O delicado sabor das fêmeas fatais (9)

Havia mais de seis meses que tínhamos comido a carne de Vandinha, nossas vidas transcorriam naquele marasmo cotidiano – eu cuidando de Mr. Seth Moore, ele sempre às voltas com seus computadores e telefones a tratar dos seus múltiplos negócios – quando tivemos uma visita inesperada: a irmã do meu patrão. Mr. Seth Moore a convidara, por que eu nunca soube.

Ela chegou num Cherokee azul metálico, aí pelas três da tarde. Apertou a campainha do interfone e lançou um longo olhar analítico pelo jardim, em seguida andou uns quinze metros até o canteiro de tulipas e colheu uma flor. Voltou novamente para a porta de entrada, cheirou a tulipa, fez uma cara enojada, amassou-a com as duas mãos e a jogou no chão. Mr. Seth Moore e eu estávamos a observá-la no monitor da câmara instalada na porta de entrada. A dona era um verdadeiro varapau, muito magra e quase um metro e noventa de altura; trajava um vestido cinza-escuro cuja barra dava nas canelas, tinha as mangas compridas e era fechado até o pescoço – um vestido que seria hilário se não provocasse obscuros medos ancestrais. Não, não estou inventando, pode acreditar. A mulher parecia uma daquelas damas severas do início do século vinte com indevassáveis segredos mortíferos. Tinha uns olhos cinza – os cabelos ajuntados num coque eram louros com alguns fios grisalhos, no entanto ela não era propriamente uma pessoa com muitos anos de estrada, devia ter uns quarenta anos ou talvez menos. O rosto pálido não apresentava rugas – o que a envelhecia de fato era o rosto sisudo e as roupas estranhas.

Mr. Seth Moore apertou um botão no painel ao lado da cama, acionando o microfone:

– Um momentinho! – disse. Voltou-se para mim: – O nome dela é Miss Millie. Vá ajudá-la com as malas.

Fui até a entrada da porta, me apresentei como o cuidador de Mr. Seth Moore, estendi a mão para um cumprimento civilizado. ela me ignorou solenemente. Só apontou o dedo comprido para as bagagens dentro do Cherokee e depois entrou no saguão. Ajuntei as coisas da mulher e segui atrás, ressentido com aquela atitude de humilhante superioridade. Vista pelas costas, Miss Millie parecia um poste, sem bunda, sem curvas, um grande poste enfiado num vestido antigo cinza-escuro. Andamos uns quinze metros, então ela parou e voltou-se para mim, empertigada, o narigão arrebitado farejando as titicas de moscas no forro do corredor:

– Leve as malas para o quarto da ala norte. – A voz dela, mandona, era seca como um galho de árvore morta. Eu balancei a cabeça, submisso. Ela volveu o corpo de louva-deus e dirigiu-se para o aposento de Mr. Seth Moore num caminhar seguro, determinado, próprio de alguém que conhece os mais recônditos compartimentos de casa. Percebi que as visitas da mulher ao irmão se não eram frequentes, pelo menos pareciam bem amistosas – cheguei à conclusão de que os dois até partilhavam de grandes segredos e de vícios formidáveis. Não tive dúvidas: Miss Millie era uma comedora de carne humana. Caminhei para o quarto que ela escolhera. Esse aposento é um dos melhores da casa, fica no segundo andar e é bem arejado, visto que possui janelões que recebem em cheio a brisa das árvores do jardim. Sempre imaginei que o lugar seria perfeito para um pintor de telas por causa da profusão de luz natural. Sentei-me na beira da cama, limpei o súbito escorrer de suor da testa. Um medo instintivo começava a bulir com minhas entranhas. “Eu tô ferrado...” – murmurei observando um ramo florido de acácia batendo ritmicamente no vidro do janelão fechado.

Mas não podia ficar ali curtindo meus medos com a mísera auto-piedade. O dever me chamava. Pus-me de pé, arrumei a roupa no corpo, limpei a cara de qualquer vestígio de emoção e fui para o aposento de Mr. Seth Moore. Miss Millie estava sentada na minha poltrona e conversava em inglês animadamente com o patrão. Sem interromper a frase em curso, ela fitou-me com os olhos marejados de lágrimas felizes, encerrou a elocução e ambos soltaram apoteótica gargalhada – em seguida a mulher apontou-me seu dedo esqueleticamente comprido, fechou a cara e exclamou:

– Vá embora!

