O PRÍNCIPE DAS TREVAS
 
 
Antes de dar o texto por encerrado, tecnicamente falando, ele reparou na hora. Passava das 02H00 da madrugada de um calor insuportável; o ar carregado e estático mostrava a impressão de estar dentro de um forno. Era o pior tipo de ar que ele não gostaria de sentir, o corpo suado, como se tivesse viajando entre colunas de fogo até o inferno. Ivan adorava ler livros de ocultismo e terror, sentia necessidade de se alimentar de histórias de satanismo, vampirismo e canibalismo. Atraído por ciências ocultas, considerava-se o mestre na arte de escrever. Imaginava cenários, inventava personagens, convivia com vampiros e demônios o tempo todo. Na construção da criação textual via-se dentro da história que fantasiava. Um dia sonhou ter descoberto o Portal do Inferno, que se abriu como duas línguas de fogo. A cada conto de terror que ele postava no Site de Escritores, inconscientemente sentia-se o mensageiro do diabo. Nos comentários que lia elogiando seus contos descobria ter extraído a essência do lado negro de leitores adoradores de satã. Obturado pela soberba, Ivan queria mais, novos contos de terror brotavam no lado sombrio da sua mente maligna que só enxergava o mal, o sangue era jorrado como uma fonte inesgotável que lhe dava prazer. Havia momentos que parecia ser um deus. Regozijava-se, nunca lhe faltou inspiração, assunto e emoção. Ele queria atingir a plenitude da existência humana explorando a base da escrita na viagem fronteiriça entre a vida e a morte. Ele releu mais uma vez a sua criação. Outra obra lançada aos famintos: O PRÍNCIPE DAS TREVAS QUER A TUA ALMA.
Ivan abriu o site, deu alguns retoques e postou. Tinha certeza que apreciadores do terror aguardavam ansiosos algo diabólico para atingirem o êxtase do mal.
 
Minutos depois, ele observou no local reservado para comentários alguns elogios ao seu texto. Sensações de mistério e pavor começaram a manifestar em meio a onda de palavras de um leitor desconhecido. Parecia um pesadelo quando não se consegue acordar, quando o corpo não se move e não existe voz para pedir socorro...apenas trevas.
 
 _ "Eu, o anjo rebelde expulso do céu e precipitado no inferno vos saúdo meu caro neófito, gosto do teu jeito atroz, funestamente inspirado em mim, do modo que te expressas, quando escreves e mantém atitudes de quem se julga superior e faz alardes das tuas qualidades e proezas com os demônios em volta de ti, não sintas jactação por que a cada conto de terror que escreves eu sempre estou presente, contigo me deito, contigo acordo por que teu templo é o meu templo. Todas as vezes que pensas em satanismo eu estou contigo, quando imaginas uma história de vampirismo eu sou o sangue, quando fantasias o canibalismo quando escreves, me faço fome e sede de sangue. Tu te dedicas e me atrai para ti todo tempo por que não sabes viver longe da minha presença. Tens prestado bons serviços, mas ainda é pouco. Tens se portado como teórico de pensamentos malignos, em breve conhecerás o outro lado da moeda, o que pensas e rabiscas se tornará real na tua curta passagem por este mundo. O texto que escrevestes terá admiração de alguns e repulsa de outros, os aficionados hão de comentar querendo ensinar-te o caminho que deves seguir. Mas não temas, por que muitos brincam de ser diabo sem sê-lo, esses utopistas aventureiros buscam abrigo no vale da ignorância e se perdem na obscuridade das próprias almas. Desconhecem o que é inferno, sentem-se deuses nas palavras que rabiscam. E como o mundo quer se mostrar, eles falam do universo que não conseguem discernir. Tens muito o que buscar aluno. Mas O Portal do Inferno te foi aberto, expandida será a tua sapiência, eu tomarei a tua mente, viajarás no tempo, conhecerás lugares aos quais nunca imaginastes, tens sido meu servo até agora, ordeno que continues como aprendiz incansável, explorando o insondado dom que me aprouve te conceder. Em breve, muito em breve nos encontraremos, me aguarde, ass. O Príncipe"
 
