O cadáver da velha
Estava a velha Ofélia com seu rosto escancarado, de boca levemente aberta, deitada em sua caixa de madeira, enquanto as duas filhas choravam desgraçadamente á perca da matriarca. Em meio aos entes queridos, estavam os dois genros, que odiavam a defunta. Esta em vida, escarrava o inferno á vida dos dois. Felizmente a gangrena á levou, depois de ter lhe comprometido toda a perna esquerda. Os genros felizes da vida estavam de óculos escuros, disfarçando lagrimas que jamais cairiam. Eis que um deles, Pablo, chegou ao ouvido do concunhado e balbuciou:
— Edvaldo. Paguei suborno.
Edvaldo sem entender perguntou:
— Como disse?
— Paguei suborno! Me senti mal por perder á velha desta forma. Paguei suborno para o legista colocar doces dentro dela.
Edvaldo ao ouvir tal bobeira arrancou da face os óculos escuros e perguntou:
— Porque diabos colocou doces dentro da finada?
Ele aliviado respondeu:
— A maldita adorava doce. Comprei todos os preferidos dela e pedi para o legista preenche-la com eles antes de costura-la de novo.
Edvaldo riu levemente para não ser percebido pelos chorões do velório, enquanto contemplava a sogra rodeada por flores da primavera:
— Triste é a morte. Mas é gostoso gozar a liberdade. Imagine uma vida sem sogra? Depois que enterrarmos esta velha, nunca mais ouviremos ralhações e comentários grosseiros! Seremos livres e felizes, totalmente senhores de nossos lares! De fato a única coisa boa dentro dela são os doces que você preencheu. Lhe digo que ela não valia nem um pirulito!
Pablo coçou a cabeça calva e disse em tom de concordância:
— Também acho que não, mas se eu batesse as botas ia gostar de ter a barriga cheia de cerveja e churrasco. O cheiro certamente abriria o apetite dos entes no funeral, mas seria muito bom sair daqui de barriga cheia. Minha finada mãe me dizia que na vida a gente só aproveita o que a gente come...
— Quanta besteira da mesma boca Pablo – disse Edvaldo enjoado de toda a conversa fiada – o cortejo logo seguira e você ao invés de dar um beijo na testa da velha fica ai com este papo de babaca! Vai lá meu filho! Vá manter as aparências!
Seguiram o cortejo fúnebre pelo cemitério municipal, pensando em suas vidas de homens livres. Encararam o tumulo mais fundo que o de costume. As duas filhas olharam para os esposos, até que Edvaldo confessou:
— A ideia do tumulo fundo foi do Pablo!
Pablo olhou para a esposa e a cunhada e tentou defender-se:
— Eu só quis ser poético. Pedi para cavar um tumulo mais fundo porque achava que no fundo no fundo ela era uma boa pessoa.
Não convenceu, mas mesmo assim o caixão desceu em meio à valeta recentemente aberta, regado pelas lagrimas das filhas e netos. Eis que o celular de Pablo vibrou:
— Diabos! É o legista!
— Pois atenda! Há de falar da idiotice de ter colocado doces na barriga da velha!
Ele atendeu. O legista gordo falava com o celular entre o ombro e o ouvido, enquanto abria um cadáver fresco para á retirada das tripas:
— Senhor Pablo! Esqueci-me de lhe falar! Examinei a boca da velha e constatei que ela tem quatro dentes de ouro bem no fundo da gengiva. É ouro puro, deve valer muito dinheiro!
Pablo olhou para o concunhado e respondeu ao telefone:
— E vai me falar esta merda agora que a terra esta caindo sobre o caixão?
— Me desculpe Senhor Pablo. Na hora em que vieram buscar o corpo me esqueci deste assunto!
Pablo desligou o telefone e comunicou á Edvaldo:
— O legista disse que Dona Ofélia carrega no fundo da boca quatro dentes de ouro puro! Prejuízo do caralho enterra-la com eles!
Edvaldo olhou espantado para o amigo e ralhou:
— Puta que pariu! Sepultar esta carcaça nos custou uma pequena fortuna! Claro, valeu cada centavo... Só de pensar que depois posso urinar neste tumulo já valerá cada centavo!
— Urinar? Estou pensando em cagar nele! Mas deixar a terra e o tempo cobrir tal legado é um desperdício total! Tantos malucos trabalhando no garimpo pra conseguir uma pepitinha... Eles até se matam e comem terra até pelo cú pra conseguir algum ouro e esta velha nojenta ai, com o fundo da boca cheio deles!
Depois que a terra fofa cobriu o caixão bonito, os dois caminharam ao lado de suas esposas, ás consolando e ás preparando para seguirem do lado deles em suas vidas de homens livres e donos do próprio e belo destino.
Dois dias correram até Sophia, á esposa de Edvaldo, reclamar da escassez do dinheiro. A bela mulher de cabelos lisos e quadril afunilado reclamou da angustia de não poder dar um banho de brilho nos cabelos sedosos:
— Se não tivéssemos comprado um caixão tão brilhante, teríamos mais dinheiro para brilhar seus cabelos. Morrer custa caro meu amor! Estou na pendura!
A mulher danou-se a gritar ao vento, reclamando da escassez e do fato de não poder ficar ainda mais bela.
Com Pablo não era diferente. Ele também tinha uma esposa vaidosa, esta, tal qual a irmã, fazia o inferno para o marido arrecadar fundos para pagar toda sua luxuria. Pablo se escondeu no banheiro e tapou os ouvidos, enquanto a matraca reclamava sem trégua:
— Maldita velha – disse em ira – mesmo morta consegue tirar a harmonia do meu lar!
