Dias de Caça (nº 3)

A fria tarde de outono passava e o mercenário cavalgava em sua busca por respostas.

Nardaim resolveu acompanhar dois dos soldados até a cidade real, eles precisavam reportar aos seus superiores o ataque dos orcs que quase destruiu Little Gold. E claro, ele precisava encontrar algum mago que pudesse decifrar o tomo obscuro que ele encontrou na posse de um dos xamãs mortos.

O trio partiu de Little Gold a cavalo, quando o astro rei estava no mais alto ponto do seu reino dos céus, e avistaram a Cidade Real, com suas altas torres e muros de pedra polida, um pouco depois do crepúsculo. Nardaim agora vestia uma cota de malha simples e reforçada aqui e ali com placas de couro fervido, idêntica à utilizada pelos soldados, porém sem o brasão real, e carregava uma espada bastarda em uma bainha nas costas. Durante a viagem os soldados, que eram rapazes sem barba, perguntaram diversas coisas ao mercenário: sobre as duas grandes guerras contra os orcs, sobre aventuras que ele viveu. Nardaim respondeu as indagações pacientemente, porém seus pensamentos estavam tomados pela alegria de não sentir mais medo, de poder sentir a brisa da tarde deslizando por seus cabelos pretos como carvão e por sua face de traços rijos e angulares, fazendo com que ele se sentisse vivo novamente.

Mas ao avistar a cidade ele expurgou tais pensamentos da mente, ele tinha que descobrir o porquê dos ataques, o que estava escrito no livro e o significado da estranha marca que os xamãs tinham em suas testas (marca essa que aparecia diversas vezes no livro carregado pelos orcs), um quadrado inserido dentro de uma serpente que formava um circulo, e dentro do quadrado havia uma runa muito diferente do que ele já havia visto. E o mercenário já havia visto muita coisa.

O grupo adentrou a cidade sem problemas, afinal eram soldados, ao menos dois deles, e após poucos minutos de galope chegaram a um estabulo militar.

-Rapazes, é aqui que nossos caminhos se separam. Preciso achar um mago nesse labirinto que chamam de capital, desejo-lhes um bom retorno para casa, mas agora devo seguir sozinho – disse Nardaim entregando as rédeas de sua montaria a um cavalariço.

-Tudo bem senhor, nós vamos nos reportar ao comandante e voltaremos a Little Gold. Que Nethir o ilumine em sua jornada – Disse-lhe Stuart, um dos rapazes.

“Se esse livro for o que estou pensando eu irei precisar de ajuda mais poderosa do que o deus dos viajantes” pensou Nardaim

Nardaim, agora a pé, fez um aceno com a cabeça e partiu em direção do centro da cidade para procurar uma estalagem onde poderia dormir e, com um pouco de sorte, achar alguém para decifrar o livro. Ao chegar a uma praça dos muitos centros comerciais da capital o mercenário avistou uma estalagem de três andares, com uma placa que dizia: “O unicórnio manco”. “Sem duvidas existe uma historia por trás desse nome” Pensou com sarcasmo.

Mesmo durante a noite a praça estava apinhada de comerciantes e compradores, realizando seus negócios sob a luz de lampiões ou magia. O mercenario atravessou a multidão e caminhou em direção à estalagem.

Ao adentrar no recinto Nardaim viu uma estalagem igual a praticamente todas as outras que existem, um lugar feito de madeira antiga e enegrecida pelo tempo, varias mesas da mesma madeira escura e um balcão onde um homem gordo e careca servia bebidas. Havia também algumas mulheres, provavelmente mulher e filhas do homem do balcão, que levavam bebidas às mesas. E claro, havia dezenas de pessoas de varias raças apinhando o lugar: A grande maioria eram humanos, mas haviam Anões, troncudos, com grandes barbas e sempre com um copo de cerveja nas mãos, alguns Elfos com seu porte altivo, cabelos em tons claros, orelhas alongadas, olhos amendoados e traços delicados e o mercenário avistou até um grupo de quatro Drenaii, um povo misterioso que vive no extremo oriente, do outro lado do oceano, todos eles são altos para padrões humanos, tem porte muscular e sua pele pode variar entre tons de azul e roxo, mas o que mais se destaca são seus olhos, que são totalmente azuis e brilham como uma tocha e a característica peculiar que no lugar de um nariz os Drenaii tem apenas dois pequenos orifícios para respiração.

-Uma cerveja – disse Nardaim aproximando-se e colocando duas moedas de prata no balcão.

-Ora amigo, isso paga muito mais que uma cerveja – disse o estalajadeiro com a naturalidade de quem sabe ler as pessoas.

-Bem, além da cerveja eu gostaria de algumas informações.

