O delicado sabor das fêmeas fatais (8)

Então matei Vandinha. Eram onze da noite, eu estava só de cuecas muito tranquilamente na minha cama vendo pela tevê um jogo de futebol quando ela entrou no meu quarto sem bater na porta. Estava linda, o corpo nu sob uma camisolinha amarela deixando à mostra não só as pernocas como metade das nádegas; pulando do decote que descia até o umbigo os dois seios bonitos – deviam pesar uns duzentos e cinquenta gramas cada um – clamavam por beijos, carícias, mordidas, pelo menos eu assim pensava. Saltei da cama sentindo que todo meu corpo fremia de excitação, abracei-a e como preliminares acariciei suas costas quentes, beijei-lhe o pescoço esguio sentindo o cheiro perturbador de seus cabelos negros e ondulados. Ela correspondeu às minhas carícias, sua mão deslizou por minha barriga plana e envolveu-me as genitálias. E caiu na risada, para o meu mais genuíno espanto. Empurrou-me com força, o gesto brusco me fez cambalear, dei dois passos para trás e tombei em cima da cama. Ela ainda ria quando constatei que, mesmo estando tão excitado, meu pênis estava encolhido, dormindo ou morto ali dentro da cueca.

Ignorando meu olhar apatetado, ela andou pelo quarto, pegou na pequena estante um livro, folheou-o fazendo um biquinho depreciativo, em seguida lançou-o no chão, pegou outro volume, repetiu o ritual. Olhou atentamente meu quarto arrumadíssimo, limpo como uma sala de UTI, observou a cômoda com bruxinhas e bailarinas de porcelana, analisou as paredes com reproduções de pinturas de Monet e Cézanne – e algumas telas e gravuras de artistas locais que adquiri mais como incentivo à produção pictórica de nossa cidade. Então exclamou:

– Puta merda, você é um daqueles viadinhos metidos a besta!

Vandinha sabia perfeitamente que eu era muito macho, por que estava assim tão idiotizada? Raiva? Frustração? Desprezo? O que é que a filha da puta estava querendo? E se Vandinha queria me tirar do sério, achou a pior maneira de fazê-lo: ajuntou minha pequena estante e a lançou ao chão. Os livros voaram por todos os lados. Neste mundo só há uma coisa a qual devoto o mais profundo amor e respeito: os livros. Os livros me deram essa cultura satisfatória que o ensino público não foi capaz, me livraram do sentimento de inferioridade. E Vandinha ao jogar no solo minha sagrada estante estava cometendo o maior de todos os sacrilégios. Meu cérebro ferveu, comecei a ver tudo avermelhado, quando dei conta de mim estavávamos no chão e minhas mãos haviam esmigalhado aquele pescoço que ainda há pouco eu beijara – a língua de Vandinha se projetava por entre os dentes, um linguão e tanto, começando a ficar roxo; o quarto recendia a urina e fezes por causa do relaxamento dos esfíncteres. Num átimo levantei-me como que impulsionado por molas, fui andando para trás tropegamente, as mãos tateando o vazio, até que encontrei a minha poltrona de leitura. Desabei no assento e fiquei olhando pateticamente minhas mãos pequenas e me perguntando como é que eu fora capaz de tamanha violência, onde tinha encontrado tanta força para tão formidável esganadura. Nem sei quanto tempo fiquei assim, perplexo, interrogando a mim mesmo – só saí da pasmaceira quando a voz estridente do locutor esportivo anunciou um gol na partida de futebol. Só então consegui entender que tinha um problema monstruoso para resolver. Primeiramente pensei em carregar o corpo para uma das celas do porão e desmembrar o corpo cortando mais ou menos como Mr. Seth Moore tinha feito com a doutora, eu me lembrava perfeitamente dos cortes que ele havia realizado nas juntas. Mas logo refuguei essa ideia, Mr. Seth Moore ficava com as chaves dos cômodos subterrâneos. E se eu comesse o cadáver sozinho? A ideia era fascinante, mas completamente abestalhada, não tinha um pingo de realidade. Fantasiei ainda outras alternativas, como enterrar o corpo no quintal ou pegar um dos veículos na garagem e desovar Vandinha em algum bosque, campo de pastagem ou plantação de soja – tudo maluquice de uma pessoa medrosa. O caminho certo para solucionar a coisa toda era procurar Mr. Seth Moore, ele que deslindasse o dilema... do que afinal eu tinha medo? Bem, a grande verdade é que desde o começo da aventura com Vandinha, Mr. Seth Moore vivia em permanente estado de ventura. O homem transpirava felicidade por todos os poros. Aí eu chego pra ele e digo que acabei de quebrar o seu brinquedinho favorito... Já pensou?

