O delicado sabor das fêmeas fatais (5)

Ao fim de uns poucos dias de festim, tendo a consumação da carne humana terminada, senti que o relacionamento entre mim e Mr. Seth Moore tinha ficado deveras mais íntimo, como se o canibalismo se transformasse numa linha viscosa nos ligando com a mesma funcionalidade de um cordão umbilical. Certo dia, vendo-me desconfortável na cadeira de espaldar alto enquanto assistíamos a um filme na tevê a cabo, ele acessou o site de uma loja e juntos escolhemos uma poltrona para mim, uma poltrona de couro marrom, reclinável, com dispositivo regulável para o apoio dos pés. Ele pagou com o cartão de débito. Em três dias a peça estava em casa. Coloquei o móvel ao lado da cama de Mr. Seth Moore – e víamos diariamente duas ou três comédias românticas nos esbaldando de rir. Ele gostava muito das atrizes Sandra Bullock e Jennifer Aniston. E quando estava trabalhando, usando freneticamente os telefones celulares ou os laptops ao alcance das mãos, Mr. Seth Moore permitia que eu dormisse algumas horas ali, na poltrona, confortavelmente esparramado.

Uma vez por semana eu tinha direito de sair da casa e ir à cidade para fazer o que me desse na telha sem dar qualquer satisfação a ninguém – desde que voltasse ao anoitecer. Mr. Seth Moore me concedia por empréstimo um dos muitos carros de sua coleção. Ele escolhia que veículo eu deveria usar, normalmente me liberava as chaves de uma caminhonete Chevrolet Brasil 1960, em tão perfeito estado que parecia recém-saída da concessionária. O meu sonho, no entanto, era pilotar o Mercury Cougar 1968 vermelho. Todos os dias, religiosamente, nós íamos à garagem e, sob a supervisão de Mr. Seth Moore, eu ficava pelo menos uns quarenta minutos lustrando aquela belezura, às vezes me era permitido sentar em seu banco de couro e me via circulando pelas ruas de Cantuária, cabeça altiva, sorrisão na boca, olhos cintilando de prazer. E seduzindo a mulherada, é claro. Na minha primeira saída da casa após a comilança de carne humana, fiquei não apenas surpreendido como também profundamente emocionado quando Mr. Seth Moore me entregou as chaves do Mercury Cougar.

– Como sabia desse meu desejo? – indaguei.

– Eu sempre sei de tudo, Biguá – ele afirmou com aquele sorriso enigmático.

Entrei no veículo sentindo selvagem alegria. Durante o percurso da chácara até Cantuária, parei umas três vezes, saí do carro e me distanciei um pouco, só para apreciar a máquina maravilhosa – até então eu só a vira estacionada na garagem – banhada pelo sol, acariciada pelo vento matutino, enfeitada pelas sombras das árvores que ladeavam a estrada. Era o máximo.

Quando cheguei na Vila Cobra Coral, dirigi pelas ruas toscas até o barraco de minha vó... É, fui criado pela minha avó. Minha mãe morreu muito nova, fulminada por uma overdose. Meu Pai? Nunca soube quem era meu pai. Mas, continuando. Eu guiava o Mercury lentamente, olhando os rostos da turma. Nem me importei quando alguns companheiros perguntaram, morrendo de inveja, onde eu tinha roubado o carro, não diziam carro, é claro. Diziam: o Expresso, o Cadilac, o Iate, o Foguete, o Carangola, e outras gírias antigas, atuais ou inventadas na hora. Eu só sorria, bem na minha, só de olho no impacto que causava na mulherada. Até minha vó me olhou de esguelha, assim que entrei no barraco, ela quis saber toda ressabiada o que é que eu estava aprontando daquela vez. Jurei que minha vida estava nos trilhos, comi um pedaço da broa de milho que ela tinha feito para vender, bebi duas ou três xícaras de café preto, dei-lhe metade do dinheiro que tinha no bolso, reservado do meu pagamento exatamente para esse fim – e recebi como agradecimento uma enxurrada de palavras me taxando de bastardo pão-duro. Pronto, tinha cumprido as obrigações de neto, agora só retornaria, talvez, à Vila Cobra Coral no próximo mês. Não gostava de visitar minha avó, sempre me vinha à lembrança as formidáveis surras que levava quase diariamente com fios elétricos, pedaços de pau e correntes de bicicleta. Quando me encaminhei para o Mercury, a Vandinha segurava na maçaneta da porta de passageiros, a blusinha branca de malha grudada no busto revelando os bicos dos seios marrons escuros, atrevidos, oferecidos, cheios de promessas. A microssaia azul deixava à mostra as coxas morenas e poderosas. A bolsa a tiracolo era uma Louis Vuitton made in Paraguai.

