O delicado sabor das fêmeas fatais (4)

Mr. Seth Moore havia me elogiado nos primeiros dias de trabalho, dizendo que eu era o cuidador que ele esperava havia muito tempo. Na ocasião eu até brinquei, dizendo-lhe que as aparências podiam enganar, por trás do meu espírito prático poderia haver um monstro. Lembro-me que ele deu uma de suas gargalhadas de estremecer as paredes, balançou um dedo gorducho em minha direção e afirmou que conseguia saber muito mais em poucos minutos sobre qualquer pessoa do que experientes psicólogos e até psiquiatras lidando com pacientes durante meses ou mesmo anos. Ele devia, realmente, me conhecer a fundo, por que peguei as ossadas e fui para o porão da casa com a mesma naturalidade que pegaria um cesto de lixo. Não, não há somente um porão, ou melhor, é um imenso subterrâneo, mas compartimentado em alvéolos como numa colmeia, se é que me faço entender. Há pelo menos umas quinze células quem bem poderiam ser alugadas como quartos, se um dia meu patrão precisasse de dinheiro, o que é uma hipótese implausível. Eram cômodos que, trancados à chave, não atraíam minha curiosidade.

Então, no momento em que estava numa dessas celas triturando a ossada da doutora Lisbeth Feijó no moedor de ossos bovinos, compreendi que, de fato, Mr. Seth Moore logo que bateu os olhos em mim, quando fui pedir o emprego, viu que eu poderia ser um parceiro pra qualquer obra – desde que regiamente pago. Fiquei fascinado com a inteligência do homem, pois nem mesmo eu sabia dessa peculiaridade do meu caráter. Qualquer babaca com formação religiosa, com algum código de conduta moral, com todos esses estereótipos, teria gravado a ferro e fogo nos miolos que não é natural uma pessoa se alimentar de carne humana – eu, no entanto, não pensava desse jeito. Carne é carne seja qual for a sua origem – e ponto final. Assim, logo de cara Mr. Seth Moore sacou em mim essas características, o que salvou minha pele. Digo isso pelo seguinte: acho que Mr. Seth Moore devorava os seus empregados. Cozinheiras foram comidas cruas, enfermeiros foram devorados assepticamente – é o que acho.

Por isso, em nossa conversa no quarto, eu sentado calmamente no colchão aos pés da cama, tratei logo de combinar com Mr. Seth Moore que ele jamais, em tempo algum, me olharia como alimento – e nesse momento até fui um pouco dramático, mostrando-lhe o quanto eu era desprovido de carnes, apenas um sujeito cumprido, magro que só, somente pele, ossos e nervos – um corpo fibroso como o de um atleta maratonista e muito provavelmente de difícil mastigação. Quando ele, Dr. Seth Moore, sentisse vontade de apreciar uma carninha humana, era só me dar ordens, eu providenciaria o produto.

Mas, voltando ao trituramento, os ossos moídos na máquina não ficavam como o pó de serra, por exemplo, e sim uma massa pegajosa – acho que tal coisa se devia ao tutano no interior do esqueleto, só podia ser algo assim. O crânio da doutora (sem o couro cabeludo, eu fizera escalpo e o jogara no vasão sanitário) demorou um pouco mais para ser esmigalhado, numa bagunça de miolos.

Terminado o serviço, ensaquei aquela massa pastosa e depois peguei na prateleira de ferramentas alguns instrumentos e desmontei o triturador, levei as peças para a cuba de aço inoxidável da pia e limpei-as com querosene, sapólio e por fim água sanitária. Em seguida azeitei tudo com óleo conservante. A máquina, ao final da limpeza, ficou nuns trinques que só vendo, parecia nova, assim como que saída da loja. Acredito que nem fosse necessário tanto trabalho na limpeza do moedor, visto que ninguém descia naquele recinto. Só se podia entrar no porão com uma chavona medieval que servia para trancar a fechadura de aço do alçapão, chave esta que ficava guardada no grande cofre disposto no quarto de Mr. Seth Moore – mesmo assim, movido pela insegurança, com um obscuro, medonho e inexplicável medo de que alguém desse falta da mulher e acionasse a polícia e esta, investigando o desaparecimento, pudesse chegar até aquela casa e consequentemente ao imenso quarto do subsolo, acabei fazendo uma faxina completa no cômodo, removi o mais insignificante vestígio que os ossos e o sangue, pouco, é verdade, pudessem deixar em qualquer parte – levei mais de três horas esfregando, ensaboando, alvejando cada cantinho, cada junção dos ladrilhos – um trabalho tão meticuloso quanto o dos antigos relojoeiros.

