O sutiã maldito

Tenho sessenta e cinco anos, estatura baixa, magro, solteiro, funcionário público aposentado, não bebo nem fumo, sou um sujeito comum que gosta de jogar dominó na praça com velhos amigos e não dispenso um bom truco no barzinho perto de minha casa, fico muito tempo no computador visitando salas de bate-papo ou assistindo a vídeos interessantes no Youtube, sou, ainda, participante ativo na comunidade como secretário da Associação dos Moradores do Bairro São José – poderia haver pessoa mais pacata? Não, não poderia, se eu não guardasse um segredo a sete chaves: tenho obsessão por sutiãs, aliás, ao longo de cinquenta anos consegui furtar impunemente na calada da noite quatrocentos e noventa e nove desses tesouros, geralmente de varais esticados nos fundos das residências ou mesmo invadindo puxadinhos domésticos para fuçar nas roupas postas de molho nas máquinas de lavar. No entanto, eu tinha parado com essas práticas fazia uns dois anos – achei que precisava criar juízo.

O que me fez retornar à ativa foi um sutiã de estilo bem antigo, daqueles que têm a parte interna da concha acolchoado de espuma. Alguém se sentiria miseravelmente atraído por tal extravagância? Numa situação rotineira, nem eu. Mas quando a mulher adquiriu a peça íntima, eu me postava ao seu lado, chupando uma laranja e vi a possibilidade de completar minha coleção – quinhentas unidades em meu poder seria a glória. Estávamos no meio dos camelôs que fazem ponto nas proximidades do terminal rodoviário urbano. Na banca de vestuários femininos havia outros sutiãs do mesmo modelo, bem como calcinhas, camisolas, lenços, bolsas, artigos de perfumaria. O diabo é que a mulher, gorda demais para o meu gosto, sem atrativo algum, resolveu experimentar a peça ali mesmo, escondida atrás de um improvisado biombo de madeira compensada. Entrou com o sutiã nas mãos e saiu com ele no corpo. Aí é que se deu a desgraça. A partir daquele momento o artigo feminino tornou-se poderoso afrodisíaco, um elemento mágico – estava embebido na mais sublime das substâncias: o odor almiscarado da pele misturado ao atávico mistério da amamentação.

Na hora, não me ocorreu um jeito de conseguir o sutiã – às quatro da tarde, um sol de rachar, como é que eu poderia agir? Passei a segui-la. Ela entrou nas Casas Bahia, dirigiu ao caixa para pagar um carnê de prestações, eu ali, fingindo-me interessado num aparelho doméstico. Ela entrou na lotérica para fazer uma fé na mega-sena, fui atrás, fiquei analisando os bilhetes de loteria, negaceando com a vendedora, opinando sob as possibilidades reais de sorteio deste ou daquele bicho e só adquiri algumas frações aleatórias quando vi que a fila para a perfuração dos cartões da mega-sena era muito lenta – esperei a mulher fora da lotérica, sentado num banco do calçadão.

Era uma quinta-feira, semana que antecedia o Dia das Mães, havia uma multidão na rua fazendo compras, negócios, cuidando da vida. Eu tinha por mim que a mulher jamais perceberia que estava sendo seguida. Ledo engano. Ela saiu da lotérica e veio diretamente ao meu encontro. Então comecei a ensandecer. Aquilo nunca havia me acontecido, mas deu um branco na cabeça, eu só conseguia fixar os olhos no busto da mulher, só tinha consciência que debaixo daquela blusa azul-escura com fileiras de botõezinhos brancos estava o sutiã; minhas narinas podiam captar os eflúvios adocicados dos seios envolvidos pelo acolchoado da peça – estava pronto para atacá-la quando o sinal de alerta acendeu em meus miolos: havia uma viatura policial estacionada a uns cinquenta metros dali, entre a Caixa Econômica e uma farmácia, com quatro policiais de olho nos transeuntes. Mirei a mulher medrosamente, esperando espirrar na minha cara junto com perdigotos os mais cabeludos palavrões, mas aconteceu o inusitado, ela sorriu-me, estendeu a mão:

– Como vai, Olívio? – perguntou, toda simpática. Peguei a mão que me era oferecida olhando com perplexidade aquele rosto de lua cheia enquanto tentava ativar na memória os mecanismos de reconhecimento. Sim, ela me parecia remotamente com alguém que fora importante no meu passado.

