O Amor de Isabelle
Pedro dá um forte abraço acompanhado de um suave beijo no rosto de Liliane, olha discretamente em seus belos olhos azuis e se despede carinhosamente. Liliane acena com a mão esquerda e a direita segurando a porta, parecendo não querer fechá-la. No sol tímido das três horas, Pedro desaparece na esquina, entre os galhos de uma linda e velha árvore.
Enquanto isso, Isabelle se diverte com seu pai no enorme quarto do casal após subir alegremente a escada com a linda boneca de pano que seu tio lhe deu de presente. Muito apropriado para uma linda garota de seis anos de idade fascinada por bonecas contos de fadas.
Edu é um homem alto, de aproximadamente um metro e noventa e cinco de altura, cabelos claros, um bom físico pra sua idade de trinta e dois anos. Ao ouvir o chamado de sua esposa, larga a brincadeira com a filha e ao descer a escada, já se encontra completamente fora de si, totalmente dominado pela ira e um ciúme cego e doentio.
- O que eu lhe disse da última vez? - Diz Edu num grito de fúria na frente de Liliane, que se assusta ao ver o marido de tal forma.
- Você agora começou a se esquecer do que fala Edu? Hein? Me responde? - Liliane se defende e com toda razão.
- Você mesmo me disse da última vez que ele poderia vir aqui quando você estive presente em casa. Ou por acaso você não estava? - Liliane agora, ergue seu tom de voz, indignada, andando de um lado para o outro na cozinha.
Edu parece se esfriar instantaneamente, já não é mais o homem furioso e fora de si, que veio aos gritos de encontro com a esposa. Mesmo se roendo por dentro decide virar as costas e deixar a cozinha. Sabia que deixara que Pedro viesse a sua própria casa. Percebera também que podia ter deixado que Liliane soubesse que estava tendo um ataque de ciúmes, algo que ele mesmo achara insensato.
Edu retornou a noite, por volta das onze horas para casa. Estava cansado, um pouco apreensivo pelo ocorrido, mas de alguma forma confiante e decidido. As luzes de sua casa estavam apagadas e se escutava apenas o barulho solene do motor da sua nova freezer na cozinha. Subiu rapidamente no quarto da filha, estava dormindo profundamente, abraçado com sua nova boneca. Deu-lhe um beijo, se virou e retornou a sala. Nem a porta ele fechou, talvez tivesse esquecido.
Preferiu dormir ali, solitário no sofá da sala. Depois de se emaranhar-se em pensamentos mórbidos, conseguiu trazer a si, o tão esperado sono. Ao amanhecer frio daquele calmo inverno que já se entendia ao seu fim. Era nove de setembro, um dia em que Edu sabia que quanto ficasse mais distante da família era melhor. Saiu antes que Liliane e Isabelle acordassem e foi trabalhar. Passou o dia com aquele velho trator Massey-Ferguson 265X ano 91, que o velho Saulo lhe deixara. Mas neste dia em especial o conserto se estendeu por todo dia.
Seus pensamentos estavam o deixando frio, anestesiado, já não sentia mais aquela culpa do ano anterior. Hoje era um dia no qual sabia que sairia da velha rotina. Olhando ansiosamente para o relógio, o mesmo marcava cinco e trinta e três. Largou todas as ferramentas no chão correu para seu carro, não saberia ao certo o próximo destino. Só que precisaria sair urgente daquele local. No caminho ao carro, recebe uma ligação da filha. Isabelle estava com saudades do seu pai e estava ansiosa em vê-lo. Isabelle percebeu que seu pai a tinha tratado diferente pelo telefone, com poucas palavras Edu foi breve e desligou o telefone. Seguiu com seu carro devagar pelas ruas, pois sua visão já começara a embaçar, seus olhos estavam começando a dar aquela maldita coceira e o suor, ele mesmo se perguntava de onde saía tanta água.