-Agora sim estamos falando a mesma língua – disse o estalajadeiro e colocou uma caneca com cerveja no balcão.

-Preciso saber onde encontrar um mago na cidade.

-Hmm, certo. E posso saber o porquê?

-Motivos pessoais. Nada perigoso se é isso que esta te preocupando.

-Entenda, eu vivi minha vida toda nessa cidade, assim como meu pai e o pai dele. Não quero saber pela manha que queimaram metade da cidade com aquele abracadabra todo.

“Deuses, ainda existem pessoas que acham que magos só servem para queimar a cidade e transformar donzelas em sapos” pensou Nardaim.

-Pode ter certeza de que não quero fazer nada perigoso meu amigo. Só quero encontrar alguém que possa traduzir um livro para mim... Ele esta na minha família a gerações e foi escrito em uma língua antiga que não entendo.

-Certo, está vendo aquele Elfo – disse o estalajadeiro apontando um Elfo sentado sozinho em uma mesa isolada, ele tinha cabelos prateados e roupas práticas de quem viaja muitas léguas: botas de couro com o cano alto, uma armadura leve de couro enrijecido, adornada com desenhos que pareciam folhagens, e calças de viagem – Seu nome é Roland, dizem que ele entende de magia. Só me faça um favor e não destrua minha estalagem ou eu vou ser obrigado a chamar os guardas.

Nardaim agradeceu pela informação, dirigiu-se para a mesa indicada, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Roland.

-Ouvi dizer que você é conhecedor dos assuntos arcanos. – disse o mercenário.

-E com esse olho faltando você deve ser um pirata. Não? – Escarniou o elfo.

-Vou tomar isso como um sim – disse Nardaim, ignorando o insulto – Eu preciso que você decifre um livro para mim.

-Digamos que eu realmente conheça uma coisa ou outra de magia, porque eu faria um trabalho chato como decifrar um livro empoeirado para você?

Nardaim tirou o livro de dentro de sua mochila, que estava embrulhado em um retalho marrom, e o colocou sobre a mesa.

-Por que eu encontrei esse livro em um xamã orc. Um orc que fazia parte de um exército que fez um ataque suicida à Little Gold. Isso tudo um dia depois do fim da lua negra. E você, como mago que sei que é, iria adorar saber os segredos arcanos de um tomo do tipo.

Roland tocou o embrulho e sentiu a energia sombria que emanava do tomo, seus olhos se arregalaram com um misto de pavor e ansiedade. O elfo dentro dele dizia para recusar o trabalho, virar as costas e não pensar mais no assunto, mas o mago dentro de si o impelia para que aceitasse, como uma força interior cuja curiosidade era maior que a prudência. Como sempre ele ouviu o mago. “E como sempre isso vai me trazer grandes problemas, dores inimagináveis com uma pitada de morte sangrenta, exatamente como meu ultimo casamento” pensou ele.

-Amigo, essa coisa é poderosa – disse Roland – Magia negra, provavelmente demoníaca. Em trezentos anos de viagens por esse mundo eu nunca vi nada igual. E eu já vi muita merda estranha por aí.

-Certo, você aceita o trabalho ou não? – Nardaim perguntou impaciente.

-E um anão recusaria uma cerveja? Na pior das hipóteses nós dois morremos, na melhor só você morre e eu fico mais poderoso. – e explodiu em uma gargalhada.

A face do mercenário era como um muro feito de gelo.

-Nossa você é animado como um funeral. Tudo bem, aceito. – disse o elfo

-Certo, vamos alugar um quarto para que você possa começar – disse o mercenário, guardando o embrulho em sua mochila.

Nesse momento dois anões, se aproximaram da mesa cambaleando.

-Eeei! Voxe pegô a cadera do meu irmão – disse um dos anões

-Tem muitas cadeiras vazias por aqui amigo, pegue outra. – respondeu o mercenário e virou-se para Roland novamente.

De imediato o anão pegou uma cadeira próxima e, com uma velocidade incrível para alguém tão embriagado, a jogou na direção de Nardaim, que deu um passo para a direita e desviou o trajeto da cadeira para o lado contrario. Porém quando ele terminou o movimento o outro anão já estava em cima de dele e desferiu um poderoso soco no estomago do mercenário, que se curvou e de pronto levou outro golpe do anão que lhe havia lançado a cadeira, porém dessa vez na bochecha esquerda. E, como em toda estalagem lotada, o inferno abriu as portas: Cadeiras começaram a voar para todos os lados (assim como alguns fregueses) e garrafas e janelas eram quebradas aqui e ali.

-Eu sabia que esse filho da puta ia arranjar confusão! – Gritou o estalajadeiro acima do tumulto, que mais parecia um campo de batalha – Martha! Corra e chame os guardas antes que esses desgraçados acabem com tudo!

