A kiss may ruin a human life.
- Oscar Wilder -
 
1
 
Ao sair pelo portão de ferro, Bruno se benzeu por duas vezes e apressou o passo. Estava em um local completamente desconhecido. Havia chegado ali há duas horas. Entrou na casa de Helenice, fez amor rapidamente com ela, e com mais pressa ainda, vestiu-se, conversou um pouco e foi embora.
 
Seguindo as instruções dela, enquanto ajeitava sua calcinha sobre as pernas longas, Bruno saiu pelo beco com passos apressados. Viu-se numa enorme mistura de escuridão e vazio. Podia ouvir algumas vozes vindas das casas, algumas risadas. Mas ficava nisso. O resto era silêncio. Até um pouco mais a frente...
 
Numa espécie de praça, ao se aproximar mais um pouco, pode escutar batidas de funk. Bem ao lado de onde seria um ponto de táxi, acontecia um baile funk sob a observação de alguns policiais militares fardados. Bruno se acalmou. Sentiu-se seguro. Mas não via condução. Motos passavam correndo de um lado para o outro, com garotas de bundas enormes na garupa. Táxis passavam lotados, e não voltavam. Ônibus... Esses nem sinal de vida davam. O mundo parecia parado ali. Não havia saída... Quer dizer, havia uma saída. Uma única saída. Que na verdade também tinha sido a entrada. Andar pela rua reta, até chegar à longa rua que beirava o Cemitério.
 
Não. Ele não queria andar. Ainda mais andar por quase dois quilômetros, numa  rua completamente escura e deserta e que, pra completar a morbidez, fazia paralelo com o muro do cemitério. Estava começando a temer por sua noite. Não conseguia achar modos de sair dali. Pedir carona a algum funkeiro? Não!  Pedir carona a algum policial? Não, eles debochariam dele, e ainda pegariam seu dinheiro. Bruno estava sem opções.
 
Mais quarenta minutos se passaram, e um ônibus surgiu ao final da rua de paralelepípedos em frente à praça. Ele ergueu as mãos para o céu, e fez sinal mesmo com uma distância considerável. Um sorriso surgiu em seu rosto, o nervosismo foi passando... Porém o ônibus dobrou a esquina antes de passar pela praça. Bruno viu sua chance de sair dali ir embora. Sentou-se em um banco de concreto e ficou observando a movimentação no baile funk. Mulheres bonitas, com traseiros enormes, rapazes com cordões grossos que brilhavam muito com as luzes dos carros e motos que não paravam de chegar.
 
Bruno pensou em comprar uma moto, e também pensou em como ajudaria ter uma naquele instante. Nessa mesma hora, resolveu tomar coragem e começar a caminhar pela rua escura. Também pensou em voltar à casa de Helenice... Desistiu... Resolveu realmente caminhar. Diversas orações iam surgindo na sua cabeça. Por várias vezes fez o sinal da cruz. Não lembrava de ter passado por ali na ida. Não lembrava de ter visto uma linha de trem cortando a rua que os carros andavam. Mas a desculpa era por estar escuro demais.
 
Caminhou mais um pouco e pode ver uma carrocinha se aproximar lentamente, bambeando para os lados com o peso das bolsas e cestos pendurados nas laterais. Uma senhora negra e gorda empurrava com dificuldade, tendo como companhia um vira-lata de cor mel, e com uma mancha redonda branca em redor do olho esquerdo. Bruno respirou fundo, estava na esquina do cemitério. Apressou o passo e se aproximou da carrocinha.
 
- Boa noite, querida! – cumprimentou fazendo a mulher parar de olhar para o chão e encará-lo. – A senhora sabe como faço pra pegar um ônibus, táxi... Kombi?
 
- O que tá escrito? – perguntou a mulher olhando na direção do busto de Bruno.
 
- Perdão, senhora? Num entendi...
 
-O que... Está escrito? – perguntou outra vez a mulher, agora apontando para o centro do peito de Bruno, com seus dedos trêmulos e sujos.
 
Surpreendido, ele deu um passo para trás e olhou na direção em que ela apontava. Ela queria saber o que dizia a frase em inglês que estava impressa na camisa dele. Ele então sorriu ao entender.
 
- “Um beijo pode arruinar a vida humana.” É de Oscar Wilde.
 
Ela sorriu e balançou a cabeça. Depois, ergue-a e encarou Bruno. Ele então deu outro passo para trás e quase tropeçou no vira-latas. A mulher não possuía o olho esquerdo. Havia um assustador vazio, um espaço negro, sem o globo ocular. Apenas um vazio oco. Sem vida.
 