A minha insegurança não tinha muito fundamento – raramente os policiais iriam investigar exaustivamente o desaparecimento de uma golpista com extensa ficha criminal. A grande verdade é que os detetives tinham muito mais o que fazer. Por exemplo: naquela semana um jovem empresário do ramo de supermercados havia sido sequestrado; um professor de filosofia fora abatido misteriosamente a tiros no campus universitário – isso só para citar dois casos de expressão que aguardavam solução à época. Verdade seja dita: se você é parasita social, ou arruaceiro de marca maior, bandidinho rastaquera, traficante viciando as crianças de escola ou golpista enganando os cidadãos – se você desaparecer sem deixar vestígios, acredite, os meganhas vão mesmo é comemorar – e muito.

Mas voltando ao assunto, depois de esfregar todo o cômodo, subi a escadaria, tranquei o alçapão e voltei para o quarto de Mr. Seth Moore. Ali, na grande cama com dois colchões paralelos, Mr. Seth Moore, peladíssimo, dormia sobre os lençóis limpos – e tinha aquele resplandecente sorriso de bebê gorducho, saudável e bem alimentado.

Olhei mais uma vez orgulhosamente para o quarto que eu limpara antes de triturar as ossadas. Tudo nos conformes, brilhando, cheirando a lavanda. Coloquei a chavona do alçapão em cima do criado-mudo e fui fazer mais uma inspeção ao banheiro impulsionado pela maldita insegurança. Mr. Seth Moore tinha desossado o cadáver dentro da banheirona com as torneiras abertas, portanto o meu trabalho de faxina naquele local fora rápido: havia apenas alguns respingos de sangue completamente seco no recipiente esmaltado e no chão – porém, nunca me convencia que realmente fizera um trabalho meticuloso. Por via das dúvidas – de novo, a insegurança! –, abri a torneira da banheira e deixei que ficasse com uns dois ou três palmos de água, destampei um novo barrilzinho de cinco litros de Q’boa em cima. Misturei bem, com uma bucha esfreguei o fundo e as bordas da banheirona. Fiquei todo molhado – pra você lavar aquela espécie de piscina, precisa estar lá dentro. Então tomei uma ducha ali mesmo no chuveiro de Mr. Seth Moore e enxuguei-me com a toalha dele, precisava ver aquelas toalhas, eram do tamanho de lençóis king size! Em seguida recolhi minhas roupas e fui – nu – para o meu quarto com a mente criando imagens do momento em que o patrão matou a doutora Lisbeth. Contou-me Mr. Seth Moore que a mulher morreu asfixiada – ele tinha pressionado a loura cabeça entre as portentosas coxas numa das ocasiões em que ela lhe fazia sexo oral. Já imaginou ter a cabeça presa entre coxas pesando uns cinquenta quilos cada uma? Afastei aquelas imagens da cabeça, troquei de roupa – me visto sempre de branco, afinal sou um enfermeiro! Está bem, auxiliar de enfermagem. Mas gosto assim: tênis branco, meias brancas, cuecas brancas, calças brancas, cinto branco, gorro branco. Tudo branco. Já trocado, peguei no criado-mudo uma bagana, acendi e estiquei-me na cama para descansar um pouco. Estava um bagaço. E com toda razão, era a primeira vez que eu lidava com um cadáver. E de modo tão excepcional. Acabei de fumar, virei para o lado e caí em sono profundo. Acordei com o celular tocando. Era Mr. Seth Moore.

