Yin-Yang
"Arte não há de descobrir na face o que vai dentro d'alma."
Duncan, Rei da Escócia, na cena IV do Ato I de Macbeth, de Shakespeare
"Tentei plantar em meu coração o bem, desde o primeiro momento de consciência. Às provocações do instinto respondi com temperança, perseverando no caminho da correção. Muitas vezes as tentações mundanas lançaram aos meus ouvidos seu canto de sereia. A tudo resisti, com a graça do Senhor. Mas, hoje, vendo meu filho nessa situação ignominiosa, o mal contagia todo o meu ser. Me arrasta numa corrente de águas imundas, poluídas pelo ódio. Oh, Deus! Não deixe o inferno vir a conhecer a ira que se apossa do meu coração, pois as asas dos anjos caídos se alarmariam com tamanha perversidade. Saia daqui, demônio, e leve consigo seu nefasto consorte. Há dias em que melhor seria morrer."
A diatribe do pai de Franz foi cada vez fazendo menos sentido. Num instante, as paredes do apartamento se tornaram grades. O pai, que se transformara no próprio Lúcifer, assomou contra Jurgen, o acompanhante. Foi só quando Hitler, personificando Nosferatu, surgiu no recinto que a realidade se despedaçou tal qual pó. E a visão de Franz ficou enevoada.
Os olhos embaçados se abriram aos poucos, deixando para trás o pesadelo eivado de reminiscências. No entanto, o que viria em seguida não seria o conforto do despertar na alcova do lar. Na verdade, era como se Franz despencasse num abismo infinito, com breves pausas nas quais levitava seu corpo, congelado no ar. Talvez porque a dor atingira limites sobre-humanos. Talvez porque o cenário revelado pelos seus olhos não permitisse pensar nada além do delírio ou da loucura.
Deitado na extremidade de um enorme quarto, completamente nu, Franz tentava entender como fora parar ali. Não se lembrava dos dias anteriores. Pouco se recordava dos seus afazeres diários. Tinha a certeza de que era médico e de que sua relação com o pai sempre fora conturbada. Tudo o mais eram lembranças embaralhadas.
Em frente a Franz, a cerca de dez metros de distância, havia uma pesada porta de ferro. Pouco se ouvia através dela. Era a única abertura para o mundo exterior, já que não se notavam janelas. O aposento estava mal iluminado. Havia dois enormes candelabros, presos às paredes laterais. O odor de vômito quente que vinha da esquerda chamou a atenção de Franz. Foi só então que ele reparou na decoração do recinto. As paredes estavam tingidas de sangue, gravado por mãos alucinadas, que mui provavelmente externaram a dor e o desespero. Instrumentos de tortura - tais quais alicates, chicotes, cintas de cilício, machados - pendiam do teto às dezenas.
Súbito, um grunhido terminou de acordar o homem. Um anão negro, de cerca de um metro e trinta centímetros, debatia-se, preso a um grilhão fundido na parede esquerda. Naquele instante, Franz sentiu uma dor aguda nas pernas. Levantou um pouco a cabeça e quase regurgitou quando se deu conta de que perdera os dois pés - que jaziam a alguns metros de onde se quedava, além de uma esteira apinhada de pregos afiados, que vedava todo o quadrante no qual estava Franz. Ao lado dos pedaços de carne que um dia serviram de base para seu caminhar, o médico identificou uma chave. Concluiu que ela abriria a porta de ferro.
Mas, como pegá-la? Seria um suplício atravessar a esteira cortante arrastando-se até a chave - um sacrifício ao qual seus sentidos ainda não estavam dispostos. Franz virou-se uma vez mais para o anão:
- O que está havendo? Quem nos trouxe pra cá? Você sabe como podemos sair daqui?
Em resposta, os olhos do pequeno humano encheram-se de lágrimas. Mas não era tristeza que eles revelavam. Mais que isso: seus olhos pareciam dois faróis a iluminar um mar de pavor e, sobretudo, desesperança. O negro abriu a boca e mostrou a Franz o parco pedaço de língua que não lhe permitia mais formular palavra.
Franz tremeu de horror. A que sevícias o pequenino não fora submetido naquele quarto de mazelas? E os outros que vieram antes deles? Decerto, o recinto ecoava gritos de outrora que só cessaram com a morte. Porém, o médico não queria abdicar da esperança. Queria viver.
Um misto de expectativa e dúvida tomou-lhe quando se deu conta de que, acima do anão, a aproximadamente metro e oitenta do chão, erguia-se uma prateleira, sobre a qual havia outra chave. O negro também percebera o objeto e tentava, em vão, alcançá-lo. Não conseguia sequer começar a escalar a parede, pois estava atado à corrente.
Aparentemente desistindo da empreitada, o pequenino virou-se para Franz e apontou-lhe a outra extremidade do aposento. Até então, o médico não percebera a presença de mais duas pessoas: um homem caracterizado como rabino, sentado numa cadeira e olhando fixamente para o infinito - à primeira vista, sem nada que lhe tolhesse os movimentos -, e um adolescente, vestido com um roupão branco e que agora fitava Franz - não demonstrando, entretanto, qualquer reação. Como o rapaz estivesse livre, Franz pediu que se aproximasse. O jovem andou alguns metros e parou diante da esteira de pregos. Depois, acocorou-se e ficou mirando o médico aleijado, que o interpelou:
- Amigo, por favor. Que diabos está acontecendo? Você pode nos tirar daqui?