- Um beijo pode arruinar... Não só um beijo. O sexo! A fornicação! Coisas demoníacas! Ali! – disse ela apontando para o cemitério à frente. – Ali sim, todos se tornam iguais. Pecadores! Fornicadores...
 
Ao longe, Bruno viu um táxi se aproximar, e temeu que ele desse meia volta. Cumprimentou-a e saiu correndo.
 
- Aonde vai, moço? O caminho num é por aí...
 
-Preciso pegar aquele táxi...
 
E continuou correndo.
 
A mulher balançou a cabeça e encarou seu cão.
 
- Esses jovens hein, Ulisses? Cada vez usando mais drogas... Pecadores! O Demônio vai levar as almas de todos eles...
 
Bruno continuou correndo até que o táxi parou de frente. Os faróis se apagaram. Enquanto corria, ele olhava para as enormes imagens de anjos e querubins que ultrapassavam a altura do muro do cemitério. Eram delicadamente assustadoras, e aquela escuridão, a tensão de estar em um local desconhecido, às margens de um cemitério, causava-lhe aflição.
 
Aproximou-se então do táxi. Os faróis voltaram a se acender. Respirou fundo aliviado. Pelo lado dos passageiros, se esgueirou pela janela ofegante. O motorista continuava olhando para frente. Seu nariz era adunco, e a ponta fazia uma curva grotesca, como se fosse o bico de um gavião. Bruno estranhou, quis desistir, mas já era tarde. O motorista o encarou com olhos perdidos.
 
- Noite estranha, não? – perguntou o homem com voz suave e deixando escapar o hálito de tabaco recém-fumado. – Esse lugar não tem um som sequer. É como se estivéssemos no espaço, não?
 
Bruno sorriu sem graça. Observou o motorista por mais alguns segundos, o suficiente para reparar sua aparência estranha. Olhos exorbitados. Não muito, mas o suficiente para parecerem bizarros. Boca carnuda e com lábios sem cor, empalidecidos, cinzas, talvez pelo excesso de fumo. Estava todo vestido de preto, blusa social preta, calças pretas, e com os botões da blusa desabotoados até os peitos, onde era possível reparar um grosso cordão de prata com o pingente de uma caveira de cristais na ponta. Seus cabelos eram encaracolados e compridos até o ombro. Brilhavam pelo excesso de gel, e não escondiam a careca lustrosa que o homem possuía sobre a testa.
 
- Para onde o senhor vai, senhor? – perguntou o homem.
 
Para qualquer lugar, mas não contigo!” pensou Bruno.
 
- Vamos, moço? Num faz bem ficar parado na frente do cemitério à uma hora dessas. Pra onde o senhor vai?
 
- Eu... Tem como me deixar na Avenida Brasil? Só quero sair daqui para pegar um ônibus! Aqui é tudo escondido...
 
- Sim! Escondido! Coragem sua andar por aqui numa hora dessas! Coragem mesmo! Um lugar cheio de becos, encruzilhadas... Pode ser perigoso.
 
Bruno sentiu um vento frio passar por dentro de sua camisa. Olhou rapidamente para trás, e estudou o local ao redor do táxi. Tinha a estranha sensação de estar sendo observado. Encarou novamente as imagens do cemitério. Encarou novamente o motorista que, por sua vez, havia tornado a encarar o horizonte, com seu olhar perdido e esbugalhado. Resolveu então arriscar. Entrou no táxi. Benzeu-se mentalmente outra vez antes que o motorista desse a partida.
 
2
 
Os primeiros cinco minutos dentro do táxi foram silenciosos. Ambos com os olhares fixados no caminho à  frente do carro. No deserto, na escuridão que os faróis quebravam por alguns centímetros adiante. Foi quando o motorista deu uma gargalhada estridente, e que parecia não parar mais. Bruno o encarou pelo retrovisor dentro do carro.
 
- Acabei de colocar uma puta pra me chupar! – disse ele sem qualquer inibição. – simplesmente se abaixou, abriu minhas calças e me chupou a puta!
 
Após contar, tornou a rir estranhamente. Bruno sorriu mais uma vez sem querer, apenas tentando parecer simpática à tamanha estranha criatura. Rezava silenciosamente pedindo que não lhe acontecesse nada. Mas as orações foram cortadas por mais uma gargalhada.
 
- Gozei muito. Ela ficou com a cara lambuzada e depois, imagina só, amigo, depois quis me beijar!... Eu disse: Vá pra porra!... É mole?... Adoro dirigir pela noite. São umas delícias as coisas que acontecem, amigo! É... Uma delícia...
 