– Venha cá e traga uma vasilha! – ele ordenou. Pulei da cama, desfiz alguns amassados na calça e na camisa, fui à cozinha, peguei uma bacia pequena, dessas de fazer salada, e disparei para o quarto de Mr. Seth Moore, temeroso de que, entre outras coisas menos perigosas, ele estivesse tendo uma indigestão – o que não seria um pensamento absurdo, dado a quantidade de carne crua que o homem havia comido. Entrei no quarto, coloquei o recipiente em cima da cômoda de toalhas e postei-me ao lado da cama.

– Às suas ordens, Mister! – exclamei todo empertigado, só faltou mesmo bater continência.

Mr. Seth Moore apontou um dedo para o refrigerador descomunal.

– Acha que consegue me fazer bifes à milanesa?

– Com a carne da mulher?

Ele não me respondeu, apenas sorriu de uma maneira feliz, um jeito assim de meninão maroto. Depois voltou a perguntar:

– Consegue ou não?

– Eu já comi bife à milanesa, mas nunca preparei a iguaria.

Mr. Seth Moore me entregou um dos seus laptops, o pequenino, aquele que estava mais frequentemente pousado em seu peito quase sem pelos – digo quase porque havia dois fios grisalhos saindo de seus mamilos – um de cada lado, grossos como barbantes – e que tinham aí por volta de uns trinta centímetros de comprimento. De tanto brincar enrolando-os no dedo, os fios transformaram em montículos que se distendiam e encolhiam como se fossem molas de relógio anacrônico.

– Procure uma receita apetitosa – ele ordenou.

Sentei-me na cadeira de assento duro e espaldar alto, móvel necessariamente desconfortável à minha disposição para as vigílias naturais de um cuidador, entrei no Google e digitei a frase “bife à milanesa”. Havia 334.000 resultados da pesquisa. Lia em voz alta para Mr. Seth Moore aquelas receitas que me pareciam mais interessantes, ele prestava atenção concentrada até que me interrompeu.

– Leia essa novamente, só o Modo de Preparo.

Li: “Tempere os bifes com pimenta do reino, alho e sal a gosto; passe cada bife na farinha de trigo, em seguida no ovo batido com leite, e finalmente na farinha de rosca. Na próxima etapa, frite os bifes, um por um, em óleo quente; deixe-os escorrer em papel toalha e pronto. Sirva-os quentes, de preferência acompanhados de molho inglês”.

Terminada a leitura, indaguei:

– Não parece muito boa?

– Divina. Estou com água na boca. Temos molho inglês?

– Há um estoque de vidros de molhos e condimentos lá na cozinha.

– Provavelmente temos molho inglês...

– Provavelmente.

– Então o que está esperando? Mãos à obra!

Entreguei-lhe o laptop, peguei a bacia em cima da cômoda e fui ao refrigerador. Mr. Seth Moore sugeriu:

– Pegue os seios, Biguá. Reservei-os para esse fim específico. Acredito que provavelmente o seio seja a parte mais macia do corpo.

– Provavelmente, Mister – respondi compenetrado. Era a primeira vez que Mr. Seth Moore me pedia para cozinhar, aquilo me deu uma enorme satisfação, sentia-me como se acabasse de ser escolhido para compartilhar de seus sentimentos mais íntimos. Hoje essa percepção pode parecer bizarra, mas era assim que me sentia: menos um mero empregadinho, mais um amigo do peito respeitoso e ciente de sua importância nas engrenagens do cotidiano afetivo e existencial de Mr. Seth Moore.

Fiquei três dias cozinhando para Mr. Seth Moore. Fiz carne de panela, carne ao forno com sal grosso, filé ao molho madeira, bife a rolê, almôndegas e picadinho indiano. Mr. Seth Moore havia me perguntado logo no primeiro dia enquanto mastigava um pedaço de almôndega:

– Não acha que exagerou um pouquinho na pimenta?

– Exagerei?

– Bom, acho que sim, não muito, só um pouquinho. Talvez no momento do preparo não tenha se dado conta. Toma cá, experimente.

