*MARIALVA E O CORPO DE MUITAS MORADAS*
Marialva arrumou emprego na casa da madame Janet* e nem por um decreto aceitava ficar no escuro. Dormia sempre com algo a iluminar o ambiente. Sempre se via uma vela acesa onde Marialva estava.
(Madame Janet é uma referência ao filme "A mulher de preto")
A moça chegou na cidade de mansinho, carregava uma pequena mala, cabelo preso em coque, saias longas e cores neutras. Meio magricela, branquinha de dar dó. No rosto sequer um brilho, um batom, nada. Era garota engraçadinha, que sem enfeites passava logo despercebida na multidão. Chegou acanhada e pedindo emprego. Já havia sido tutora de crianças no interior, onde trabalhou com a senhorita Giddens** por um período.
(**a senhorita Giddens é a governanta do livro "A volta do parafuso" , de Henry James)
A história da senhorita Giddens já havia chegado na cidade. Contou-se em boatos que a velha governanta Giddens estava louca. Teve problemas sérios com as crianças que cuidava. Assim que ela foi internada no sanatório , Marialva também deixou a mansão, vindo parar nas bandas de cá.
Na mala carregava pouca roupa, nenhum perfume, nenhum dinheiro e muito medo do escuro. Dizem que Madame Janet não ligou muito para essa estranheza, já que acredita que todos têm seus medos e segredos e não se deve ficar cuidando da vida alheia. Desde que não atrapalhasse o andamento da casa, estava tudo certo.
E a garota sem graça foi ser uma espécie de professora particular do filho de madame Janet, Daniel. Os dois se entenderam. Havia respeito entre eles, e nunca se ouviu um levantar de voz, uma reprimenda, nada. Tudo andava certo, como tinha que ser.
Além do medo do escuro, Marialva também tinha uma vida bem particular. Sumia quase todas as noites e não avisava pra onde ia. Estava sempre à disposição na hora certa, sempre pronta para dar atenção ao garoto, mas não dava satisfação e quase não falava com a patroa. E assim se estabeleceu.
O tempo passou e madame Janet nem percebeu que o filho crescia e só tinha olhos para a professora. Enamorado, passava os dias a espionar por onde Marialva andava. Certa vez, numa dessas andanças atrás dela , o rapaz encontrou Marialva no jardim da casa. Ela cantava uma canção muito triste. Daniel pensou ter visto lágrimas nos olhos da moça, mas era apenas o reflexo do lago naquele rosto tristonho. Ficou hipnotizado ouvindo a cantoria, fechou os olhos par a viajar na melodia. De repente Marialva parou de cantar. Fez-se um silêncio mortal. Daniel arregalou os olhos e deu de cara com a mulher bem pertinho dele. Encarava séria, dentro dos olhos. Marialva não tinha nada cândido naquele momento. Parecia uma velha bruxa, uma medusa mitológica coberta por uma pele que não era a dela. E ele sentiu medo. Um calafrio passou pela espinha, arrepiou os cabelos. Ele até tentou sair correndo, mas tropeçou e se foi ao chão.
O momento de pânico desapareceu. Marialva estava de volta, soltou um gritinho ao ver o rapaz com o joelho machucado e sorriu enquanto brincava de chamá-lo de atrapalhado. Mas o filho de madame Janet não se convenceu, já ultrapassara a idade de dar risadinhas do desconhecido. O medo quase palpável ainda estava ali. Aqueles olhos de loucura não deixaram o pensamento dele. Foi para cama com mais medo do que nunca, e não parava de pensar em tudo o que sentiu naquela tarde.
No outro dia nem quis tomar café com a tutora. Na hora do almoço também inventou uma desculpa qualquer. Ele perdeu o encanto pela professora enquanto a mãe se perdia nas costuras e desenhos que fazia o dia inteiro. O pai, Simon, nem tomava conhecimento da existência do garoto, muito menos da senhorita Marialva, que para ele não passava de um nome.
Daniel cada vez mais assustado passou a também ter medo de escuro. Dormia com uma vela acesa, achava desculpas para se deitar e adormecer próximo à lareira, e mantinha uma lanterna*** por perto. Começou a ir mal nos estudos. Tudo parecia decair ao seu redor. Menos Marialva que a cada dia estava mais bonita, já pintava os lábios, o cabelo tomava brilho e as roupas ficavam mais ousadas.
(A primeira lanterna elétrica foi lançada em 1899 pelo inventor inglês David Misell e funcionava com três pilhas que serviam para alimentar uma lâmpada incandescente).
Numa noite, depois de sair mais uma vez sem avisar, Marialva não percebeu que novamente Daniel perseguia seus passos. Andou atrás dela em cada viela que foi, em cada rua escura, em cada beco sujo. Ela andava como sem saber para onde ir. Sentia no ar um cheiro que a guiava. Finalmente entrou numa casa pequena no fim da rua. Praticamente um casebre, com uma porta grande, com grades enferrujadas. Um muro em frente encobria a escuridão que havia por ali. Daniel se pendurou no muro e olhou de relance para dentro da casa. Umas cinco pessoas estavam por lá. Sentadas em volta da mesa, conversavam animadas. Comiam o que parecia ser carne com muito sangue. Não dava pra ver direito porque a sala era iluminada apenas por velhos e gastos candelabros. Mas assim que firmou a vista ele pode ver a cena grotesca que se desenrolava lá dentro. As pessoas comiam carne sim, carne com sangue. Carne humana. Braços, pernas, até mesmo cabeças estavam em cima da mesa. O garoto quase vomitou ao perceber o que os olhos mostravam.