Bruno começou a sentir um odor estranho. Um cheiro que lembrava muito o cheiro dos becos próximos à Central do Brasil. Urina com cocô, um cheiro cítrico, que parecia queimar as narinas. Estava começando a ficar incomodado, e os muros do cemitério pareciam não ter fim. Pareciam se estender por toda lateral. Não lembrava de terem sido tão longos na  ida. Mesmo assim, se arrependia de ter entrado naquele carro.
 
O motorista então parou de rir e respirou fundo. Bruno encarou seus dedos. Eles pareciam maiores do que dedos normais. Unhas escuras, como que todas com sangue pisado. O cheiro de merda só aumentava.
 
- Coragem sua andar por aqui numa hora dessas! Coragem mesmo! Um lugar cheio de becos, encruzilhadas... Pode ser perigoso.
 
- O senhor já disse isso! – comentou Bruno impaciente.
 
O motorista alisou o volante com os dedos. E girou as mãos sobre ele algumas vezes. Depois escarrou para fora do carro.
 
- Cara, tem certeza que esse é o caminho certo? Esse muro tá muito longo não?
 
-Esse cemitério é enorme. Tem mais de duzentos anos! Esse muro demorou para ser construído... Agora ele mantem as almas presas lá dentro! É lindo, não?
 
Eu não pedi uma aula de história!” pensou Bruno.
 
- O senhor acredita em almas? Em espíritos?... Em demônios?
 
- Eu acredito que esse muro já se prolongou demais... - Nesse instante, Bruno notou que o taxímetro estava parado. Não havia valores. Estava zerado desde então. – Ei... Porque diabos o taxímetro não tá funcionando? Que porra é essa?
 
-Ei! Calma, Bruno! Calma!... É só um detalhe! Para onde você tá indo não tem preço fixo, é corrida pequena, rápida, indolor...
 
O coração de Bruno parou de bater por alguns instantes. Era impressão sua, ou aquele homem estranho, parecia ter saído de um filme de Tim Burton, havia acabado de dizer seu nome?
 
3
 
- Pare a porra desse carro! Eu quero descer! – gritou Bruno se agitando no banco. – Pare o carro, eu quero descer, porra!
 
O motorista permanecia imóvel, calado. Apenas sorrindo. De repente, freou.
 
- Vai descer, Bruno? Desça! Vá! Desça do carro e volte correndo para a casa de Helenice!... Oh, Helecine! Que pernas, não? Que bundinha! Adoraria que ela me fizesse um boquete enquanto dirijo!
 
Aquelas informações deixaram Bruno mais aflito. Como era possível aquele homem saber tudo aquilo? Será... Será que alguém o havia seguido? Que alguém havia lido suas conversas com Helenice pelo Facebook? Agora o carro estava parado, mas suas pernas não tinham coragem para se movimentarem. A escuridão tomou o local. dentro do táxi, apenas os olhos esbugalhados do homem eram possíveis de serem vistos.
 
-Desça! Siga pela rua do cemitério, sob os olhares dessas estátuas! Elas estão loucas para te ver mais de perto. Olhe para elas, Bruno! Onde está sua educação? Cumprimente-as!
 
O rapaz virou seu rosto receoso para o lado direito. Não acreditou no que via. Sob o muro, estatuas de pedra sorriam. Algumas se seguravam para ver mais. Todas se moviam como zumbis, pareciam sorrir, e se penduravam sobre o muro de concreto, ávidas por um pouquinho de espaço para ver Bruno.
 
- Um beijo pode arruinar a vida humana!... Um beijo pode arruinar a vida humana?... Bonito isso, né?... Oscar Wilde... “A vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos.”... Ele também disse isso, Bruno. Você sabe bem, num é? Adora Wilde, e adora ver os momentos deliciosos da vida, num é?... Quase duas da manhã, você deixa sua filhinha de seis meses, sua esposa com pneumonia em casa com sua mãe, e vem transar com Helenice!...
 
- Você não sabe o que está falando, seu idiota! Quem é você? Porque pensa que sabe de tudo sobre minha vida?
 
- Vai, Bruno! Isso! Vai Bruninho... Com força! Isso! Isso!... Como Helenice grita, num é?... Os vizinhos devem ter escutado! Ah devem ter escutado! Piranhazinha divertida essa... Já disse que queria que ela me fizesse um bo...
 
- Qual o seu problema? – gritou Bruno dando um soco no porta-luvas. – Qual a porra do seu problema?... Fique longe de minha família! Não ouse se aproximar da minha filha!
 
- Longe? Bruno, eu estou sempre por perto. Quem fica longe de sua família, quem é desprezível, rato imundo... É você! Comer o rabo de um travesti durante uma madrugada em que sua mulher estava parindo... Isso é ser um bom pai?... Fugir na madrugada para fazer sexo com mulheres fáceis... Isso é ser um bom homem? Não sou eu quem tenho um problema, Bruno!
 