Passou em frente de sua casa, na mesma rua, parou o carro, abaixou o vidro. Ofegante, olhou com um olhar vazio, abaixou o vidro e seguiu em frente, virou a esquerda onde passava dentro de um bosque, perto da saída da pequena cidade de Pedras, e desaparecera de vista.
Preocupada, Isabelle tentou ligar para seu pai. Só chamava. Pensando inocentemente que seu pai tinha a deixado por causa da mãe, num momento de medo da falta do pai que amava, ela sai calmamente da sala. Olhou a cozinha e viu que a sua mãe não estava. Talvez estivesse nos fundos da casa fazendo alguma coisa. Abriu a porta da frente e correu com a boneca nas mãos em direção a rua. A Televisão ainda com volume alto, ficou ligada. Sua mãe nem percebera que sua filha tinha deixado à sala. Isabelle correu, tinha certeza que seu pai tinha ido ao bar que costumava ir frequentemente, perto do isolado posto de combustível, logo após o bosque.
Com os olhos lagrimando e sentindo raiva da mãe por brigar com seu pai no dia anterior, Isabelle adentra o bosque pela rua, já ao anoitecer. Olhando ao seu redor, percebeu que estava sozinha e sem ninguém por perto. Uma cidade de seiscentos e quarenta e cinco habitantes, proporciona essa situação.
- Vou buscar o papai, vou dizer a ele que a mamãe não vai mais colocar ele de castigo. - Falou baixinho a Aninha. Já tinha passado ali antes nos finais do dia com sua mãe, quando ela decidia fazer uma pequena caminhada.
Ao ver uma bela flor lilás, enorme e encantadora do outro lado da cerca, numa campina perto das árvores, decidiu parar, pegá-la e levar ao seu pai, tinha visto o gesto em um desenho matinal na tv. Mais adentro, uma outra flor, ainda maior e mais bela.
- Vou levar aquela. Papai vai adorar. - Imaginou a ingênua Isabelle. Dentro do bosque, ela escuta algo mexer os galhos a frente, no seu instinto e com a flor na mão sai correndo com medo, mas se lembra de que ao pegar a flor, deixara sua boneca de pano no chão e que tinha que voltar pra salvar a Aninha. Quando olhou pra trás uma enorme e horrenda criatura segurava em uma de suas mãos a cabeça da boneca e na outra o restante do corpo.
Com uma boca circular, rodeada de dentes pontiagudos e pequenos e com várias pequenas línguas que se mexiam na boca como milhares de cobras em um covil. A criatura humanoide não tinha orelhas e era pálida, sem pelos. Seu corpo era quase que coberto de escuras manchas cinza, Via-se as negras veias por todo corpo que pulsavam forte e por dentro da pele que era de um transparente incrível e macabro, várias coisas, como grandes vermes locomovendo sem parar, sem destino, alimentando-se de algum fluído. Seus pés eram como as de um camelo, enorme. Também era muito flexível e com enormes garras. Nas suas costas, saíam dois enormes chifres que quase se encostavam ao chão, que exalava um pútrido cheiro de cadáver em decomposição.
Antes do seu primeiro grito, foi golpeada no tórax e agarrada pela perna esquerda pela criatura, que em um forte impulso saltou no galho alto de uma verde árvore segurando a menina pelo pé como se fosse uma boneca. Só que esta, sangrava e tinha os ossos das costelas expostos.
Saltando pelas árvores, como um ágil gafanhoto, o corpo de Isabelle se autodestruía nos troncos das árvores. Sua coluna vertebral já tinha se quebrado quase por total. A criatura pulou sobre uma tampa, aparentemente de um poço velho abandonado. Abriu a tampa e saltou com a garota na gélida água. O corpo já sem vida de Isabelle sumiu na escuridão.
Liliane depois de jogar muita conversa fora com Sandra, a vizinha. Estava loucamente procurando por Isabelle com seus vizinhos pela rua da cidade e da casa das coleguinhas de escola. E o telefone de Edu, desligado. Não atendia. Tinha quase certeza que Edu a ignorava. Mandou mensagens, tentou ligar de outros telefones e nada. Mas sua mente no momento era procurar por Isabelle.