Num súbito mal-estar pulou o muro e voltou para casa em desabalada carreira. Desesperado nem percebeu que Marialva corria atrás dele. Meio trôpego chegou ao portão de entrada, sem fôlego. Antes de abrir a porta e contar tudo para a mãe, Marialva o alcançou. E veio tomada de uma lascívia indescritível, com fogo nos olhos.
Daniel parou e sentiu-se atraído por aquela mulher que não tinha mais nada de timidez. Marialva agora era sexy, com boca carnuda, lábios vermelhos, o vestido meio caído no ombro estava rasgado. Uma fenda deixava as pernas à mostra. Os cabelos acobreados caiam em caracol emoldurando o colo. Os seios fartos se mostravam através do tecido molhado de suor. Marialva era um convite ao sexo. A pele branca exibia pequenas marcas de dedos e mãos que haviam apalpado aquele corpo. Ela se esfregou nele, falou baixinho no ouvido que não era para ele ter medo, que ela só queria um beijo. E agarrou sua mão. Rodearam a casa, entraram pelos fundos e foram até o quarto dela. Enquanto tiravam a roupa freneticamente, a mulher beijava o corpo dele, mordiscava, lambia. Ele nu não conseguia segurar o desejo que estava sentindo. Fizeram sexo como ele nunca imaginou ser possível.
Entre arranhões e mordidas, o sangue se espalhou pela cama. E eles ficaram por ali, suando e se misturando ao sangue. Ele amou Marialva e não sentia mais medo. Queria explicações.
Depois de uma maratona de carícias e sussurros, numa orgia onde não pareciam dois, mas pelo menos oito corpos se entrelaçando, desabaram cada um para um lado. Languidos ainda acharam força para se beijarem. O gosto de sangue ainda estava na língua dela, e ele não se importou. Queria mais e mais.
A vela que iluminava o quarto de repente se apagou. Tudo ficou escuro. Daniel ficou apreensivo porque nunca mais havia enfrentando a escuridão e Marialva soltou um grito. De terror, de medo, de pavor. Foi como se tivessem apagando a vida dela. E foi mais ou menos isso o que aconteceu. Até ele achar alguma coisa para iluminar o quarto, o corpo de Marialva se desfazia.
No reflexo da lua que entrava pela janela ele pode ver que ela praticamente derretia, se contorcia de dor, e aos olhos dele é como se Marialva se transformasse em outras formas e, às vezes, ficasse meio transparente. Como se vários monstros sobrenaturais quisessem sair debaixo da pele dela. Finalmente Daniel tomou coragem e foi pegar a lanterna que tinha no quarto. Pode passar correndo nu pela sala porque os pais há muito dormiam um sono pesado. De volta à Marialva, viu que ela ainda lutava com um inimigo invisível. Assim que ligou a lanterna, pode ver o rosto dela cansado, mas novamente ali estava uma moça tímida e sem graça.
Ele estava apavorado. Marialva ficou quieta. Mantinha uma respiração ofegante, mas não estava mais desaparecendo. Quase sem voz ela explicou a Daniel que a escuridão sugava o corpo dela. Que a falta de luz a levava embora.
– Embora para onde? Perguntou ele.
– Para longe daqui. Bem longe. Para onde existe o medo e a solidão. Para onde se faz muitas moradas. Onde meu corpo é propriedade de ninguém e qualquer um pode chegar, explicou-se lentamente a Daniel.
Ela contou que ele não teve uma alucinação naquele dia no jardim. Era mesmo uma espécie de velha bruxa má que estava ali, dentro dela. Às vezes ela não tem controle e eles tomam conta dela.
– E o jantar? O que eu vi hoje? Quis saber Daniel.
Marialva contou que era a maneira que “eles” (os iguais a ela) tinham achado para acalmar os demônios da alma. Ao comer carne humana aqueles que habitavam o além se sentiam satisfeitos e não incomodavam muito. O problema é que os fantasmas queriam sempre mais e mais, e é difícil saciar a fome com carne humana.
– Logo aparece alguém para investigar, falou Marialva.
Contou também que a forma de garantir que ninguém iria pegá-lo, apesar do que tinha visto, era ela se apaixonar por ele, para que os matadores do submundo não o vissem como inimigo.
Ele agora fazia parte da tribo.
– Eu não quero fazer parte disso, gritou com nojo, mas ainda louco para beijar e abraçar aquela mulher nua que falava em murmúrio com ele.
– Não? Perguntou Marialva triste.
– Não. Vá embora Marialva, não volte mais.
Ela apagou a lanterna que Daniel jogou no chão e fechou os olhos. Não fazia mais parte daquele corpo. Os errantes do outro mundo tomaram conta dela. O que se passou ali ninguém sabe. Nunca mais ninguém viu Daniel. A mãe ficou louca. Vagueia pela casa à procura do filho. O pai de Daniel morreu, do coração, de repente. Marialva ainda foi vista deixando a cidade num passo lento e de coque no cabelo. Os moradores da cidade juram que depois do ocorrido ainda encontram à noite com uma moça "bem parecida com a ex-professora de Daniel, da casa da madame Janet". Alguns becos amanhecem sujos de sangue e vez por outra somem misteriosamente prostitutas e ladrões sem deixar rastros.
Já a casa de madame Janet nunca mais foi a mesma. Nada se faz no escuro. Quando a escuridão chega, traz com ela sussurros e gritos que deixam qualquer um de cabelo em pé. Por lá existe sempre uma vela acesa.
FIM