Saí do aposento de cabeça baixa como um cão chutado pelo dono. Andei pelos corredores abrindo e fechando portas de quartos vazios sem razão nenhuma, fui para o jardim e sentei-me num banco debaixo de um imenso jequitibá. Daquele ponto eu divisava um galpão grande, de madeira – um celeiro originário de alguma fazenda da qual a chácara fizera parte em tempos remotos. Em seu interior deveria haver ratos, cobras e corujas, eu imaginava. Estava ali me divertindo com fantasias quando ouvi um grito estridente, tão agudo que poderia quebrar copos, como diz a lenda. O grito se repetiu e só então entendi – Miss Millie me chamava. Corri todo afoito até o quarto sem pensar muito, mas com um terrível pressentimento ancorado no peito. Miss Millie rodava em torno do imenso leito de Mr. Seth Moore como se fosse uma galinha bêbada – o irmão estava estirado de comprido na cama, completamente nu e inerte como uma colossal estátua de alabastro. Peguei o estetoscópio e auscultei o coração de Mr. Seth Moore. Então olhei para Miss Millie – que cessara de correr em círculos como doida e estava parada no outro extremo da cama – e abanei a cabeça desoladamente.

Miss Millie, aspirou o ar profundamente e o foi expirando lentamente, como se saboreasse um acontecimento muito especial. Foi nesse preciso instante que percebi o quanto aquela mulher estava representando. Calculei que a dona tinha dado fim à vida do irmão. Por quê? Isso eu não sabia – provavelmente por causa da herança – e nem me interessava. Com Mr. Seth Moore morto, eu estava destinado a ganhar um pé na bunda. A não ser que convencesse Miss Millie a me contratar. Para fazer qualquer coisa. Eu poderia ser um eficiente faz-tudo. Poderia mesmo.

– Quer que eu ligue para o doutor Ariel? – perguntei. Mr. Seth Moore recebia a visita desse médico com regularidade – era um velho de cabeça branca, cavanhaque e olhos lascivos. Depois que realizava os exames de praxe, Mr. Seth Moore pedia para que eu saísse do aposento e os dois ficavam trocando segredinhos e rindo até as lágrimas. Já fazia alguns meses eu vinha desconfiando que o doutor libidinoso era membro da fraternidade dos comedores de carne humana.

Miss Millie disse que ela mesma cuidaria de tudo. Perguntei então, num despropósito absurdo, se continuaria com meu emprego. Ela me olhou de modo incrédulo, como se estivesse à frente do mais cretino dos homens. Eu repeti a pergunta sem me importar com o papel ridículo que fazia no momento – fodido uma vez, fodido mil vezes. Miss Millie deu de ombros e finalmente limitou-se a dizer que depois conversaríamos a respeito de meu futuro como empregado doméstico. Foi assim que ela disse: empregado doméstico. Daí, concluí que realmente ela estava pensando em me contratar como faz-tudo. Fiquei feliz com as perspectivas. Ofereci-me:

– O que a senhora quiser que eu faça neste momento, estou de prontidão...

– Recolha-se ao seu quarto, Biguá.

Demorei um instante para digerir o fato de ela não só conhecer meu apelido, como de usá-lo tão naturalmente – e fiquei satisfeito, agradecido. Respondi:

– Perfeitamente, Miss Millie.

Deixei o aposento do finado Mr. Seth Moore, passei pela despensa, enchi uma sacola com enlatados de feijoada, sopa, carne de porco e de vaca, palmito, ervilha, milho verde, frutas em conseva – figos, pêssegos – e, já no quarto, arrumei tudo no pequeno armário, peguei na estante um livro policial da minha autora preferida, Ruth Rendall, tirei o par de tênis e distendi-me na cama. Eu tinha um monte de coisas para pensar, mas francamente estava me lixando com tudo o que acontecia à minha volta – pelo menos assim eu desejava.

Em nenhum momento Miss Millie precisou de meus serviços. Da janela do meu quarto fiquei dois dias bisbilhotando os movimentos na propriedade. Vi quando o médico, um médico desconhecido, chegou. Vi-o retirar-se. Por muito tempo, debruçado na janela, observava tudo. Observei uns caras fortões carregando primeiro o corpo de Mr. Seth Moore para o hiper-ônibus, depois os móveis de seu aposento para um caminhão-baú branco. Pela quantidade de peças retiradas do local, presumi que o quarto do patrão ficara limpo como um ovo. O hiper-ônibus e o caminhão baú partiram para não mais retornar. No dia seguinte chegou o pessoal da faxina e a casa encheu de vida com o vozerio, as risadas, o som de móveis sendo arrastados e o chuá de baldes de água sendo lançados no chão e nas paredes – assim como o ruído de esfregões atritando com as paredes e pavimentos. Então o silêncio voltou a reinar na casa e eu saí para dar umas voltas pelos corredores, sabendo que era observado por Miss Millie através das câmaras; passeei pelos jardins e depois fui polir os carros antigos da coleção de Mr. Seth Moore. Os veículos haviam sumido. Esfreguei os olhos temendo algum tipo de alucinação – mas era um fato: na ampla garagem só havia o Cherokee de Miss Millie. Descartei imediatamente possibilidade de roubo – carros de coleção são dificílimos de se colocar no mercado de vendas, já que os compradores exigem históricos de peças, origens, relação nominal de antigos proprietários, sei lá, essas maluquices todas. A resposta dos sumiços, portanto, estava com Miss Millie. E não seria eu a tirar satisfações com ela, absolutamente!

(Continua)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 04/12/2013
Código do texto: T4598742
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