Quase nove horas da noite em uma úmida caverna, repleta de ossos de mamíferos e lama se encontrava Edu. Sabia que seu dever estava feito. Ali ninguém a encontraria. Estava possuído. Na verdade, não era o Edu e sim o demônio Ikamana. A criatura que dominava e transformava seu corpo todo ano nesta específica data, fruto de uma maldição, posta por uma velha e desconhecida cigana no qual Edu jogou pedra quando a mesma lhe pediu um trocado na vinda da escola.
- Hodie non obliviscar - Disse a cigana olhando profundamente nos olhos de Edu.
Ele podia ver o brilho negro no olhar da velha cigana. Com medo, saiu em disparada pra casa. Só foi descobrir o que era na mesma data no ano seguinte. Gozava de seus 16 anos quando se transformou em Ikamana pela primeira vez.
No corpo de Ikamana, Edu não tinha domínio. Sabia que estava presente, mas uma fúria incontrolável lhe possuía. Apenas ódio e fome o consumiam. E sabia que não podia morrer. Nada o matava. Seu corpo se regenerava a todo tipo de ferimento. Suas inúmeras tentativas de suicídio não funcionaram das últimas vezes. Já tinha desistido. Sabia que só precisava matar e consequentemente comer algum tipo de carne pra poder ir embora pra casa e ver sua família novamente.
Como não tinha controle de si no corpo de Ikamana, todo entardecer percorria o bosque até o velho poço, se acorrentava todo ano em uma enorme figueira. Mas era questão de algumas dezenas de minutos até Ikamana lhe possuir por completo para ele assassinar o primeiro ser vivo que encontrasse pela frente. O fundo do velho poço tinha uma passagem que ia até a pequena caverna onde se encontrava naquele momento. Ninguém em Pedras sabia. Pois ficava a muitas horas de caminhada para uma pessoa normal conseguir chegar ao velho poço e quem o encontrou, não deu a mínima para saber o que tinha no fundo ou se era profundo.
Degustando da sua primeira carne humana. Ikamana se deliciava com a carne macia da coxa da garota, sua fome incontrolável. Não deixou nem os olhos. Suas dezenas de línguas sugavam o sangue da garota, como se fosse uma mosca em uma sopa. O cadáver já estava irreconhecível.
Era quase nove e meia quando o carro de Edu aproximou de sua casa. A multidão estava grande e todos choravam. A única viatura da cidade e seus três policiais, estavam tomando um café, quando avistaram Edu. Correndo pra saber o que tinha ocorrido, deixou a porta do carro aberta. Ele vestia a mesma roupa no qual saiu pra trabalhar. Abraçou Liliane e ela o explicou o ocorrido. Desesperado, correu nos policias, exigindo explicação do paradeiro da filha, descontrolado foi segurado por conhecidos e amigos.
- Onde está minha filha? Onde ela está?
A procura continuou por toda a noite e se estendeu no amanhecer. O casal já não tinha força. Liliane sabia que a filha tinha sido sequestrada ou estava morta em algum lugar. Edu disse a Liliane que estava na margem da represa Monia, pensando no que tinha feito, decidiu ir passar um tempo sozinho. Como ela sabia que era de costume do marido ir até lá quando se sentia culpado ou quando queria ficar sozinho. Já tinha se acostumado. Nunca e ninguém desconfiara de Edu. Todos o conheciam. Era incapaz de assassinar a própria filha. Ele a amava mais do que ele próprio. Tinha quebrado a perna dois anos atrás pra salvar a filha de um atropelamento em frente do mercado. E como foi constatada a marca de pneus e rastros de Edu na represa. Não tinha sequer um pequeno motivo pra tal ação.
