Celine Bôer

A menina caminhou tranquilamente para o parquinho bem em frente ao seu prédio, seus pés descalços sentiam a maciez e a frieza da areia. Naquela altura da noite, ele, o parquinho, era assustador, silencioso e sombrio, pouco lembrando o lugar animado e barulhento, cheio de risadas e gritos infantis, das manhãs ensolaradas.

Celine era a única filha de um famoso diplomata. Ela era sul-africana, no entanto, falava português fluentemente. Chegou ao Brasil, terra de seus genitores, há poucos meses. Há um ano, quando viajava com os pais pelo continente africano, foi acometida por uma grave doença, que quase a levou a morte. Seus pais fizeram de tudo para salvá-la. Obtiveram tudo que o dinheiro podia comprar em termos de remédios e cura, e, enfim, Celine Bôer recuperou-se. Contudo, ainda convalescia e vivia reclusa no quarto de seu novo apartamento.

Ela caminhou até o balanço feito de um velho pneu. Sentou-se nele e aguardou.

Durante o dia as crianças do prédio e da vizinhança se divertiam ali, sob o olhar oculto e triste da pobre Celine. Entretanto, o que mais fascinava a menina era a hora do passeio do Blood, um Rottweiler colérico, de pelos avermelhados. Seu dono era um homem sinistro, que parecia odiar crianças. Ele soltava o maldito cão enfurecido para correr atrás da molecada. Celine podia vislumbrar a excitação e o medo que os garotos sentiam, quando o monstro vermelho arremetia sua fúria contra eles. Ela os observava de uma brecha em sua janela, e aquilo mexia com ela, seu corpo vibrava de emoção.

Num fatídico dia, Blood mordeu Danilo, o menino que tirava suspiros apaixonados de Celine Bôer. Os dentes da fera cravaram-se na panturrilha do garoto, arrancando um pedaço de sua perna. Houve correria, gritaria, e sangue, muito sangue. Celine estremeceu com a visão do líquido encarnado que jorrava da perna de Danilo.

O homem foi processado e ficou obrigado a passear com seu cachorro longe dos meninos. Ele escolheu a madrugada para a tarefa. E era por isso que Celine estava ali.

Ela aproximou-se calmamente. Blood rosnou furioso, enquanto seu dono olhava a menina com nítido espanto.

- Ora, ora, mas que surpresa. Você não é muito nova para andar por aí sozinha durante a madrugada? Hã? Quantos anos você tem, garotinha, e onde estão seus pais? Perguntou o homem, abrindo um sorriso.

- Tenho oito anos, e meus pais estão viajando e mesmo que estivessem em casa eles não se preocupariam.

- É mesmo? E depois o irresponsável sou eu. Mas, o que uma menina de oito anos está fazendo uma hora dessas na rua? Perguntou. Blood tentava atacar e era contido pelo homem. Celine não esboçava nenhuma emoção.

- Eu vim fazer duas coisas. A primeira é falar com o senhor.

- Falar comigo?

- Sim, com o senhor mesmo.

- Quanta honra. Então pode falar mocinha, eu sou todo ouvidos.

- Eu vim dizer que o senhor e o seu cachorro feio e mal vão se arrepender pelo que fizeram com o Danilo. O homem gargalhou e disse:

- Aquilo não foi nada, um arranhãozinho apenas. Eu quero encontrar aquele moleque de novo, vou colocar o Blood pra morder a bunda dele. Gargalhou novamente.

Desta vez Celine não disfarçou sua indignação e olhou para ele com os seus profundos olhos azuis cerrados. O homem prosseguiu:

- Mas, minha filha, mata a curiosidade do tio aqui, e me diz por que eu e meu cão vamos nos arrepender?

- Ah, tio, isso vai acontecer por causa da seguuunda coisa que eu vim fazer aqui. Ela falou divertida, mostrando dois dedos.

- E o que seria?

- Eu vim me alimentar. Falou docemente, mostrando um sorriso singelo nos lábios, e voou pra cima do seu interlocutor, com sua boca escancarada expondo seus dentes afiados e enormes. No tempo em que seus caninos estraçalhavam o pescoço do infeliz, suas garras afiadas cortavam a garganta de Blood, que tombou uivando de dor e medo.

Ela devorou com volúpia esfomeada o cachorro e o seu dono. Este é o ônus que ela terá de pagar, eternamente, por ter sido salva por um sinistro curandeiro africano, depois que a medicina tradicional a desenganou. Sua sede de sangue aumenta a cada dia...