– Eu sou a Lurdes, lembra? A Lurdes, sua professora de informática – disse sem largar minha mão. Então me lembrei. Há mais de dez anos eu fizera um curso de computação no período noturno e a instrutora realmente se chamava Lurdes. Santo Deus, que metamorfose! A Lurdes de outrora era magra, bonitona nos seus quarenta e cinco anos. Eu tinha dado em cima dela, cheguei mesmo a pedir para acompanhá-la numa noite de verão até sua residência. Ela era viúva e, como os filhos estavam casados, morava só numa casa popular de um bairro da periferia localizado abaixo da via férrea. Ela costumava cortar caminho pelos trilhos. E foi exatamente naquele trajeto que eu confessei minha paixão tresloucada, tentei beijá-la e recebi um tapaço no meio da cara. Ela me chamou de velho sacana – e nossa diferença de idade era de apenas dez anos, na ocasião eu tinha cinquenta e cinco anos. Depois daquilo, nunca mais lhe dirigi a palavra, terminei meu curso de computação sem lhe dar boa noite quando adentrava a sala e não me despedia ao encerramento das aulas.

Agora aquela mulher gordíssima (para o meu gosto) me olhava de uma maneira devassa prometendo delícias carnais e continuava a segurar minha mão, mas que oferecida! Nada como o tempo para nivelar as arestas das vaidades, para corroer o ferro das ilusões – ali nós dois, eu com sessenta e cinco anos, cabelos brancos, ela com cinquenta e cinco anos, gorda, pesadona – naquele momento eu era um sapato velho que servia bem em seus pés que dez anos atrás certamente acertariam meu traseiro com sádico prazer.

– Ah, a Lurdes, há quanto tempo! – exclamei armando um sorriso falso. – Desculpe-me por não reconhecê-la de imediato.

– Não tem importância – ela disse. E justificou minha falha: – Isso é compreensível, eu dei uma engordadinha, uma coisinha à toa, não é verdade?

– De fato.

Ela finalmente largou minha mão.

– Venha me visitar na escola, eu continuo dando aulas noturnas. Se quiser, podemos até ir pra minha casa, eu preparo um cafezinho e a gente põe a conversa em dia.

– Aceito a oferta – disse.

– Hoje eu saio mais cedo da escola, só tenho aulas até as nove e meia.

– Vou estudar o assunto, eu prometo.

Ela acenou-me um adeusinho e foi-se pelo calçadão, antes de entrar numa lanchonete voltou-se e lançou-me um beijinho com a ponta dos dedos. Que vaca! Não aturaria daquela mulher, nunca mais, nem o som da voz. Estranhamente, minha obsessão por seu sutiã intensificou-se. Teria que tomá-lo à força. Era isso. Iria conseguir o sutiã na marra.

*

A lua minguante era uma foice fininha imperando na noite escura. Eu estava escondido no meio de umas altas touceiras de erva-cidreira à beira da linha férrea, tinha na mão uma pedra britada do tamanho de um punho fechado e aguardava o instante em que Lurdes iria surgir andando entre os trilhos. Apesar da temperatura amena, eu sentia o suor escorrer-me pelos sovacos e pela testa, de vez em quando um calafrio percorria meu corpo e uma incômoda dormência se alastrava por minhas pernas dobradas. Lurdes despontou caminhando sobre os dormentes aí por volta das onze horas, segurei firme a pedra que teimava em escorregar na palma da mão molhada e, assim que a mulher passou por mim, saltei em suas costas e desferi-lhe um golpe no lado direito da cabeça, ela tombou silenciosamente e seu corpo se distendeu no chão de bruços, deu um único espasmo e ficou imóvel. Com meu canivetão suíço rasguei sua blusa em pedaços, deixei-a nua da cintura para cima, cortei as alças do sutiã, arranquei-o com um puxão, meti-o no bolso. Eu estava em bicas. Teria matado a mulher? Tomei-lhe o pulso e depois de alguns segundos suspirei aliviado, ela estava viva – eu nunca fiz mal a ninguém, tenho até dó de passar inseticida na minha residência para matar pernilongos, eu jamais viveria com um crime de morte em minha consciência. Lurdes gemeu e penosamente se pôs de quatro nos dormentes – patética figura com os seios imensos balançando como se tivessem vontade própria – e eu tratei de correr antes que ela saísse do atordoamento. Não precisei correr muito, bastou transpor as touceiras de erva-cidreira e me embrenhar no capim colonião com mais de dois metros de altura e que se alastrava por toda a região ao longo da estrada de ferro. Logo cheguei ao asfalto, caminhei uns quinhentos metros pela rua, parei num ponto de ônibus e esperei pelo transporte que me conduziria ao centro da cidade. Lá o meu fusca marrom me esperava num estacionamento público.

