O Feio e a Bela
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Agora o excêntrico Dr. Carlos Veiga era um cirurgião plástico renomado. E embora muito se esforçasse para esquecer-se do outrora, seu passado complicado ecoava em sua mente. Lembranças de sua juventude, do tempo em que a exclusão o levou a estudar e se elevar na medicina.
 
 Mesmo quando ainda fazia o colegial, era ridicularizado e considerado o nerd da sala. E embora feio e de incomoda aparência, sua inteligência era apreciada pelos professores e colegas, não foi diferente quando ingressou na faculdade de medicina.
 Se mantinha sim isolado dos demais, sabia que sua aparência não atraia as colegas. Baixinho, careca e manco de uma perna, era excluído, encaravam-no com nojo e asco. E enquanto os encantos da juventude dominavam as badalações dos de sua idade, ele se mantinha reservado, estudando mais e mais para enfim dar razão a sua vaga existência.
 
 O tempo passou tão depressa que nem deu tempo de se preocupar com tais adversidades. Estava já com 52 anos quando conheceu Eve. Eve tinha apenas 28 anos e era tudo que um homem queria ter. Alta, magra, pernas torneadas e com um rosto de fazer inveja. Eve se candidatou ao cargo de secretaria e ao vê-la, o doutor não teve duvidas em contrata-la.
 Não foram dois meses e estavam saindo para jantares em restaurantes caros e passeios em seu barco, mais seis meses e ele a pediu em casamento. Sabia que estava fazendo uma loucura, mas não resistiu e resolveu que viveria o momento, sabia que um dia a mulher Eve no auge de seus 28 anos o deixaria, mas não queria pensar nisso naquele momento.
 Já no primeiro ano ele percebeu que Eve gastava mais que uma mulher normal. Muitas vezes chegava em casa e ela não estava, nessas ocasiões, seu celular nunca estava ligado. Até que um dia Eve chegou de mais uma noitada e o surpreendeu com um pedido. Um pedido que ele bem sabia que um dia ouviria:
  Carlos eu quero o divorcio.
 Aquele súbito pedido soou como uma ordem, uma frase rápida e rasteira, um jogo de palavras que fez o cirurgião feio se perguntar e perguntar, em busca de uma resposta que ele já sabia:
  Mas por que?                                         
  Ora, Carlos... Não pode ter pensado que eu continuaria casada com você!
Eve estava bêbada. Suas palavras ríspidas cuspiam arrogância e sarcasmo. Carlos ponderou para não reagir violentamente. Se conteve e calmo, tentou conversar em indagações:
  Claro que pensei Eve! Te escolhi para ser minha mulher!
  O que estar querendo? Mostrar aos seus colegas que conseguiu casar com uma bela mulher? Foi para isto que lhe servi? Um troféu caro para provar aos outros que até mesmo uma aberração como você consegue uma mulher como eu?
 Ele que sempre fora humilhado, soube administrar toda aquela agressão verbal. Respirou fundo e perguntou sereno:
  O que mais você quer Eve? Posso lhe dar tudo que o que quiser...
  Já lhe disse o que quero: O divorcio!
  Infelizmente não posso concordar...
  Então peço eu o maldito divorcio!
 A persuasão ecoou firme na cabeça do cirurgião. Decidiu ele usar seus próprios recursos. Junto deles, sentiu que era hora também de ser sarcástico e ríspido com a vadia suja:
  Na verdade, não creio que seria aconselhável, Eve... A não ser que você queria voltar a sua vidinha mais ou menos de secretaria, talvez você não tenha lido devidamente as clausulas do contrato do nosso casamento...
  Como assim?
  Caso peça o divórcio, você sai do casamento assim como entrou, exatamente sem nada! Planejei isto caso aja uma inconveniência, assim como esta!
  Seu desgraçado! Como pode fazer uma coisa dessas comigo?
  É muito simples: Fiz porque a amo.
  Pois eu o odeio! Sabia disso? Eu o desprezo!
 Carlos sorriu sinicamente. Sinicamente, pois também, de certa forma, se odiava:
  E eu a amo muito.
 
 Eve sabia que não conseguiria mais viver sem os luxos que o casamento lhe proporcionava. Tinha seu amante Ray, com quem já vivia muito antes do casamento. Sabia que ele não ficaria com ela se o luxo que ela lhe dava acabasse, tinha que arranjar uma maneira de se livrar de Carlos e ficar com o seu dinheiro, não voltaria a viver a vida de antes quando precisava contar cada centavo para sobreviver e ainda bancar Ray.
 
 Eve estava na cama do amante observando ele sair do banho inteiramente nu. Ele tinha um corpo bonito, esguio e forte. Eve adorava a maneira como ele fazia amor. Desconfiava que Ray tinha outras mulheres, mais nenhuma podia dar o que ela dava. O DINHEIRO DO MARIDO.
 Enquanto pensava, Ray se aproximou da cama, correu os dedos ligeiros em sua pele e lhe disse.
  Esta ficando com algumas rugas, meu bem... Mas até que são atraentes.
 E como toda mulher, Eve não gostava de se sentir velha...
 Era quase nove horas quando Eve voltou para casa. Carlos estava fazendo uma carne assada no forno. Beijo-a no rosto.
  Olá querida, fiz um dos seus pratos prediletos. Teremos...
  Carlos, quero que você tire essas rugas do meu rosto.
 Ele piscou os olhos aturdido.
  Que rugas?
 Eve aproximou-se do marido apontou para a área em torno dos olhos e respondeu:
  Estas rugas!
  São as linhas do riso, querida. Extremamente comuns. Eu as adoro.
  Mas eu não! Detesto-as! Quero que as tire de meu rosto!
  Meu amor... É um procedimento totalmente desnecessário...
  Pelo amor de Deus tire essas malditas rugas! Não é isso que você faz para ganhar a vida?
  Sim. Mas... Está bem, querida, se isso a faz feliz, eu as tiro!
  Quando? – Perguntou ela eufórica.
  Dentro de seis semanas. Estou com uma programação cheia e...
  Não sou uma de suas malditas pacientes! Sou sua mulher e quero que faça a operação agora! Amanhã!
  A clinica estar fechada aos sábados.
  Pois então abra!
 Eve estava ansiosa para livra-se das rugas, logo em seguida se livraria dele, isso era fato.
  Vamos para o quarto por um momento. – pediu Carlos.
 Diante de uma forte luz no quarto, Carlos examinou-lhe o rosto meticulosamente. Num instante passou de um homenzinho insignificante para um brilhante cirurgião. Eve pode sentir a transformação.
  Não há problemas. Farei a operação pela manhã.
 