Nardaim deu alguns passos para trás e levantou sua guarda, no meio da tontura ele viu um dos anões investir contra ele e desferir um soco direto. De imediato o mercenário saiu do alcance do golpe e, utilizando o impulso do oponente, o jogou por cima das costas fazendo com que o anão caísse de cara pela janela e ficasse desmaiado na rua.

Roland estava bebendo sua cerveja, escorado em um dos pilares que sustentava a estalagem, próximo a mesa em que ele e o mercenário confabularam.

O anão restante tirou seu machado da cinta e pulou sobre um humano que estava caído no chão. Ele estava em fúria embriagada por ver o irmão ser derrotado por um reles humano, ele queria sangue.

Roland, vendo que devido ao tumulto na estalagem Nardaim não tinha espaço para desembainhar sua espada, repousou o seu copo (agora vazio) na mesa e avançou contra o anão.

-Agora chega! – Bradou o mago. E as janelas restantes da estalagem se explodiram em cacos.

O tumulto cessou. Todos se viraram para o mago, que tinha os olhos brilhando com tamanha intensidade que mais pareciam estrelas em sua face delicada. Em um piscar de olhos o anão irrompeu em chamas brancas como a neve. Nardaim olhou para Roland, que agora tinha uma expressão totalmente diferente de antes, no lugar do ar brincalhão só havia concentração e seriedade inerente a quem não era estranho ao combate. No segundo seguinte o elfo fez um movimento com a mão e as chamas sumiram, o anão jazia desmaiado, com queimaduras aqui e ali, porém vivo.

-Bom meu amigo – o mago se dirigiu à Nardaim – Acho que vamos para outra estalagem.

A multidão abriu caminho para ambos passarem, uma vez fora da estalagem Roland disse:

-Acho melhor a gente correr, alguém com a minha beleza faria um sucesso um tanto que desagradável na prisão – E deu uma gargalhada – Vamos. Eu conheço um lugar reservado para trabalharmos.

Nardaim notara que toda a seriedade sumira da face do elfo, ele voltara a ser o brincalhão inconveniente de outrora. Os dois se dirigiram para o sul da cidade, correndo, silenciosos como raposas, entre becos e ruelas para despistar eventuais guardas que estivessem em seu encalço. Depois de trinta minutos Roland apontou para uma taverna caindo aos pedaços, cujo a placa dizia “O Troll faminto”, localizada no fim de uma rua sem saída. Poucas pessoas transitavam por aquela parte da cidade, e a taverna não parecia ter muitos fregueses.

-É aqui – disse Roland – Não é muito glamoroso, mas ninguém vai nos achar ai.

-Certo, o quanto antes você traduzir esse livro melhor – respondeu o mercenário.

-Mas agora que a poeira abaixou um pouco que eu me dei conta que ainda desconheço seu nome, mestre guerreiro – falou o elfo com um tom sarcástico.

-Meu nome é Nardaim, não há a necessidade de se apresentar, já conheço o seu nome – disse o mercenário enquanto ambos se dirigiam à taverna.

-Mesmo pessoas tão famosas quanto eu devem ter modos, não acha meu caro? – e deu uma risada - Meu nome é Roland, o magnifico.

Nardaim ignorou a auto declarada alcunha do companheiro e adentrou a taverna, que era muito parecida com o recinto que eles saíram às pressas, tirando o fato de que nessa não havia nem a metade dos fregueses da ultima. A taverna cheirava a mofo e a fumo, o ar pesado com a fumaça de cachimbos acesos aqui e ali por alguns dos frequentadores. O mercenário esperou Roland acertar um quarto com o taverneiro e aproveitou para vasculhar com os olhos as pessoas que estavam ali. Apenas com um olhar rápido ele pode perceber que todos eram criminosos de quinta, possivelmente integrantes de uma guilda de ladrões. “E essa taverna deve ser o local onde arranjam trabalhos” pensou Nardaim. “Que ótimo, agora terei que dormir com um olho aberto”.

Roland acenou para Nardaim e ambos subiram as escadas, que rangiam a cada passo, no fim da escada a dupla chegou a um longo corredor com cinco portas de madeira de cada lado. Eles entraram na terceira porta da direita, o quarto era simples, com duas camas de madeira forrada com palha (e pulgas) em lados opostos do cômodo.

-Vou ter que me preocupar com algum roubo essa noite? – perguntou Nardaim, após fecharem a porta.

-Não meu caro parceiro sem humor, digamos que eu sou... um conhecido dos cavalheiros que frequentam esse belíssimo estabelecimento – respondeu o elfo – E agora acho que podemos ir ao trabalho – completou.