Caminhei pelo quarto, cabeça baixa, mãos entrelaçadas às costas, procurando desesperadamente por uma solução – às vezes nesse deambular eu tropeçava no corpo de Vandinha e não controlava um espasmo de horror, o brotar de algumas gotas de suor na testa. O corpo sem vida me incomodava, interferia em meus pensamentos, provocava reações físicas e, por isso, ergui-o nos braços com dificuldade – não imaginava que um cadáver pudesse pesar tanto, muito mais que uma pessoa viva: talvez fosse em consequência da massa inerme, ou, ainda, apenas uma impressão produzida pela repulsa. Assim, carreguei nos braços aquela carga incômoda, pesada como um bloco de concreto, para minha cama, ajeitei os braços logo abaixo dos seios, uma mão pousada em cima da outra numa posição característica de defundo pronto para o velório. Arrumei como foi possível a camisolinha para encobrir sua nudez descabida num momento tão solene. Quando terminei a tarefa, vi que estava com o pênis ereto, duro como uma barra de ferro. Amaldiçoei-me, fui ao banheiro, abri a torneira da pia, com as mãos em cuia despejei muita água em minhas genitálias – e nada de acabar com a inexplicável ereção. Num assomo desesperado, baixei a cueca, sentei-me no vaso sanitário e nem bem comecei a me masturbar, cheguei ao orgasmo. Não um orgasmo qualquer – expeli tanto sêmen que lambuzei a parede oposta à patente, e que ficava bem distante, diga-se, nessa casa tudo é imenso. Fiquei olhando um tempão o sêmen escorrendo em fios pela parede, era uma gosma lenta, grossa como essas cordinhas de cortina. De uns tempos para cá minhas ejaculações eram descomunais, logo eu, que sempre tive baixo volume seminal. Meu cérebro inteiro era só um ponto de interrogação – como era possível tanto esperma? Como ultimamente eu já me surpreendera com esse negócio de super-produção de sêmen, mais uma vez não encontrei uma resposta satisfatória para a angustiante indagação – assim, novamente limitei-me a balançar a cabeça para desanuviá-la do aturdimento, em seguida fui tomar banho. Fiquei pelo menos meia hora sob o chuveiro, depois me enxuguei e caminhei para o quarto. Vesti meus trajes de enfermeiro, consciente de que a qualquer momento eu poderia tomar coragem, ir ao aposento de Mr. Seth Moore e revelar minhas nefastas ações, conformado com os inevitáveis castigos que adviriam da confissão.