 Os dois foram a clinica na manhã seguinte.
  Geralmente conto com a ajuda de uma enfermeira. Mas isso não será necessário com uma intervenção tão pequena.
  Já que vai me operar, bem pode aproveitar e fazer algumas coisas com isso – disse Eve puxando a pele do pescoço.
  Se você assim quiser querida, esta certo. Vou lhe dar uma coisa para dormir, a fim de não sentir dor e desconforto. Não quero que o meu amor sinta qualquer inconveniência.
 Eve observou encher uma seringa e habilmente aplica-lhe a injeção Não se importaria de sentir dor, estava fazendo aquilo por Ray.
 Na manhã seguinte, despertou numa cama, no quarto dos fundos da clinica. Carlos estava sentado numa cadeira ao lado da cama.
  Como foi? – perguntou com o rosto enfaixado.
 A voz de Eve estava enrolada de tanto sono.
  Correu tudo bem. – respondeu ele, sorrindo – Ao meu modo.
 Eve acenou com a cabeça e tornou a mergulhar no sono.
 Carlos estava presente quando ela acordou de novo, muito mais tarde.
  Vamos ter que deixar as ataduras por mais alguns dias.
 A mulher não aguentava mais de ansiedade, já estava no hospital a oito dias e o único meio de comunicação com Ray, era por telefone. Apesar da resistência de Carlos ela tinha conseguido com que ele instalasse um telefone em sua mesa de cabeceira.
 Acordou cedo na manhã de sexta- feira e ficou esperando por Carlos impacientemente, era o dia de tirar as ataduras do rosto.
  Já são quase meio dia – queixou-se ela – onde diabos você se meteu?
  Desculpe, querida. Passei a manhã inteira numa operação e...
  Não estou interessada nessas coisas! Tire logo essas malditas ataduras! Quero ver como fiquei!
  Esta bem. – concordou o feio com um leve sorriso.
 Eve sentou-se na cama e ficou imóvel, enquanto o esposo removia habilmente as ataduras de seu rosto. Carlos recuou para estuda-la e ela viu a satisfação nos olhos dele.
 — Você esta perfeita!
  Dê-me um espelho! Quero prestigiar!
 Ele saiu do quarto apressadamente e voltou um momento depois com um espelho na mão.
 Eve levantou o espelho lentamente e contemplou seu reflexo.
 O grito que soltou, foi ouvido por todo hospital.
    
A infiel tentou cometer suicídio no dia em que vira seu rosto no espelho. Engoliu todo um vidro de pílulas para dormir. Mas Carlos lhe bombeara o estomago e a levara para casa, vigiando-a atentamente.
 Quando ele ia para o hospital, havia enfermeiras para vigia-la, dia e noite.
  Por favor! Deixe-me morrer! – suplicava Eve ao marido - Por Deus, Carlos, não quero viver assim, você me transformou em um monstro!
  Você esta mais bela agora, meu amor... E eu sempre a amarei.
  A imagem do seu rosto estava gravado no cérebro de Eve. Depois de alguns dias ela convenceu Carlos a dispensar as enfermeiras, ficando somente uma velha chinesa que não falava sua língua. Não queria que ninguém a visse assim
 Carlos era seu único vinculo com o mundo. Eve sentia pavor que ele a deixasse. Todas as manhãs o cirurgião feio se levantava as cinco horas para ir ao hospital, ela sempre levantava antes para lhe preparar o café. Preparava o jantar todas as noites. Quando ele se atrasava, Eve ficava apreensiva.
  E se ele não voltar mais?
 Quando ouvia a chave na porta, ela corria para abri-la, jogando-se nos braços dele e apertando-o com força. Jamais sugeria que fizessem amor, pois tinha medo que ele pudesse recusar.
 Houve uma ocasião em que ela perguntou timidamente.
  Já não me puniu o bastante, querido? Não vai endireitar o meu rosto?
 Carlos contemplou-a e disse orgulhoso.
  Fiz o melhor trabalho de minha vida, querida! Nunca mais poderá ser reparado!
 A medida que o tempo foi passando, Carlos tornou-se mais exigente, mais autoritário, até que Eve acabou transformando-se numa escrava atendendo-lhe a todos os caprichos. A feiura a prendia a ele mais que grilhões de ferro, e ele bem sabia sobre o que era ser escravo e prisioneiro da própria aparência.
 
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 O que e qual é o padrão de beleza imposto pela sociedade? Precisamos realmente estar belas e “recauchutadas”, reformadas e lapidadas com bisturi para a satisfação dos homens abutres?
 Eve era bela, mas ousou ir mais além... Ousou agradar o amante bonitão e se arriscou no afiado bisturi do marido feio... Vale apena se reconstruir? Acho que não...
 
 
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Zeni Silveira
Enviado por Zeni Silveira em 08/11/2013
Código do texto: T4562799
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