Nardaim retirou o livro embrulhado que estava em sua mochila e o entregou ao elfo, que de imediato sentou-se no chão empoeirado bem no centro do cômodo e retirou o tomo de dentro do retalho. O mercenário se acocorou em frente ao mago.

O livro era feito todo em pele humana, tanto a capa quanto as paginas, e os caracteres eram feitos de algo que lembrava, perturbadoramente, sangue. Roland começou a folheá-lo, sua face não demonstrava nada mais do que pura concentração no trabalho em mãos, parecia que ele não notaria nem mesmo se algum estranho invadisse a força o quarto.

Duas horas depois uma fina chuva cobria toda a cidade real, pequenas gotículas de água escorriam pelo vidro da janela do quarto, com a luz dos lampiões elas até mesmo pareciam pequenas perolas, escorrendo pelo vidro e perdendo-se na escuridão. Nardaim estava admirando a chuva em um transe quase hipnotico quando Roland terminou de folhear o livro.

-Tenho boas e más noticias – disse o elfo, chamando a atenção do mercenário – Eu sei o significado dessa marcação estranha que aparece diversas vezes dentro do livro e que você viu nos shamans. Já me deparei com isso antes, é uma marca de um culto que utiliza magia negra, necromancia, para atingir seus objetivos (objetivos os quais ninguém sabe ao certo).

-Certo, mas quem, ou o que, eles cultuam? – indagou – Já andei muito por essas terras e nunca soube de nada do tipo.

-Não lhe culpo por não conhecer essa marcação. Esse culto é muito antigo e reservado, tanto que seu nome já foi há muito esquecido, você deveria de ter pelo menos duzentos anos para saber do que se trata – Roland respondeu com complacência – Alguns dizem que eles cultuam um deus ou semideus, não se sabe ao certo, mas o que eu sei é que os cultistas tem uma obsessão por mortos-vivos e criaturas das trevas, aliás uma grande parte dos cultistas que já encontrei eram desse tipo de criaturas.

-Como você conhece tanto sobre esses cultistas? – a curiosidade de Nardaim se misturava com cautela.

-Há duzentos, duzentos e cinquenta anos, era comum encontrar essa laia por ai, sempre se escondendo nas sombras, dominando pessoas com magia negra para realizarem atos macabros. Porém depois de um tempo eles simplesmente sumiram do mapa. Até agora.

-Certo. – Nardaim estava satisfeito, ao menos por enquanto, com a resposta do elfo – E a má noticia?

-A má noticia é que não conseguirei decifrar o livro. Ele esta escrito em uma língua extremamente antiga e praticamente morta.

-Droga! – exclamou frustrado o mercenário – Agora tenho certeza que os orcs estavam sendo controlados por esses cultistas. Se eles chegaram a usar um exercito para tentar conseguir o que quer que seja então ninguém sabe do que mais eles são capazes. Nós precisamos descobrir seu objetivo antes que seja tarde demais. Não existe mais ninguém que possa traduzir?

-As runas do livro são de origem dracônica, então só dois grupos, além desses cultistas aparentemente, sabem lê-las: Dragões e os Caçadores de Khez Gorthan. Os primeiros estão praticamente extintos e prefeririam nos atear fogo ao ajudar. Os segundos foram extintos há quinhentos anos, quando eu ainda era uma criança, nem a própria Khez Gorthan existe mais.

O olho restante de Nardaim se arregalou com a afirmação. Seus pensamentos passavam com velocidade imensa.

-Eu conheci uma maga durante a primeira guerra que podia encontrar qualquer pessoa com a qual tivéssemos contato, algo sobre transferência de energia espiritual ou coisa do tipo. Você consegue fazer isso? – perguntou o mercenário, que estava claramente abalado com as possibilidades que viriam a seguir.

-Mas é claro que posso, é um feitiço bem simples na verd.... Não! – o elfo arregalou os olhos em surpresa – Não me diga que você encontrou um caçador?! Droga, bem provavelmente o ultimo caçador!

-Sim, um caçador salvou minha vida dois anos atrás. Eu o vi apenas por um segundo, pois estava muito ferido quando ele apareceu. Tanto que nem me lembro do seu rosto. Só fui saber que me salvou através do relato das freiras do convento onde ele me deixou.

De imediato Roland tirou um pingente dourado do bolso e, com uma concentração absurda, gesticulou com as mãos ao mesmo tempo em que sussurrava encantamentos em uma língua desconhecida para o mercenário.

-Aqui está. – disse Roland entregando o pingente à Nardaim – Toque o pingente e pense na ocasião que encontrou o caçador.