O rapaz estava com medo. Tentava disfarçar, mas estava com medo. O carro ali parado, sem nada ao redor. E a cada palavra pronunciada, as estátuas e imagens se moviam excitadas sobre o muro. Reagiam como uma plateia.
 
- O que você quer? Quem é você?
 
Os olhos do motoristas se viraram para o Bruno. Agora eles estavam amarelados, como se tivessem luminosos. Pareciam faróis de fuscas antigos. Um brilho fosco, sem vida, mas ainda sim um brilho. Ao sorrir, o homem revelou seus dentes pontiagudos. Seus dedos se envergaram sobre o volante.
 
- Bruno! Bruno! Bruno!... Sua mulher e sua filha não precisam de você. Sua mulher sabe de suas putarias, mas num faz nada pois é fraca, se sente dependente. Mas não! Ela não depende de você. Eu avisei a Ele, que criar tais criaturas era desnecessário. Avisei que éramos bons o suficiente, mas Ele queria mais. E o que Ele fez? Criou aqueles que hoje viram as costas. Aqueles que hoje se matam entre si, e depois mostram o cú para eles. Nos chama de traidores, mas vocês... Vocês sim traíram a confiança Dele!
 
- Abra a porra dessa porta! Eu quero sair! De quem você está falando seu filho da puta?
 
- Você sabe muito bem! Você só num quer aceitar...
 
Lá fora as estatuas estavam ainda mais excitadas. Gritos de “Traga ele para cá!”, “Venha para perto de nós!”, “Queremos um abraço, Bruno!” Era possível ouvir. Bruno num conseguia acreditar no que via. O motorista continuou sorrindo.
 
- E ao notar a merda que havia feito, Ele me deu essa missão! Cuidar dos porcos! Dos traidores... Sim, Bruno! Ele também sabe virar as costas para vocês! Assim como vocês viram as costas para Ele!...
 
- Quem... É... Você?... Deixe-me ir!
 
De repente, as portas do táxi se destravaram. Ele não parecia acreditar, mas o clique mostrava que as portas haviam sido destravadas. Sem pensar duas vezes, Bruno abriu-a e correu o mais rápido que pode pela rua escura. As estátuas gritavam. Pareciam torcer por Bruno. E ele continuava correndo, sem olhar para trás. a rua parecia longa, e se tornava ainda mais escura. De repente, parou incrédulo. Estava exatamente na frente do táxi novamente, e no muro do cemitério, por todo seu prolongamento, havia escrito “Uma FODA pode arruinar toda a humanidade”, incessantemente repetida. E, na porta do táxi, com uma lata de spray de tinta nas mãos envergadas, estava o motorista, sorrindo, com olhos amarelados. Gargalhando como se fosse um vitorioso.
 
- Para onde o senhor vai, senhor? – perguntou abrindo a porta do passageiro.
 
Bruno começou a chorar. Sua vida passou diante de seus olhos. As noites de sexo fora do casamento. Sua esposa doente, sua filha chegando em casa recém-nascida, as mentiras que contava, o sexo com Helenice, o sexo com outros homens, e por fim, como fim dos flashs, ele ali, cercado de estátuas e com aquela estranha figura, que agora parecia estar pegando fogo. Com um sorriso assustador, olhar cortante, e que exalava um estranho cheiro de podre.
 
4
 
As rodas da carrocinha estavam enferrujadas, mas aquele ranger estridente delas não a incomodavam. Enquanto Ulisses a acompanhava mais à frente, cheirando as lixeiras procurando por algum resto de comida, a sua dona andava lentamente, sentindo o sol queimar sua face. Notou uma movimentação estranha mais a frente. Carros de policia se amontoavam na porta lateral do cemitério. Ela apressou o passo, num era algo comum de ser ver logo cedo.
 
Ao se aproximar, viu uma mulher ajoelhada ao lado de um corpo retorcido. Parecia um homem, e seus membros estavam virados e torcidos de tal maneira, que não era possível descrever ou refazê-los. Todos estavam assustados com o que viam. Equipes jornalísticas tentavam ter detalhes do que poderia ter acontecido. O homem estava deitado, com seus olhos assustados, encarando as imagens sobre o muro do cemitério. A mulher, que parecia sua esposa, não aceitava o que tinha acontecido.
 
- Olha Ulisses! – disse a senhora idosa ao seu cão, ajoelhando-se ao lado dele. – É aquele moço de ontem... Moço estranho! Até agora tô procurando aquele táxi que ele disse que viu! Até agora, Ulisses... Até agora...

 
 
Fim
 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 26/11/2013
Reeditado em 26/11/2013
Código do texto: T4588035
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