 
Ivan ficou imóvel ao terminar a leitura, não era esse o comentário que queria ler. Foi um choque brutal, uma sensação que nunca havia sentido na vida. Tentou recompor-se. Necessitava sair dali,  manter a serenidade. Precisava sair da Internet, desligar o PC. Ao fazer os procedimentos notou que estava sendo observado pelo silêncio da noite. Reparou o suor frio escorrer pelo corpo, o calor anunciando o ambiente tenebroso. A máquina desligada, na tela do monitor insistia a fatídica mensagem: "Em breve, muito em breve nos encontraremos, me aguarde."
Ele foi até a copa matar a sede, na porta da geladeira o pedaço de papel preso no imã, o recado em vermelho: "Em breve, muito em breve nos encontraremos, me aguarde." Ivan percebeu que foi longe demais, mas era tarde, não tinha saída. Ele estava temeroso, precisava respirar o ar da madrugada triste, lúgubre, pegou as chaves do carro e a sensação sombria rondava a sua alma, parecia o fim do caminho, sentia o gosto amargo na boca, angústia. Ligou o carro acionou o controle e o portão se abriu. Viu o negrume do ritual da dança da noite com as sombras do passado de horror. Envolto em pensamentos se assustou quando alguém bateu no vidro do carona. Seu coração disparou, o mistério nefasto era associado aos seus soluços incontidos. O estranho com roupa negra lhe fez o sinal para abrir a janela. Ivan tomado pelo terror obedeceu achando ser um assalto. O desconhecido jogou um livro negro no banco do carona e se retirou. Havia um recado: "Não abras, até o tempo determinado."
O homem de capuz na cabeça desapareceu como fumaça na funesta madrugada. Na escuridão sombria ele enxergava tudo sinistro, a ausência de vida nas ruas que percorria, tudo carregado e sem esperança, obscuro, confuso. Pressentia o final do caminho, sem amigos, ninguém que pudesse amar, nenhum mendigo na calçada para desabafar e tirar o peso da morte que rondava a sua alma. Ao longe percebeu um outdoor em vermelho, aproximando-se leu a frase: "Em breve, muito em breve nos encontraremos, me aguarde." Ivan fez a volta e retornou, pegou o livro lacrado e não ousou abri-lo. Pediu licença do trabalho alegando problemas pessoais e ficou uma semana sem conseguir dormir; ele estava acabado. Durante muito tempo foi brincar de ser demônio se vangloriando dos textos que escrevia; adorando a si mesmo e alimentando a sua alma com comentários de elogios sobre seu talento e capacidade criativa.
A sua condição agora era de um reles mortal, um verme; viu o pavor se fazer presente nos cantos negros da sua mente. Ivan ficou tão traumatizado que mal se alimentava, foi perdendo o interesse de tudo, naquela semana não ligou o computador.
 
Deitado no sofá da sala, lembrou-se dos tempos de criança quando se imaginava morar nas nuvens. Os seus sonhos foram destruídos quando em sala de aula a bela professora explicou que  dentro da nuvem a velocidade aproximada do vento era de duzentos e cinquenta quilômetros por hora, a temperatura de trinta graus negativos e não havia oxigênio, em poucos segundos o corpo seria levado a morte...O telefone tocou, Ivan não esperava nenhuma ligação; quando atendeu temeu ao ouvir a voz, com as mãos trêmulas anotou o local e a hora do encontro...quando ele imaginou ser um pesadelo o tom daquela voz maligna provou o contrário. Foram os dias mais tenebrosos da sua existência. Fraco, ele pegou as chaves do carro e saiu.
Meia noite e dois, estava no local combinado dentro do carro aguardando a chegada do príncipe das trevas. Rondava-lhe a impaciência por que não tinha certeza de nada. Persistia o peso sobre as suas costas, com 35 anos, o corpo estava cansado como de um pobre homem velho. Ficou envolvido em pensamentos: _tudo poderia ser diferente ( O demônio leu os seus pensamentos e respondeu...)
 