O mercenário seguiu as instruções de Roland, e assim que tocou o pingente ele relembrou, com incrível vivacidade, do incidente que quase lhe tirou a vida. Ele viu novamente todo o combate que travou com o shaktri, e até mesmo parecia sentir os golpes novamente. Então ele viu o caçador, como uma pintura pendurada na parede. Nardaim abriu os olhos, que não lembrava de ter fechado, e ao olhar para o pingente viu que esse brilhava com uma tênue luz azul, quase imperceptível. E de imediato ele sabia para onde tinham que ir, como se um instinto antes adormecido tivesse enfim despertado.

-Temos que ir para o norte. – disse o mercenário, surpreso de como havia certeza nas palavras que saiam da sua boca – Não sei exatamente o lugar onde ele esta, mas esta ao norte.

-Ótimo. O feitiço não mostra o lugar exato onde esta a pessoa procurada, mas apenas a direção. – esclareceu Roland – Mas partimos pela manhã. Caçadores são exímios guerreiros e também usuários de magia, vamos precisar de cada hora de descanso que pudermos nos dar.

Nardaim concordou com um aceno de cabeça. “Se o caçador conseguiu matar aquele monstro dois anos atrás com certeza ele deve ser poderoso”, pensou ele.

-Antes de dormirmos me responda algo, apenas por curiosidade. – disse Nardaim já deitado em seu colchão de palha – Você disse que não se sabe ao certo se esses cultistas veneram um deus ou semideus... qual é a sua opinião?

-Creio que nenhum dos dois. Acho que eles veneram alguém muito poderoso que, em troca de rituais que lhe garante poder, presenteia seus “devotos” com qualquer desejo obscuro que eles tenham - disse Roland com uma voz sonolenta – Na verdade espero que essa coisa não seja divina, pois se o for nós estamos realmente ferrados.

-Você já encontrou algo sobre essa entidade durante alguma de suas viagens?

-Em uma luta, há muito tempo atrás, um cultista disse o nome dessa entidade, como se em uma prece.

-E qual era?

-Eligos. Significa “aquele que destrói a vida” em um dos primeiros dialetos humanos.

Nardaim dormiu um sono inquieto e sem sonhos.

Ambos partiram quando a primeira fagulha vermelha de luz despontou no horizonte, Roland alugou um cavalo e Nardaim pegou o que havia deixado nos estábulos militares. Saíram da cidade pelo portão Norte, o oposto exato do portão pelo qual Nardaim havia entrado com os soldados um dia atrás, o fluxo de pessoas, charretes e cavalos era intenso nas imediações do portão, porém quando a dupla alcançou a estrada real eles puderam seguir viagem a um galope veloz. Com o pingente encantado Nardaim sabia exatamente a direção que deveriam seguir, só não sabia quanto tempo demoraria até chegarem ao seu destino.

-O que você sabe sobre os caçadores Roland? - perguntou Nardaim enquanto paravam para que os cavalos descansassem. Estavam em uma estradinha de terra que saia da estrada real e cortava os verdes campos dos agricultores da região. Já passava do meio da tarde, o tempo estava fresco e um vento forte corria pelos campos como era comum durante o outono naquela região. O mercenário estava com uma sensação estranha, como se algo estivesse errado. Eles não encontraram nenhum problema em quase um dia de viagem, nem ao menos os ocasionais saqueadores que permeiam as estradas.

-Não muito – esclareceu o mago - O imperador Lucius ordenou que seus exércitos destruíssem a fortaleza de Khez Gorthan e matassem todos os caçadores quando eu ainda era uma criança. Ninguém sabe os motivos que levaram o imperador a fazer isso, afinal os caçadores mantinham as terras livres de todo tipo de criatura sombria e monstros- e adicionou com um tom sarcástico - Talvez o imperador achasse mais importante gastar seu ouro com mulheres e bebidas ao invés de segurança para o reino. O pouco que sei sobre os caçadores aprendi em livros empoeirados que encontrei por ai. Eles eram órfãos adotados pela ordem, passavam por um treinamento físico e mental rigoroso e os que sobreviviam ganhavam, através de rituais que desconheço, uma longevidade tremenda, comparável até mesmo com a da minha raça, além de terem seus atributos físicos aumentados consideravelmente.

Roland retirou um pão duro da bolsa que estava amarrada ao lado do cavalo, mordeu um pedaço e continuou.

-Também sei que eles usavam magia diferente da comum, uma forma mais bruta e poderosa do que a que conhecemos hoje, magia essa que era ativada por palavras de poder e não pela combinação de gestos e encantamentos. Palavras essas que são da mesma língua em que esse livro esta escrito. Isso veio a gerar lendas de que os primeiros caçadores fizeram pactos com dragões para que esses lhe ensinassem as artes arcanas. Claro que muita coisa que li pode ser apenas baboseira antiga e lendas sem sentido, mas logo saberemos a verdade não é?

