo. Precisava receber ordens para executar alguma tarefa, não podia ficar assim ao léu, sentindo-me desnecessário, inútil, uma pessoa perfeitamente dispensável. E não queria perder o emprego. Então, por iniciativa própria, fui até o carro de Blue Hair e o conduzi para a garagem – tinha certeza de que a garota tinha vindo para ficar. E na função de provedora de prazeres sexuais pura e simplesmente, dela eu não precisava temer qualquer concorrência no trabalho – exercíamos funções diferentes. Se bem que, após ver o corpo de Miss Millie, acho que se a patroa quisesse variar sua opção sexual, eu estaria plenamente disponível. Senti a tristeza apertando meu coração ao ver a imensa garagem apenas com o Cherokee de Miss Millie e o Ford Fox de Blue Hair. E também ódio de Miss Millie por ela haver dado um fim na coleção de automóveis de Mr. Seth Moore.

Resolvi lavar e polir o Cherokee e o Fox Ford. Estava na faina havia mais de uma hora quando Blue Hair surgiu na garagem. Tinha tomado banho, seu corpo exalava um perfume envolvente, cheio de frescor e suavidade. Ela chacoalhou a cabeça como faria um cãozinho poodle, mas o cabelo azul estava apenas úmido, por isso não espalhou gotículas em seu terno masculino cinza-escuro. Isso mesmo, estava usando roupas masculinas, camisa social, gravata vermelha de riscas marrons, colete, meias finas de homem e sapatos bico largo de couro.

– Pare com isso, nós vamos à cidade fazer umas compras – ela disse. Não senti hostilidade em sua voz, apenas a impertinência de pessoa acostumada a mandar sem admitir nenhuma contestação. Fechei a lata do polidor, coloquei-o na prateleira de objetos de manutenção dos veículos, tirei o macacão, as galochas, as luvas – era assim que eu trabalhava na garagem, afinal sou enfermeiro... tá bem, auxiliar de enfermagem... Precisava estar imaculado para qualquer emergência eventual muito corriqueira no ofício de um cuidador – mesmo que já não tivesse um paciente.

– Vamos com qual carro? – perguntei.

– O Cherokee.

– Muito bem.

Estendi a mão, esperando que ela me desse as chaves do veículo. Ela permaneceu estática, me olhando como se eu fosse um alienígena.

– O que foi? – inquiri.

– Acha que eu vou sair com você usando essa roupa?

– O que é que tem a minha roupa?

– Não é nada não, mas me lembra os enfermeiros dos sanatórios.

– Esteve internada em sanatórios?

– Algumas vezes. Vá se trocar...

Concordei com um aceno de cabeça e subi para o meu quarto. Tomei uma ducha para me livrar de algum povável, ainda que sutil, cheiro de suor, depois me barbeei, mesmo que meu rosto estivesse apenas sombreado pela barba, passei uma loção importada que levaria para minha abortada viagem a Rabat – e foi no momento em que guardava o frasco no estojo de produtos de higiene pessoal que a pergunta brotou em meu cérebro: por que diabos eu estava me empavonando daquele jeito como se fosse sair com a gata mais bonita do mundo? Blue Hair gostava de mulheres, se lá no íntimo eu estivesse a fim da garota, a derrota já estava delineada. Mesmo com esse alerta mental, calcei meus sapatos de cromo alemão, calça social de tecido Oxford na cor areia, camisa social branca e blazer cinza-claro – roupas confeccionadas no ateliê de Madame Madeleine. Era a primeira vez que me vestia daquele jeito e eu vou te dizer: gostei muito de estar nos trinques. Se eu fosse uma mulher, ficaria me olhando no espelho até as vistas cansarem.

Fui ao encontro de Blue Hair. Ela me olhou genuinamente espantada, então sorriu. Que sorriso! O rosto dela se iluminava como uma árvore de Natal. Deu-me as chaves do Cherokee. Dei partida e caímos na estrada. Só quando atingimos a rodovia estadual é que Blue Hair me perguntou onde afinal eu tinha arrumado aqueles trajes. Então contei a história da visita que eu e Mr. Seth Moore fizéramos ao ateliê de Madame Madeleine, das roupas sob encomenda, e da minha viagem a Rabat, no Marrocos, que não dera em nada. Contei o que achei que ela poderia saber. Nada disse sobre as festas canibalescas e nem do motivo pelo qual a minha viagem tinha gorado, a saber: a morte de Vandinha, justo quando Mr. Seth Moore a treinava para a função de cuidadora.

– E o que vamos fazer na cidade? – quis saber.

Blue Hair disse que iríamos comprar bebidas e alimentos importados.

– Millie é uma mulher de gosto refinado.

– Há quanto tempo a conhece?

Blue Hair ergueu os olhos para o alto, como se estivesse resolvendo uma complicada equação matemática.

– Acho que uns dois anos, por aí. Mas não sou lésbica convicta, sou bissexual – informou gratuitamente, me lançando um olhar devasso.

No momento quase abri a boca para perguntar se Miss Millie era canibal como o irmão, mas calei-me – uma idiotice como aquela poderia estragar tudo.

(Continua)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 08/12/2013
Código do texto: T4603298
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.