Sentei-me na minha poltrona de leitura e fiquei olhando o corpo de Vandinha sobre a cama. Não creio que passasse alguma coisa importante em meu cérebro – na verdade eu já não sentia qualquer sentimento de medo, de vergonha ou de remorso. Remorso? Não poderia ser atingido por esse sentimento, haja vista que não matei Vandinha conscientemente. O certo é que naquele momento eu estava entrando num estado emocional semelhante ao êxtase. E assim fiquei por muito tempo – olhei o relógio de parede, eram quase quatro da manhã, eu, portanto tinha matado Vandinha há quase cinco horas. Levantei-me da poltrona e fui verificar se a garota estava em rigor mortis. Passei a mão em seu rosto, nas coxas, nos seios. O corpo parecia um bloco de gelo. E rígido. Mas ainda não atingira aquele estágio de estátua de mármore, aqui e ali eu podia perceber pontos carnosos que afundavam sob a pressão do dedo. O que senti ao tocar a falecida? Fome. Eu sei, é monstruoso dizer tal coisa, mas que posso fazer?, é a pura verdade. Era uma fome selvagem, primitiva como a dos neandertais. Aos poucos fui me dominando e finalmente vi-me invadido pela vergonha. Dirigi-me ao armarinho sobre a pia do banheiro, peguei um vidro de opacidade leitosa, de seu interior saquei um cigarro de maconha, grande como um charuto, acendi-o e voltei para a poltrona. Fumei-o todinho, joguei a bituca no chão, pisei em cima e, com os reflexos fragmentados, o raciocínio lerdo e desconexo, cambaleei até a cama, deitei-me ao lado de Vandinha e dormi até às oito da manhã. Aos poucos fui me integrando à realidade até que acordei por completo. E a primeira coisa a me acudir foi o dever de comunicar a morte da garota a Mr. Seth Moore. Olhei a minúscula e potente câmera de filmagem localizada logo acima da porta de entrada e desejei ardentemente que naquela noite ele houvesse tido uma baita insônia e, assim, bisbilhotasse a residência através dos monitores existentes no seu amplo aposento. Nesse caso, ele teria observado o momento em que esganei Vandinha – como havia se passado muitas horas desde o homicídio, meu futuro naquela residência já estaria consolidado. Fiquei um tempão encarando a câmera, depois ajeitei a roupa no corpo e fui me encontrar com Mr. Seth Moore.

Não sabia o que dizer ao patrão quando entrei no quarto, penso que à medida em que observasse o ânimo do homem, as palavras haveriam de brotar como cogumelos em minha cabeça. Essa esperança desapareceu quando meu olfato foi violentamente atacado pela fedentina impregnando o ar. Imagine-se caindo de ponta-cabeça em uma fossa – pois então. Mr. Seth Moore havia defecado – acredito que intencionalmente – em cima dos dois colchões. Não pense que eram excrementos sólidos, oh não! – eram fezes de cor mostarda num estado entre o líquido e o pastoso. O mais assustador, no entanto, eram os seus olhos. Mr. Seth Moore me olhava fixa e intensamente de uma maneira tão esquisita que fiquei paralisado de medo. Depois de alguns minutos me encarando, seus olhos se voltaram para um dos monitores das câmaras que bisbilhotavam a casa inteira – e a imagem mostrava o corpo de Vandinha majestosamente distendida na minha cama.

– Acompanhei tudo.

– Tudo?

– Tudinho. Você fez um ótimo trabalho. Tão magnífico que meu organismo inteiro aplaudiu. Tive orgasmos violentos e caganeiras apoteóticas. Ótimo trabalho, Biguá.

Dei um suspiro de alívio.

– Obrigado – disse.

– Por outro lado, Biguá, você executou a pessoa que iria substituí-lo nos afazeres de cuidador. Dessa forma, retiro sua promoção.

– Não vou mais para o Marrocos?

– Claro que não! Você não matou sua substituta?! Veja só, tanto trabalho pra nada... Já telefonei para a senhora que iria com você para a África.

– E as roupas?

– Que roupas?

– As que foram feitas sob encomenda.

– Ah, as roupas... Ora, as roupas são suas, faça delas o que quiser. Isto posto, é hora de você começar a me limpar.

– Nunca vi tanta merda em toda a minha vida – eu disse.

– Já viu sim. Não me contou que na infância fazia suas necessidades a céu aberto?

– Não era a céu aberto. Tinha uma casinha de madeira em cima da fossa. E vermes do tamanho de dedos fervilhavam no meio das merdas.

– Então já viu muita merda.

– Era merda diferente.

– Merda é merda.

Calei-me. Continuava achando que havia dois tipos de merda. Havia a que era defecada pelos patrões e que tínhamos que limpar, uma merda que gerava dividendos – e a que era cagada pelos seres miseráveis em fossas de vermes vorazes. Diferentes, portanto.

– Depois que terminar a limpeza, traga o corpo da menina para cá, vou te ensinar a maravilhosa arte do desossamento – disse Mr. Seth Moore. Eu, naquele momento, senti que meus sentimentos por ele não eram de admiração nem de desprezo – eram de inveja. Eu tinha inveja de Mr. Seth Moore. A mais límpida, pura e brutal inveja.

(Continua)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 01/12/2013
Código do texto: T4594507
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