-Espero que o mais breve possível. - disse Nardaim montando em seu cavalo.

-Você é um homem muito ansioso para encontrar alguém que pode nos matar só com palavras. – satirizou o elfo. E ambos continuaram a cavalgar, dessa vez para o leste.

Algumas horas se passaram, o por do sol estava no seu auge, o astro rei terminava seu ciclo em uma belíssima explosão de luz rubra para dar lugar ao manto estrelado do ceu noturno. Nardaim e Roland ainda estavam seguindo para o leste através da estrada de terra, porém agora as plantações deram lugar a uma imensa planície que se estendia até o horizonte, além do limite da visão. No passado o mercenário já havia realizado trabalhos nessas terras, caçando monstros ou foras da lei que se escondiam nas cavernas e grutas espalhadas pela região, portanto conhecia bem os caminhos à frente.

-Um pouco mais a frente existe uma estalagem que beira essa estrada. – o mercenário se dirigiu a Roland que cavalgava ao seu lado – Acho que poderemos passar a noite lá.

Roland respondeu com um aceno de cabeça. Fizeram uma curva acentuada e poucos minutos depois avistaram a estalagem. O sol soltava suas ultimas fagulhas roséolas, como se em um esforço para prolongar seu reino dos céus.

-Eu conheço o dono do lugar, ele se chama Smith, fui seu hóspede muitas vezes quando trabalhava por essas bandas – se animou Nardaim enquanto se aproximavam da estalagem – Ele faz uma das melhores cervejas que já provei, acho que poderíamos tomar uma ou duas antes de...

Ambos estavam parados na frente da estalagem agora. Um lugar simples e pequeno com apenas um andar e um pequeno estabulo do lado de fora. O mercenário percebeu que algo estava errado assim que pousou os olhos no lugar, a grama estava alta, o estabulo vazio e não havia nem uma fonte de luz dentro da estalagem apesar da já notável escuridão do crepúsculo. E também havia um cheiro estranho no ar, como se algo tivesse apodrecido há muito tempo. Nardaim desmontou do seu cavalo e desembainhou sua arma, uma bela espada bastarda que ele pegou juntamente com a armadura no depósito dos guardas após a batalha de Little Gold, da bainha que a prendia em suas costas, esse tipo de arma era chamada de “espada de uma mão e meia”, pois era maior que as espadas comuns de uma mão.

-Algo esta muito errado por aqui Roland, fique alerta. – advertiu o mercenário.

-E eu achando que iriamos ter uma viagem monótona e sem graça. – brincou Roland, já desmontado e ao lado do mercenário.

Nardaim abriu a porta do estabelecimento com a sua mão livre e o cheiro ocre aumentou imensamente e o atingiu em cheio, era tão forte que chegava a queimar as narinas, era como se ele tivesse aberto uma catacumba selada há mil anos. Apesar da escuridão total do lugar o mercenário soube imediatamente o que havia acontecido ali.

-Roland, ilumine o lugar! Agora! – exclamou Nardaim a plenos pulmões. Em momentos de perigo o mercenário adquiria uma convicção que tornava o simples ato de ignorar uma ordem requerer uma força de vontade hercúlea. O elfo fez um breve gesto e proferiu seu feitiço. De suas mãos saíram varias esferas de luz, tão brilhantes quanto os próprios raios de sol, e rapidamente elas adentraram na estalagem, iluminando cada canto do cômodo principal. Nardaim e Roland entraram no lugar e vira um cenário de caos: cadeiras e mesas estavam viradas, metade do balcão estava em pedaços, seus destroços amontoados atrás do balcão. Havia machas de sangue aqui e ali, e do outro lado do cômodo havia marcas do que pareciam ser garras nas paredes próximas às portas que levavam aos três quartos da estalagem.

O astro rei terminou sua caminhada diária, deixando em seu lugar a escuridão sepulcral da noite e todas as criaturas que a adotam como uma mãe sombria.

Os escombros do balcão explodiram, atirando madeira e pedra para todos os lados, Nardaim viu apenas um borrão sair do meio dos destroços e, com uma velocidade incrível, parar cinco passos a sua frente. A criatura, que um dia havia sido um homem, não era muito alta, estava despida da cintura para cima e tinha a pele alva como o luar, vestia calças sujas de tecido cru, que estavam rasgadas em vários pontos e não usava sapatos, sua bocarra estava escancarada em um rosnado, deixando à mostra os dentes enormes e afiados, mais parecidos com os de um animal selvagem e em suas mãos havia garras de ao menos dez centímetros. Mas o pior eram os olhos. Os olhos eram totalmente rubros como sangue, fazendo um contraste imenso com a pele branca da criatura, parecia que se você olhasse fixamente para aqueles olhos eles roubariam sua alma. Nardaim reconheceu mesmo em tal forma monstruosa, que a criatura fora o seu amigo e estalajadeiro Smith.

