UM CAUSO AO REDOR DA FOGUEIRA

O luar incidia discretamente sobre o grupo ao redor da fogueira. Liderando a reunião, a velha, de rosto tão sulcado quanto o solo arenoso do agreste, pitava o canudo amadeirado de um rústico cachimbo. O tom cinzento da névoa mesclava-se às madeixas volumosas e desgrenhadas da mulher, destacando ainda mais as órbitas estranhamente amareladas de seus olhos. Ela era o centro das atenções. O único som que se ouvia era o crepitar dos gravetos em brasa. O silêncio permaneceu por um bom tempo até que, subitamente, um dos atentos espectadores se fez ouvir.

- U qui a sinhora vai contá hoje prá nós, Bá?

- Ô, meu piqueno, hoje a véia Bá vai contá uma história qui aconteceu há muito tempo. Numa noite quenti iguar a essa. Ondi o zoio do céu ispiava prá nós de modo arregalado e pálido qui nem cera. O causo aconteceu cuma moça recém disposada. Alegre e brejeira, ela si sintia tão filiz quanto uma turma di pirilampo na escuridão. Mas, tar filicidade num durô muito não, mulecada. I ocês sabem pruquê?

- Não, Bá. Nós num sabemo não. Pruquê a moça dexô di sê filiz?

- Ela si aquietô pruque discubriu qui num pudia fazê u qui mais si ispera duma muié.

- I u quié, Bá? U qui a moça num pudia fazê?

A velha tragou forte o cachimbo e soltou uma baforada espiralada antes de responder...

- Ela num pudia dá um fio pru marido dela. A maió das vregonhas pruma isposa. A moça discrubiu qui seu ventre era mais seco qui um coração amargurado. Ela feiz u qui pudia prá tentá dar um mulequi pru isposo. Foi im tudu qui era dotor. Feiz promessa i simpatia. Cumeu i bebeu coisas qui dão um nó nu istrombagu só di imaginá.

- I u qui acunteceu cum ela, Bá?

- Ela si disisperô. Sintindu qui seu casamento estava pur um fio, ela feiz a pió coisa qui um ser humanu tementi a Deus pudia fazê: A muié chamou pelo cão.

Os meninos arregalaram os olhos. Não pelas palavras da velha mulher, mas pela expressão do seu rosto ao proferi-las.

- A moça chamô pelo cão. E o dito cujo respondeu. Sem qui ela pricisasse si ixplicá, o danado já sabia u qui ela quiria. Então, u pé-di-bode mandô ela percorrê sete istrada di barro, di quatro qui nem um animar, até um riachu qui us bicho matava a sede. E lá, nessas águas, ela pricisava saciá a ardência di sua garganta tamém. I assim ela feiz. Sob as benção du zoio amarelado du céu noturno. Assim, não tardô para qui a muié ficasse prenha. I num foi só isso. Ela ganhô um bebê atrás du otro. Seu ventre ficô mais fértil du qui terra preta. Mas, aí surgiu u pobrema da muié. Ela pricisava intregá seu sétimo varão pru cão. Mas, istano mais filiz du qui nunca, a moça si negô a intregá a criança recém nascida pru capiroto.

- I u qui houve, Bá? U qui si assucedeu cum a moça?

O garoto agarrava os próprios cabelos, não conseguindo conter a aflição diante da narrativa.

- Nada. Num aconteceu nada cum a muié. Mas, cum u minino cuja alma pertencia ao cão, cum esse sim. Quando u muleque completô treze anos, seu espírito si tornô vítima da mais odiosa das mardição: ele foi abraçado pelo mal du demônio da lua cheia. Vagano como uma besta a cada mês, ele passô a consumi a carne e o sangue di quem si intrometia im seu caminho. A começá pelo próprio pai i os seis irmão.

- Ele devorô toda a famia, Bá?

- Não. A mãe foi porpada.

- Pruquê?

- Simplis. Pruque a muié foi a razão di toda a mardição.

- I dispois dissu tudu?

- Eles passaram a vagá im busca di uma cura pru mal lançado pelo maldito. O cão é chamado assim num é à toa.

- I tem, Bá? Tem remédio pra essa mardição dus infernu?

A velha suspirou de modo pesaroso, enquanto seus olhos rasos buscavam o sorriso debochado da lua a brilhar no céu.

- Tem, criançada. Tem uma solução sim. Um remédio dificir di si achá nus dia di hoje – após uma breve pausa, ela continuou – para qui u amardiçoado possa si vê livri du cão, ele pricisa consumi a inocênça di sete criança, todos varão, fios du memo pai e da mema mãe, só assim u coisa-ruim o dexará im paz.

- Mas, Bá. Nós somo sete mininos, fios di nossos pais.

- Eu sei, minino. Eu sei. Pur isso istô aqui. No dia certo. Na hora certa.

- Como assim, Bá? Qui baruio é esse?

O som aterrador, que fez tremer a terra e despencou as folhas ressequidas da jabuticabeira, uniu os irmãos num abraço coletivo.

- Esse uivo, crianças, é meu fio cantano alegre pruque logo, logo, ele vai dexá prá trás a mardição...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 02/11/2013
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