_É verdade... tudo poderia ser diferente...-Ivan deu um salto no banco do carro olhando para o banco do carona e viu aquela criatura sinistra de preto ao lado, cabeça coberta e com a face oculta ...se teus pensamentos fossem bons, se a tua busca fosse o bem certamente eu estaria distante de ti. Mas me chamastes por todo o tempo, neófito.
_ Eu acredito em Deus, procuro cumprir meus deveres...
_Não sejas hipócrita, acreditas em Deus e vives o tempo todo maquinando o mal, atraindo para ti a minha presença com teus pensamentos, pregas a violência quando rabiscas, falas de satanismo como tivesses intimidade de um mestre, quando não passas de um reles mortal.
_ Senhor, eu só li livros de ocultismo e mistérios, escrevi contos baseados nesses escritos, só queria saber por que me escolheu, não sou o único que escreve sobre terror...
_Você tem muito que aprender, neófito. Toda palavra é espírito, a palavra falada ou escrita é a manifestação do espírito, teus pensamentos, as palavras que dissestes e escrevestes fizeram-me estar contigo. Aqui estou. Terás de pagar a tua dívida...-o homem sem face colocou a mão dentro da roupa e tirou de lá uma garrafa, fez um gesto na direção de Ivan.
_ Agora beba até o final até a última gota...
_O que é... (?)-ele perguntou apavorado...-A sensação estranha induziu Ivan beber o líquido quente e amargo.
_Sangue das trevas...está consumado, Omnis cellulla e cellulla
_O o o o...q...q que..é..é..is..isso?
_Toda célula nasce de outra célula que antecede outra célula. Um abismo chama outro abismo. Um espírito chama outro espírito...o espírito que tens chamado tem nome: A MORTE.
_Mas você disse que eu viajaria no tempo, que os Portais do Inferno estariam abertos e...
_Nunca ouvistes que o diabo é o pai da mentira?
_Abra o livro negro que trouxestes, o que estiver escrito assim se fará, tens apenas uma chance de prosseguir a tua jornada...- O homem sem face separou a longa corda de fibra que ele havia deixado no banco detrás do carro sem que Ivan tivesse visto.
_Leia o que está escrito.
_ Mas está escrito em latim...
_Vamos leia em voz alta...-ordenou o homem sem face.
_"quod in inferno autem mortis est per" (Se passou por diabo agora merece morrer)
 
Ivan sempre teve pesadelos, aquele era mais um; mal conseguia respirar, não conseguia se mexer e nem pedir socorro...a voz não saía, apenas sentia aquela angústia na alma e pavor de estar imobilizado...Ivan só lembrava de ter dito algumas palavras em latim...
 
_ O príncipe de negro desceu do carro com a corda na mão foi para o lado do motorista e colocou o laço no pescoço de Ivan, dirigiu-se a árvore mais próxima atrás do carro e amarrou-a de maneira que não se soltasse.  Voltou, sentou-se no banco do carona. O escritor de contos de terror estava imóvel, tinha perdido todas as forças. O homem sem face deu a partida no carro, engatou drive e pisou no acelerador com toda a força...
 
Pela manhã corpo de um homem não identificado foi encontrado dentro do carro no bosque com a cabeça arrancada. A cabeça foi localizada a alguns metros dali, perto de uma árvore e estava sendo consumida por abutres famintos que brigavam entre si. Populares que presenciaram a cena ligaram para a polícia...

Pela morte brutal, o delegado de plantão acreditava em vingança. Alguns suspeitos foram detidos para averiguação.
 

Na semana seguinte um escritor de contos de terror que frequentava o mesmo site, após postar o seu texto leu um comentário muito estranho. Se tratava de algo sobrenatural ou alguém que brincou se passando pelo príncipe das trevas...o escritor não dormiu naquela noite. Começou a ver mensagens, ter visões com símbolos satânicos no monitor e nos cômodos e não conseguiu mais dormir...até que...encontrou na porta de sua casa um livro preto com os seguintes dizeres: "Não abras até o tempo determinado."
                                                                                                                   
 
 
 
 

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Alberto SL
Enviado por Alberto SL em 01/12/2013
Reeditado em 11/10/2016
Código do texto: T4594480
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