A criatura pulou em Nardaim, seus braços estendidos para agarra-lo, seus olhos fixos em seu pescoço e no sangue abundante que ali pulsava. O mercenário, com uma velocidade sobrenatural, deu um passo para a esquerda, girou seu corpo e desceu a espada em um único e firme movimento. O monstro continuou seu movimento e encontrou-se com a parede, porém sua cabeça e parte de seu braço direito jaziam aos pés do mercenário. Roland se impressionou com a habilidade do mercenário, ele apenas viu um borrão e um relâmpago de aço prateado e em um piscar de olhos a criatura jazia morta.

-Familiares! – bradou o mercenário, sua voz poderosa era como uma explosão dentro da estalagem.

Roland sabia o que eles eram. Pessoas se transformam em familiares quando um vampiro se alimenta delas e não as matam, elas se transformam nesses seres horríveis e sem mente, que agem apenas por instinto e obedecem apenas a seu criador. O problema seria enfrentar o vampiro, que muito provavelmente estaria ali, pois apenas armas de prata, magia ou fogo poderiam feri-lo. “O desgraçado deve estar em um dos quartos” pensou o mago, e começou a conjurar um feitiço. O ar ao redor de Roland começou a esquentar e bruxulear, seu cabelo se movia como se fosse atingido por uma brisa de verão, então uma esfera de chamas se formou em suas mãos e o elfo a atirou em direção dos três quartos da estalagem antes que os monstros saíssem.

O impacto causou uma explosão ensurdecedora, e dois quartos foram obliterados em chamas, sendo possível ver os destroços ainda queimando do lado de fora da estalagem e ouvir os gritos desesperados dos familiares sendo queimados vivos. Porém o terceiro quarto estava intacto, e com um barulho tremendo a porta do mesmo foi arremessada pela estalagem, passando centímetros de Roland e explodindo na parede em uma nuvem de madeira lascada. Da escuridão do quarto saltaram três familiares, com sua velocidade absurda dois deles cercaram Nardaim e o terceiro fez uma corrida frenética em direção do elfo. Tudo aconteceu rápida e simultaneamente, Roland estendeu a mão em direção do familiar que vinha em sua direção e murmurou um rápido feitiço, um brilho intenso percorreu a extensão de seu braço e quando chegou à extremidade de sua mão uma lança de luz ganhou forma e cortou o ar com força e velocidade tremendas, perfurando o coração da criatura e a atirando alguns metros para trás, fazendo-a cair na soleira do quarto de onde havia saído. Nardaim abaixou-se no momento exato em que o familiar a sua frente iria arrancar-lhe a cabeça com suas garras enormes, sendo ferido apenas no ombro, onde as garras da criatura perfuraram sua cota de malhas e lhe rasgaram a carne, porém o mercenário não sentira o ferimento devido à descarga imensa de adrenalina que agora percorria o seu corpo. Ao mesmo tempo em que abaixava, o mercenário girou seu corpo para trás e, levando sua espada a percorrer o mesmo caminho, decepou as pernas da criatura que estava atrás de si, então em um único movimento fluido, aproveitando o impulso que tomara, o mercenário voltou-se para o inimigo restante e levou a espada de encontro com o coração de seu oponente, em um movimento que durara apenas um piscar de olhos e fora seguido pelo som molhado de aço perfurando carne. O familiar olhou o mercenário com um misto de espanto e dor, seus membros tiveram alguns espasmos rápidos e finalmente ele parou de se mover. Nardaim jogou o corpo inerte para o lado, liberando sua arma, e por fim ele executou o inimigo caído perfurando-lhe o crânio com um único e firme movimento. O elfo e o mercenário se olharam e trocaram acenos com a cabeça, tudo estava bem.

Nesse momento uma figura saiu da escuridão do quarto, era um homem alto, seus longos cabelos negros como a própria noite estavam amarrados em um rabo de cavalo, ele vestia armadura, calças e botas negras de couro fervido, porem eram extremamente bem trabalhadas e adornadas. Sua face tinha traços delicados, sua pele era branca como a primeira neve do inverno, e seus olhos brilhavam com uma coloração alaranjada, parecendo duas estrelas enfeitando sua face. Em sua mão esquerda ele segurava uma cimitarra, uma espada com a lâmina curvada para fora, feita especialmente para decepar membros dos adversários. A própria presença do vampiro era poderosa, era como se a escuridão fosse parte dele e o acompanhasse onde quer que ele fosse. Ambos, Roland e Nardaim, souberam de imediato que esse era o vampiro responsável por toda a desgraça que caíra sobre as pobres pessoas que estavam na estalagem.