*

Peguei meu carro e fui direto pra minha residência, um casarão de madeira. Guiava com uma mão no volante, outra enfiada no bolso, acariciando o sutiã com a ponta dos dedos, captando tal como um cão de faro privilegiado os eflúvios emanando do tecido consubstanciado em poderoso afrodisíaco. Guardei o fusca na garagem, entrei em casa e subi ao sótão parcamente mobiliado, apenas uma escrivaninha com meu computador e, guardados em prateleiras com escaninhos do tamanho de caixa de sapato, os quatrocentos e noventa e nove sutiãs, todos eles preservados em saquinhos plásticos e recheados com sachês de flores de lavanda – eu jamais conspurcaria minhas peças raras com abomináveis bolinhas de naftalina, isso não! Tirei o sutiã recém roubado do bolso, cheirei-o sentindo minha alma voar por regiões fantásticas, absurdamente belas, e em seguida embalei-o no saco protetor junto com os sachês e cuidadosamente o coloquei no escaninho. Pronto! Quinhentos sutiãs, que façanha! Sentei-me à escrivaninha, nunca parava de admirar meu último troféu bem acomodadinho no seu lugar. Estava assim contemplativo há quase meia-hora quando percebi que uma luz alaranjada preenchia o escaninho. Que diabo estaria acontecendo? murmurei. A luz foi ficando mais intensa e, de repente, o sutiã pegou fogo. Em menos de um minuto o fogo já se alastrava pelas prateleiras, lambendo tudo, estalando, devorando o sótão com a voracidade de um animal mítico. Só tive tempo para desabar escada abaixo rumo à sala, abrir a porta da frente e escapulir para o quintal. Cinco minutos depois a casa toda era uma monstruosa fogueira de São João. O calor era tão infernal que tive que atravessar a rua para não sofrer queimadura. Sentei-me no meio-fio e, tão aturdido, nem tomei conhecimento da multidão que invadia as calçadas, as ruas, não ouvi o carro de bombeiros uivando. Uma coisa me intrigava: o fogaréu concentrava-se unicamente na minha casa. Um fogo estranho, com o formato de um cipreste, bem assim, um cipreste daqueles que vemos no cemitério ou nos filmes de terror – só que, por Deus! era um cipreste incandescente.

Quando o incêndio foi debelado o dia começava a raiar. Misteriosamente, só a minha casa queimou. As casas vizinhas não tiveram nem a pintura enegrecida. Zacarias, o presidente da Associação dos Moradores do Bairro São José, sentou-se ao meu lado no meio-fio, passou o braço sobre o meu ombro.

– Sua residência está segurada? – perguntou. Acenei que sim.

– Menos o fusca marrom... Você está vendo? Agora é um punhado de ferros retorcidos. E o pior que ainda não terminei de pagar as prestações ao Isidoro.

– A gente conversa com o Isidoro, pra tudo tem solução – disse Zacarias. – Olha, você está coberto de fuligem, vamos pra minha casa, você toma um banho, eu te arranjo uma troca de roupa do Juninho, acho que o Juninho tem o seu corpo. Você descansa um pouquinho no quarto de hóspedes e depois a gente cuida direitinho dessa bagunça toda.

Zacarias pôs-se de pé, estendeu a mão e ajudou a me levantar do meio-fio. Fomos a sua casa, no mesmo quarteirão que a minha. Recebi o conforto de sua mulher, do filho adolescente e da filha universitária, a bela Vanessa. Zacarias buscou a troca de roupas, me deu uma toalha felpuda, eu fui ao banheiro, tomei banho, vesti-me. Quando estava prestes a sair, minhas narinas fremiram ao detectar um perfume delicioso. Com meu faro peculiar de cão perdigueiro percebi que o olor provinha do cesto de roupas sujas. Fui lá, remexi nas vestimentas até encontrar um mimoso sutiã de seda cor-de-rosa. Ah, Vanessa! Levei-o ao nariz e viajei gostoso pelas vastidões oníricas do paraíso. Guardei a peça no bolso – seria o primeiro sutiã da minha nova coleção.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 04/12/2013
Código do texto: T4598749
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