– Vamos foder no banco de trás do carrão? – perguntou, um sorrisinho obsceno... não diria obsceno, era mais um sorrisinho devasso... enfim, um sorrisinho sacana espraiando nos lábios, os olhos negros brilhando de interesse e astúcia. Olhos belos, impiedosos e traiçoeiros.

– Dentro do carro, nem pensar – eu retruquei. – Entra aí e vamos para um motel.

Ela não esperou repetir o convite, saltou no banco do carona, jogou a bolsa no banco de trás. Vandinha e eu tínhamos a mesma idade, ela era minha transa regular desde os quinze anos, às vezes eu pagava os seus serviços, mas se eu estivesse sem grana ela não se importava, a mocinha até pagava um quartinho de pensão, aqueles cobrados por tempo de uso, para dar uma rapidinha.

– Eu só queria saber por que seu patrão tem um carro desses, aqui não caberia nem as coxas daquele gigante – ela comentou.

– Isso é carro de coleção, Vandinha – disse enquanto girava a chave na ignição.

– Vamos passar na boca, quero comprar uns papelotes – ela ordenou.

A boca de fumo ficava pertinho, chegamos num estalar de dedos. Vandinha desceu do carro e perguntou:

– Quer alguma coisa? Fumo, coca?

– Não quero nada. Entra logo, te espero aqui.

Vandinha deu de ombros e entrou no barraco.

Enquanto esperava conversei com os camaradas que se aglomeraram para palpitar sobre o Mercury. Como cobiçavam o carrão! Mas se aquele veículo fosse roubado seria encrenca da grossa, o Mercury não servia para nada, qualquer um que andasse nele tinha que estar com os documentos pessoais em dia, inclusive com carteira de trabalho assinada e também com a papelada do veículo em ordem – o que era o meu caso. Um Mercury não chama a atenção apenas da mulherada, também deixa os tiras doidinhos de curiosidade assim que veem a cara encardida de pobreza hereditária do motorista.

Vandinha voltou logo. Deixamos a Vila Cobra Coral, ela pediu que eu fosse para a rodovia estadual e pisasse fundo no acelerador, queria ver quantos quilômetros o Mercury atingia em alguns minutos. Fiz-lhe a vontade, ela mostrou-se decepcionada e apontou o velocímetro.

– Atingiu só cem quilômetros...

– Cem milhas, garota. Essa numeração não é de quilômetros.

– Explica a diferença – disse, mas já não prestava nenhuma atenção na conversa, concentrada no ato de acender um baseado. Deu uns tragos, depois me ofereceu a erva.

– Vai?

– Agora não.

– Por que o cu doce?

– Tenho que devolver o carro como peguei.

– Nem vem.

– No duro.