O vampiro ergueu sua mão livre, apontando-a na direção de Roland, e fechou o punho. Imediatamente o telhado desabou sobre o mago, soterrando-o. Então o vampiro voltou sua atenção ao mercenário e avançou sobre ele com uma velocidade inacreditável. Nardaim mal conseguia se defender e esquivar tamanha era a força e a velocidade de seu inimigo, cujos golpes eram precisos e graciosos, era como se ambos estivessem realizando uma dança da morte, onde quem errasse o passo perderia a vida. Em um momento o mercenário conseguiu contra-atacar seu inimigo, porem sua lâmina passou pelo morto-vivo como se ele fosse apenas uma sombra e então o vampiro retomou seu frenesi com um ímpeto ainda maior. O mercenário sabia que estava em uma situação desesperadora, já estava ficando cansado, ele podia sentir cada musculo de seu corpo doer quando aparava os poderosos golpes de seu oponente. Se ele pudesse pegar alguma pedaço de madeira em chamas talvez ele poderia ferir o vampiro, porém o desgraçado não lhe dava trégua.

Roland estava embaixo dos destroços, por sorte conseguira conjurar um feitiço de defesa antes de ser morto, agora a única coisa que impedia que ele fosse esmagado era o pequeno campo de energia que ele havia gerado. Ele precisava se libertar, ou o mercenário seria morto sem sombra de duvidas, então Roland começou a concentrar todo o seu poder no campo de energia e então, quando já estava no seu limite mental, Roland expandiu o campo com toda a força que havia condensado, fazendo com que os destroços voassem pela estalagem e o libertassem de seu aprisionamento. Assim que se viu livre Roland começou a proferir encantamentos arcanos, seus olhos brilhavam com o poder que estava concentrando, e então direcionou sua mão para o vampiro, que havia se virado para o mago devido ao barulho da explosão, e então um enorme trovão saltou da mão de Roland que atingiu em cheio a criatura das trevas, o ar foi tomado por um cheiro de ozônio e as próprias fundações da estalagem pareceram ceder com a força do impacto. O vampiro foi atirado contra a parede como um boneco de pano, e tombou morto com grande parte do seu corpo carbonizado pelo calor.

Roland e Nardaim vasculharam o resto do lugar, porem não encontraram mais nenhuma criatura. Eles queimaram os corpos e foram dormir no estabulo, onde o elfo fez um curativo para o ferimento de Nardaim. A dupla partiu pela manhã, chegando ao vilarejo de Porton durante a noite após uma viagem tranquila.

O vilarejo era um pouco menor que Little Gold, porem era bem parecido estruturalmente: varias casas de madeira, algumas estalagens e tavernas, uma praça comercial e ruas de terra batida. A maioria dos habitantes era gente simples, vivendo tranquilamente suas vidas trabalhando dia após dia.

Nardaim tocou o pingente e sentiu que o caçador estava muito perto. Ele e Roland deixaram os cavalos em um estabulo (pago com o dinheiro do mago), e começaram a andar pela cidade seguindo o instinto do mercenário.

-Ei, agora que chegamos a uma cidade acho que poderíamos comprar um tapa-olho para você meu amigo. – o elfo arriscou uma sátira – Você poderia falar que é um marinheiro aposentado, aposto que conseguiríamos desconto em algumas tavernas.

Mas a risada do elfo não foi ouvida pelo mercenário. Nardaim deu mais alguns passos e estacou em frente a um albergue, que pela aparência devia ser muito antigo.

-É aqui. – disse ele – Ele está aqui.

Não havia ninguém na recepção. “Provavelmente estão fazendo o jantar” pensou o mercenário. A direita havia uma porta que levava a um amplo comodo, provavelmente um salão comunitário, de onde podia se ouvir as vozes dos residentes que conversavam enquanto comiam, a esquerda uma escada levava ao segundo andar, e aos quartos. Nardaim subiu as escadas e o elfo o seguiu.

No segundo andar o silencio era sepulcral, o mercenário podia sentir a energia emanada do caçador e captada pelo pingente. A dupla percorreu um longo corredor e pararam na ultima das doze portas.

-É essa aqui. - murmurou Nardaim.

-Então acho melhor batermos, não queremos causar uma impressão ruim para logo em seguida pedirmos ajuda. Sem contar no fator morte que arrombar essa porta causaria em nós. – sussurrou o elfo.

O mercenário bateu com firmeza na porta três vezes.

Luiz F R Caravelo
Enviado por Luiz F R Caravelo em 20/11/2013
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