O rapaz sorriu. Franz continuou:
- A gente pode pegar uma dessas duas chaves. Elas abrem aquela porta. Você sai e pede ajuda. Chama a polícia pra prender quem fez isso com a gente.
O jovem gargalhou alto. Em seguida, começou a se movimentar circularmente, como se imitasse um macaco. Durante o patético périplo, emitia sons desconexos:
- Nhan-gá, nhá-nhá, tã! Tará... É...
Em poucos segundos, ficou tonto. Meio grogue, foi em direção ao anão e despejou nele um vômito vermelho. O negro chorou mais alto, agora de raiva. Estava claro para Franz que o jovem era um débil mental. Não tinha sequer noção da gravidade do quadro. Pulava e ria; ria e se jogava no chão; depois, parava e assim ficava por alguns minutos. Provavelmente, o torturador preservara-lhe a liberdade de movimentos para que atormentasse os demais convivas. Não havia mesmo qualquer chance de o demente se apossar de uma das chaves e resgatá-los do inferno.
Já o rabino permanecia uma incógnita. Franz chegou a lhe gritar, mas ele nem se movera. Ao que parecia, estava catatônico. Pendurada ao pescoço do judeu, havia uma terceira chave.
Depois de alguns minutos de silêncio sepulcral, o débil mental ajoelhou-se diante do rabino. Abriu a braguilha da calça do judeu e iniciou uma sôfrega massagem em suas partes íntimas. Apesar da passividade do catatônico, segundos depois seu pênis já estava ereto. Posto que o momento fosse de tensão, na medida em que nada se sabia do agressor que os aprisionara, Franz sentiu-se especialmente excitado com a insólita cena. Enquanto isso, o anão negro balançava nervosamente a cabeça em sinal de repulsa.
Com o membro desembainhado, o rabino passou a ser chupado pelo demente. Não tardou para que gozasse, lambuzando o rosto do infeliz adolescente - que, àquela altura, fora abandonado por qualquer tipo de discernimento. Franz observava os movimentos do rapaz com atenção.
Foi então que a porta de ferro se abriu. A luz forte que emanava do aposento contíguo obnubilou por um breve instante a visão de Franz e dos demais. Para a surpresa do médico, entrou uma loira, com um pano na mão. Era bonita, alta, com braços espessos e uma feição austera. Vestia um avental de dona-de-casa. A misteriosa mulher deteve-se por alguns instantes, olhando com reprovação para o débil mental - que continuava sorrindo e pulando.
Nervosa, a loira agarrou o demente pelos braços e esfregou a flanela contra seu rosto aparvalhado, retirando as gotas de esperma que sobraram em volta dos lábios. O rapaz se debatia, mas nada podia fazer contra a mulher, que se impunha pela força física. Depois, a torturadora puxou de uma das paredes um soco inglês e desferiu um golpe que acertou em cheio o nariz do doente mental, que tombou sangrando, desmaiado.
Àquela altura, o medo de Franz atingira o paroxismo. Imaginara que seria a próxima vítima. Tentava devassar o que ocorria no outro recinto - sem sucesso, já que o corpanzil da mulher obstruía sua visão.
Com o demente desacordado, a torturadora escolheu uma das várias machadinhas existentes no quarto e, depois de despir o pobre diabo, arrancou-lhe o pênis - com prazer, e suas reações não deixavam dúvida quanto a isso. Encharcado de sangue, o jovem voltou a si - se assim se pode dizer de um esquizofrênico - e pôs-se a se contorcer e gemer.
O passo seguinte do verdugo fêmea estremeceu Franz. Ela recolheu o pênis e, indo em direção ao médico, fez menção de que ele deveria comer a asquerosa iguaria. No entanto, antes que concretizasse seu doentio intento, a mulher parou, como se lembrasse algo importante. Virou-se e, em pânico, correu em direção ao quarto contíguo.
Agora Franz podia ver o que se passava além da porta de ferro. A bem da verdade, não era um quarto o que o umbral da morte escondia, mas uma cozinha - uma dessas que se vêem em casas urbanas de classe média, com todo tipo de utensílios. Abaixada junto ao fogão, a loira abraçava uma criança de não mais que 3 anos de idade. Acima, uma panela expelia fumaça. Por pouco, a água fervente não banhara em dor o corpo da menina.
- Minha queridinha. Mamãe nunca se perdoaria se você se machucasse. Mamãe te ama, tá?
Ao ouvir tais palavras, o desalento consumiu Franz e, paralelamente, franqueou-lhe acesso às memórias que restavam perdidas. Não era mesmo capaz de compreender as razões da alma humana. Não que fosse maniqueísta, mas pensava que até as contradições teriam vergonha do excesso. Imaginou que a exceção de seu pai só servia para confirmar a regra. Enganara-se. Sabia agora que dali não escaparia com vida. Assim como quando revelou ser homossexual e viu o namorado ser assassinado pelas mãos do probo e religioso genitor, agora tinha certeza de que há dias em que melhor seria morrer.