Em um funeral simbólico, Pedro, o pai de Isabelle chega com os olhos inchados, parecia está chorando há semanas. Deu um abraço em Liliane e cumprimentou Edu. Sabia que foi um pai ausente um por um tempo, mas estava tentando se aproximar da filha que viu crescer muito pouco. Desde recém-nascida, Edu a criava. A amava como sua filha, e Liliane nunca duvidou do amor paternal de Edu. Mas com a procura anos depois do verdadeiro pai, o próprio Edu decidiu deixar a visita de Pedro, que vinha geralmente dois domingos por mês, pois morava em outro estado. Por algum motivo Edu entendeu o erro de Pedro e sentia até de certa forma um pouco de pena dele, totalmente contrário do pensamento de Liliane, que sempre insistiu que a aproximação de Pedro prejudicaria Isabelle. Mas com as constantes visitas de Pedro, ainda mais as últimas, Edu já estava nutrindo um profundo e perigoso ciúmes de Pedro. Não demonstrava em nenhum momento. Apenas duas semanas atrás, na ultima visita de Pedro, ele questionou sobre a intimidade dele com Liliane. Com todo ódio que nutria de Pedro e o medo constante de perder Liliane, o teatro que vivia com Isabelle tinha que melhorar. Sabia que com o amor eterno de Isabelle, Liliane nunca o deixaria. Por pior que acontecesse, ele sabia que a felicidade da filha vinha em primeiro lugar.
Mas naquele dia, de fato Edu, sabia que veria Pedro na sua casa, pela última vez. Se livrou de um problema no qual pensou nesses seis anos ser sua carta na manga, sua salvação. A Isabelle.
O tempo passou e seu casamento ia de mal pra pior. Liliane não conseguia mostrar um sorriso, sua tristeza era profunda, imensa. Suas tentativas de suicídio fracassadas, as permanentes visões que tinha da filha brincando com o pai e dos doces abraços da filha, eram constantes em seu mundo de agonia e aflição.
Percebendo que Edu tinha a perdido, pois até internada Liliane tinha sido. Era tratada como uma louca. Sua cabeça tinha sido raspada e sua magreza era extrema. Liliane estava irreconhecível. Talvez doente.
Arrependido, certo dia Edu deixou um bilhete dizendo que sabia onde o corpo de Isabelle estava sobre a cômoda.
“Amor, me encontre na represa, sei onde está o corpo de nossa filha. Você precisa saber a verdade. Não posso mais te ver assim. De alguém que te ama. Edu”.
Como uma bala que vem em sua direção, rapidamente Liliane soube por instinto ou por algo sobrenatural que tinha sido Edu.
- “Ele a assassinou. Só pode. Como não pensei nisso antes. Como? Estava cega de amor?”
Os pensamentos de Liliane não cessavam. Quase num estado de insanidade mental, ela correu ao fundo do quintal. Era uma tarde desolada de inverno. Pegou o machado que estava no chão há alguns dias, segurou firme, entrou no carro de Edu e acelerou rápido rumo a represa.
Quando passava no bosque, veloz no carro. Pode ouvir uma voz serene vinda do banco de trás do carro. Uma voz que parecia vir de algum sonho.
- Me ajude mamãe...
Num reflexo, Liliane viu pelo retrovisor interno do carro sua filha sentada, com uma boneca nos braços. Cadavérica, abaixo da cabeça, ela estava totalmente dilacerada. Isabelle sorriu.
Uma freada brusca ecoou pelo bosque.
- Estou louca? O que está acontecendo comigo? Sim filhinha, mamãe vai te ajudar querida, sei que foi o Edu, eu sei. Você perdoa a mamãe?
Acelerando o carro rumo à represa, Liliane acreditara que a visão que teve de Isabelle, era real, tinha que ser.
Anestesiada por sua crença. Encosta o carro na beira da água. Pega o machado e sai do carro. Via um vulto, um pouco distante no meio da tênue escuridão. Sabia que nesse "Nove de Setembro" vingaria a morte de sua filha.
Fim.
Conto Republicado.
L K Santos