E me ofereceu uma das almôndegas espetada na ponta do garfo. Subitamente, senti náusea. O que era um sintoma estranho, uma vez que, quando criança, minha avó me levava com ela quando ia catar lixo para a reciclagem. Nessa labuta, não foram poucas as vezes em que comemos vorazmente pedaços de pizza fervendo de formiga, restos de frango sujos de terra, bifes começando a feder, a gente devorava qualquer coisa com aparência de carne, também armávamos arapucas para capturar e comer os pardais que rondavam nosso barraco; perseguíamos implacavelmente as cobras nos matagais obcecados por um tiquinho de proteína; os ratos eram um prato comum em nossa mesa. Uma lembrança de quando tinha seis anos: minha vó e eu seguíamos puxando a carroça artesanal cheia de papéis, ferragens, plásticos e vidros pelo acostamento da rodovia quando vimos um caminhão pegando fogo – o motorista estava dentro da cabine e urrava enquanto era assado. Eu estava sem me alimentar havia dois dias e aquele cheiro de churrasco me deixou tonto de tanta fome. Vendemos o lixo reciclável e compramos pão com mortadela. Mas eu queria churrasco. Fiquei dias implorando por churrasco, desejava tanto um pedaço de carne assada que fiquei doente, minha vó deu-me chá de hortelã com ruibarbo, tomei e meia hora depois caguei trezentas e oitenta e quatro lombrigas. Exatamente trezentas e oitenta e quatro – minha vó se deu ao trabalho de contá-las. Por isso, achei esquisitas aquelas reações estomacais diante de uma almôndega cheirando maravilhosamente. Eu tinha que dominar os malditos engulhos. Se eu recusasse a oferta estaria pondo meu emprego em risco. Ou coisa pior: o meu próprio pescoço. Peguei a almôndega do garfo cuidando para que a mão não tremesse por causa da repugnância. Mr. Seth Moore, aquele que sabia tudo, me olhava com selvagem alegria, decifrando meu estado emocional, penetrando em meus pensamentos, analisando minhas reações físicas. Enfiei a almôndega inteira na boca. E fiquei surpreso com o sabor. Mastiguei tudo, engoli, lambi os beiços. Só então percebi que tivera uma ereção. Eu juro. O bichão estava bem acordado entre as minhas pernas, duro feito aço. Mr. Seth Moore bateu os olhos nas minhas virilhas, viu minha calça armada como se fosse uma tenda de circo. Deu um sorrisinho, desviou o olhar.

– O que achou? – ele quis saber.

– Da ereção?

– Claro que não, eu também tenho essas constrangedoras reações.

– Fala da carne?

– Evidentemente.

– Tem o gosto da carne de cisne – eu disse tentando uma gracinha.

– Eu acho que é o gosto de carne de cavalo – ele respondeu de rosto fechado.

– Ou de cavalo – concordei sem convicção. Mr. Seth Moore me olhou nos olhos.

– Não estamos falando da carne de um animal qualquer. Estamos falando do incomparável sabor da carne de Pegasus, o mitológico cavalo alado, caso você não tenha ideia do que eu estou falando.

– Já ouvi falar desse cavalo, e acho que essa analogia não tem pé nem cabeça.

– Para mim ela é perfeitamente lógica. Mas, me responda: o prato não ficou um pouquinho picante?

– Peço desculpas, ainda sou um cozinheiro amador.

– Está certo. Na próxima vez seja mais comedido no tempero.

– Farei isso, Mister.

E passei a experimentar minhas receitas a cada preparo, cuidando para que o gosto da carne ficasse na medida. No começo, curiosamente, a cada vez que colocava um bocadinho de comida na boca, lá vinha ereção. Logo depois comecei a ter espasmos, o corpo tremia como que possuído por alguma febre terrível e em seguida, assim subitamente, me explodia em orgasmos. Pelo menos uma vez por dia era um orgasmo feroz, intenso, se fosse possível medir penso que expelia pelo menos uma colher cheia de sêmen (eu tinha que tomar banho pra me livrar da meleca) – mas das outras vezes saíam do pênis somente umas gotículas efêmeras que só manchavam a cueca.

(Continua)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 17/11/2013
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