A Maldição do Pastor H

O que aconteceu a mim e aos meus amigos naquele verão até hoje mexe comigo. Nós tínhamos entre onze e treze anos e estávamos de férias. As férias de fim de ano. E naquele tempo as aulas só retornavam em fevereiro, ou seja, sessenta dias de pura diversão. No entanto, as manhãs de domingo azedavam o meu humor, mesmo nas férias, pois era o dia da escola dominical, o que queria dizer que eu não iria jogar bola como os demais meninos da quadra em que eu morava. E isso me deixava fulo da vida.

Eu só retornava ao meio-dia, quando a pelada já tinha acabado e a molecada estava sentada na ponta do bloco chupando dindin, descalços, sem camisas, suados e felizes pra caramba. Aí eu chegava de calça social, botas, camisa de manga comprida e tentando esconder minha insatisfação. Se eles percebessem que eu não gostava de frequentar os estudos bíblicos, eles pegariam ainda mais no meu pé. Na verdade, eu tentava demonstrar um prazer danado de ter ido ao culto. E exaltava as brincadeiras que aconteciam lá, o aprendizado, e principalmente as curvas da dona Lindalva, a mulher do pastor H. Uma bela morena, - que na época devia ter vinte e cinco anos, não mais que isso -, com cabelos pretos e lisos que iam até a sua redonda e firme bunda. Ela tinha uma boca carnuda, e fazia um biquinho muito sensual quando falava, e transpirava bem em cima do lábio superior, formando um rastro de bolinhas de suor que me deixavam maluco. Fiquei hipnotizado, muitas vezes, olhando aquela boca.

Com estes argumentos, falando sobre a gostosura que era a dona Lindalva, consegui persuadir o Júlio e o “Penca” a irem comigo a igreja. Assim meu mau humor diminuiu um pouco. Agora eu tinha dois companheiros para dividir meu martírio. Num desses domingos resolvemos seguir a dona Lindalva até a sua casa, que ficava acoplada ao prédio da congregação. Pulamos o muro e nos escondemos no quintal. Ouvimos quando ela ligou o chuveiro. A possibilidade de vê-la do jeito que veio ao mundo deixou-nos muito excitados. Os fundos do banheiro ficavam para área de serviço. O enxadrezado de combogós da parede do cômodo era perfeito para que a espionássemos. Aquela visão foi a melhor coisa que me aconteceu em minha infância, se eu desconfiasse do que me aconteceria alguns dias depois, eu teria ficado muito mais tempo contemplando aquela cena. Nada que eu tenha visto naquela época se comparou a imagem do corpo nu de dona Lindalva. O grande problema foi que o pastor H nos pegou no flagra, quando revezávamos em cima de um banco de madeira, que só cabia um de nós, para olhar a mulher tomando banho. Quando o pastor chegou foi uma correria daquelas. Ele nos xingou de muitos nomes feios, usando um vocabulário chulo, palavras indignas para um sacerdote. Correu atrás de nós e ainda conseguiu acertar um forte cascudo no Júlio, quando ele tentava escalar o muro. O Júlio era bem gordo e não conseguia ser tão ágil como eu e o “Penca”. Do outro lado do muro, eu e o “Penca”, escutamos o que ele praguejou antes de deixar Júlio ir embora: “Vocês vão se arrepender disso, Deus vai se vingar por mim”. Aquilo entrou nos nossos ouvidos e ecoou por muitos anos.

Hoje em dia eu não me lembro do que ele disse exatamente, mas foi algo com este teor, sei que tinha alguma coisa sobre “vingança divina”. No outro domingo inventei uma indisposição e não fui à igreja. Quando meus pais voltaram eu estava preparado para tomar a maior pisa da minha vida, mas, nada aconteceu. O pastor H não mencionou o assunto durante a pregação e não falou com os meus pais como eu imaginava. O culto era frequentado por inúmeras famílias, e menino era o que não faltava, eram muitos, quase todos da mesma idade. Acredito que isso foi o que fez o pastor não saber quem eram os invasores de sua casa e da intimidade de sua esposa. Fiquei mais tranquilo, todavia, a calmaria durou pouco. Uma semana depois de sermos pegos brechando a mulher do pastor, eu, o Júlio e o Penca, sofremos com estranhos e cruéis acontecimentos.