O celular vibrou no canto do bolso, ele atendeu apressado e ouviu Edvaldo dizer:
— Fudeu cara! A grana tá curta e a mulher me aporrinhando! Empresta algum ai até dia 5!
Pablo gargalhou quase que em desespero:
— Você tá de sacanagem comigo né? Não sabe que dei tudo que tinha pra comprar os arranjos de flores e a cova da velha?
Edvaldo se sentiu ainda mais perdido, duro feito pedra, tocou no assunto até então impensável:
— Velha filha da puta! A gente bem que podia ir lá, abrir aquela cova e arrancar os dentes de ouro da boca dela! Assim aguentaríamos as pontas até o dia do pagamento!
Pablo ficou pensativo. Depois de longos 7 segundos de silencio só conseguiu indagar:
— Eu tenho um alicate para arrancar eles!
— Pois eu tenho a pá – respondeu na risca o concunhado – Bóra lá desenterrar a velha!
Pablo se arrepiou. Gaguejou antes de continuar a falar:
— Ma.Mas isto é pecado!
— E encher a pança da velha de doces é o que? Deixa de ser frouxo rapaz! Vamos hoje a noite desenterrar a velha Ofélia!
Plano arquitetado, um decidido e o outro com medo. Duro, na pindura, mas ainda assim com medo.
Na boca da noite Pablo enfiou o alicate no bolso e saiu, rumo á casa do amigo. Edvaldo já estava á espera-lo no portão, com a pá nas costas. Entrou no carro e partiram rumo ao cemitério municipal:
— Quase meia noite. Que conveniente – Disse Edvaldo cheio de sarcasmo – Só falta cavarmos aquela cova funda e darmos de cara com o cadáver vivo dela, reclamando que os doces que você comprou são de segunda.
— Gastei meus últimos centavos naqueles doces. Mas agora fico aqui pensando, se vamos arrancar os dentes dela como vai comê-los?
— Esta pergunta é tão idiota que vou dar uma resposta cretina, igual as da velha revista MAD: se colocou os doces na barriga da velha, ela não precisa mais mastigar!
O carro parou em frente ao cemitério e os dois caminharam, rumo às covas novas:
— Você cava – Disse Edvaldo entregando a pá ao concunhado – pois foi você quem deu a ideia ridícula de cavar á cova o mais fundo possível!
— Pensei que tinha gostado da ideia! Achei poético enterrar a sogra bem fundo! Era isto ou enterra-la de barriga pra baixo, igual naquela velha piada.
Pablo cavou á terra ainda fofa e quando cansou, foi auxiliado por Edvaldo. Quando o caixão já havia sido revelado, Edvaldo gritou lá de cima:
— Esta com o alicate ai?
— Sim, estou!
— Abra o caixão e arranque os dentes da velha. Eu te puxo pra cima e a gente some daqui!
Pablo olhou para cima. Depois de breve silencio respondeu:
— Não vou abrir porra nenhuma! Já cavei, você que venha e cometa o pecado da violação!
— Pois se não o fizer te deixo ai!
Pablo teimoso, sentou-se na tampa do caixão e respondeu:
— Pois então deixe! Pela manhã alguém me tira e eu explico a merda que tentamos fazer!
Edvaldo se acalmou. Buscou a corda que os coveiros usavam para descer os caixões e puxou o concunhado de volta:
— Desço eu. É justo, e não poético como você tanto gosta. Desço eu, escancaro a boca da velha e lhe arranco os dentes!
E desceu. Lá em cima Pablo ficou segurando a corda, olhando curioso Edvaldo abrir o caixão. Os olhos hipnotizados acompanhavam a ação do homem, que encarou a face pálida da velha. A boca levemente aberta produzia um estranho ruído. O coração de Edvaldo disparou em descompasso, mas ele não mostrou medo. Arrancou o alicate da cintura e se preparou para invadir a boca enrugada. De súbito, um formigão saiu de dentro da boca. Edvaldo olhou curioso a barriga do cadáver, que se mexia desvairadamente, dando a entender que um formigueiro estava devorando todos aqueles doces. Ainda sem medo, escancarou com a ponta dos dedos a boca da velha... Dezenas de formigões saíram lá de dentro e ele finalmente gritou, sendo picado por elas. Pablo levou um susto tão inesperado que despencou lá de cima, caindo violentamente em cima do caixão. Edvaldo sendo picado pelas formigas, tentou acordar o concunhado desmaiado graças a queda, mas não conseguia vê-lo se mexer. Em desespero constatou que Pablo havia quebrado o pescoço com a queda. Gritou por ajuda, mas não conseguia ser ouvido... Tentava se livrar das formigas e subir no topo do tumulo, pisando no corpo morto de Pablo. Em vão, não conseguia. Estava tão desorientado que sem querer, pisou sobre a barriga da velha e os formigões de ferrões afiados saíram em correição pela boca fria. Edvaldo gritava em pânico, tentando escalar a terra, enquanto que as formigas em defesa, lhe ferroavam o corpo. Se debatia em agonia dentro da cova com os dois cadáveres, enquanto á boca da velha borbulhava mais formigas. O homem tentava se livras dos insetos ariscos e determinados, que corriam em abundancia pelo seu corpo até encontrarem um lugar para ferroar. Adentraram em sua boca e narina, ele em desespero se esmurrava e tentava se livrar das ferroadas, sem qualquer chance de defesa... Estava totalmente entregue aos insetos que lhe invadiam em violentas ferroadas.
Na manhã seguinte, os três cadáveres foram encontrados dentro da cova violada. Os dois genros mortos sobre o corpo da querida sogra que em vida, gostava de mastigar doces com seus preciosos dentes de ouro.