E assim, trocando conversa fiada, chegamos ao motel La Florita. O porteiro Bagrinho, garoto de vinte e poucos anos e nosso velho conhecido, nos deu a chave do quarto sem desviar os olhos dos seios de Vandinha – o cara tinha o obsessão por ela e isso a divertia muito, a tornava malvada: podia dar pra todo mundo, menos para o sujeitinho, parece que Vandinha tinha sádico prazer em ver os olhos de Bagrinho implorando por uma chance. Bem, fomos para o quarto então aí a coisa toda deu errada. É, muito, mas muito errada. Não é que eu brochei? Eu sei que é difícil de acreditar, como é que um garotão como eu brocha assim, como um velhinho sem Viagra... mas foi o que aconteceu, e você não vai achar a coisa toda tão esquisita quando eu te explicar os motivos. Ali estávamos nós, eu deitado na cama só de cuecas apreciando a Vandinha tirando a roupa naquele estilo strip tease, saca como é? Ela ali, ao lado da cama, rebolando, mexendo o corpo numa malemolência sensual, primeiro arrancou as sandálias, depois a microssaia, a calcinha amarela, a blusinha de malha, eis ali a Vandinha nua como veio ao mundo, as mãos apalpando o próprio corpo, simulando gemidos, eis ali a Vandinha – chapadíssima, devo acrescentar, visto que tinha metido uma dose de heroína na veia. Mas eis ali a Vandinha, toda oferecida, ali, para o que desse e viesse... E eu com o bichão mais mole que banana frita. Então Vandinha cessou o rebolado quando percebeu, mesmo estando a voar pelos mundos artificiais, que eu estava sexualmente mortinho. Olhou-se no grande espelho na parede em frente à cama, analisando seus seios ainda rígidos por causa de sua extrema juventude, observou as coxas firmes, atléticas, e depois foi cruel:

– Se eu não te atraio, é porque seu fiofó anda coçando.

– Não é nada disso, Vandinha.

– Deixa pra lá, eu vou é dormir – ela disse. E caiu na cama como se tivesse levado um murro de algum lutador de MMA. Caiu e ferrou no sono.

Eu estava perplexo com minha inusitada impotência, fiquei olhando o teto sem nada povoando a cabeça, sentia apenas uma tristeza profunda, um vazio imenso, uma angústia sem fim. Olhei o corpo nu de Vandinha ali, distendido ao meu lado na cama, um corpo perfeito, jovem, sadio, de pele caramelo, um corpo que, subitamente, passei a desejar com uma volúpia nunca experimentada. Beijei-o. Comecei pelos pés, beijei cada um deles com voragem, lambi as coxas morenas, subi a boca pela barriga plana e ao chegar aos seios, mordi-os. Isso, mordi um dos mamilos levemente, depois o outro, já com alguma intensidade. Então senti que minha respiração se tornava ofegante, minhas narinas fremiam, e me dei conta, extremamente assustado, que estava me transformando em fera assassina farejando carne fresca. O que me fez suspender o ímpeto de trucidar com os dentes o corpo indefeso e inerte de Vandinha talvez fosse um resquício de humanidade proveniente do amor. Eu amava Vandinha – não aquele amor cantado em prosa e verso, apenas o amor de uma companheira de aventuras, de pequeninos sonhos, uma companheira de miséria, risos, sexo e solidão. Só por isso não comi, literalmente, os seios de Vandinha. Fiquei tão exausto na luta para dominar meu apetite canibalesco que após uns dez minutos acabei dormindo ali, ao lado da garota. E sonhei que comia o corpo de Vandinha, pedaço por pedaço, de todas as formas: cru, cozido, frito, assado, à milanesa. Um sonho vívido, tão intenso que tive ereção e gozei dormindo. Sabe aquela polução noturna que temos quando somos adolescentes? Então. Foi desse jeito. Igualzinho. Acordei assustado, mais que assustado, apavorado. Pulei da cama, deixei algumas notas graúdas em cima do criado-mudo, saí do quarto, paguei a hospedagem equivalente às próximas três horas, quando Vandinha deveria ser acordada, fui para o Mercury e rumei para a casa de Mr. Seth Moore. Sabe quando a gente fica completamente perdido, sem conseguir encadear os pensamentos? Eu estava assim, como um náufrago nas águas turbulentas de um mar sem fim, como um alpinista arrebentado se segurando nas arestas de uma montanha tão alta que sua ponta se perdia entre as nuvens. Era assim que me sentia. Bem assim.

(Continua)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 20/11/2013
Reeditado em 20/11/2013
Código do texto: T4579177
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