O primeiro a padecer com a suposta maldição do pastor foi o “Penca”. Luciano era o nome dele, era conhecido como “Penca” por que sempre levava uma penca de bananas para lanchar na hora do recreio do colégio. Ele era o mais velho da turma, tinha treze anos, e se gabava de já ter transado com uma empregada da casa dele. O cara tinha um matagal de respeito lá nas partes íntimas, enquanto eu e os outros meninos éramos praticamente carecas de pentelhos. Ele era o maioral.

Num fim de semana ele foi com seus pais visitar um tio, irmão de sua mãe, numa chácara afastada da cidade. Seus pais entraram enquanto ele ficou brincando com o filho do dono do sítio vizinho. Quando “Penca” foi entrar, a porteira que dava acesso à casa da chácara estava fechada. Ele resolveu pular a cerca. Já era noite e ele esqueceu-se de “Buk”, um dobermann idoso e marrom, que vigiava aquele espaço. Antes que chegasse ao meio do caminho ouviu os latidos enfurecidos e viu o cachorro vindo como um torpedo em sua direção. Ele voltou-se para trás e começou a correr, ao mesmo tempo em que gritava: “Calma, ‘Buk’, sou eu, ‘Buk’, o Luciano, ‘Buk’, calma, calma...”. O senil cão parecia ter problemas de vista e olfato e não reconheceu o sobrinho de seu dono. Quando “Penca” tentava pular a porteira, com um pé na parte de cima do portão e levantando a outra perna, na tentativa de se lançar para o lado de fora, “Buk” atacou. Uma mordida certeira e dolorosa bem no meio das pernas do “Penca”. Isso mesmo, o cachorro mordeu lá, no saco do “Penca”. Rasgando seu short, sua cueca e seus bagos. O saco escrotal foi retalhado, deixando as bolas do “Penca” penduradas como um ioiô, seguros apenas pelo epidídimo. Um lago de sangue se formou na terra seca abaixo de meu amigo, ao passo que ele urrava de dor e desespero, tentando proteger com as mãos o seu saco, que não existia mais, de novas investidas do cão. Quem me contou estes detalhes foi o próprio “Penca”, quando fui visitá-lo durante sua convalescença. Ele foi levado as pressas para o hospital e foi operado. Reconstituíram o saco dele, porém, o “Penca” nunca mais foi o mesmo. Júlio também estava lá durante a visita e foi ele quem nos lembrou das imprecações do pastor contra nós. Não dei muita importância às suspeitas de Júlio, contudo, ele estava seguro que nós estávamos sobre uma maldição.

Eu tive pesadelos medonhos com o saco do “Penca”. Cara, aquilo me deixava nauseado. Eu começava a sonhar com a dona Lindalva tomando banho e, do nada, aparecia o saco dilacerado do “Penca” em minha frente, com suas bolas ensanguentadas balançando no ar como dois balões vermelhos de festa de criança. Pense no desespero que eu ficava. Eu acordava assustado toda noite e relutei em dormir por muito tempo. A visão dos bagos dançantes de meu amigo não era algo que eu apreciasse.

Vinte dias depois da nossa visita ao “Penca”, Júlio sofreu um grave acidente.

Aquele dia começou bem agitado, os moradores de um prédio da outra quadra estavam protestando contra a construção de um posto de gasolina que se realizaria bem em frente ao edifício deles. Eu e o Júlio nos juntamos às manifestações, alguns dos nossos amigos moravam naquele bloco. Emissoras de televisão apareceram para gravar a população depredando uma casa de madeira que serviria como moradia dos operários durante o período de obras. A gravação passou no jornal local do meio-dia. Foi uma grande algazarra. No fim da tarde todo mundo estava eufórico e comemorando. A molecada estava pendurada no que restou da casa destruída, ficou apenas o esqueleto, a armação, e eram nestes restos de paus, vigas e madeirites, que os meninos estavam empoleirados, pulando e gritando palavras de ordem. Alguns estavam nos pontos mais altos, há uns três metros de altura. Júlio era um desses, apesar de sua robustez, e sorria triunfante. Ele cantava e pulava feliz quando a peça de sustentação em que ela estava se rompeu, fazendo com que ele despencasse como uma jaca madura. Fosse só isso já seria trágico, contudo, a coisa foi pior, muito pior. Quando a viga se rompeu uma enorme farpa desceu com ele, enfiada no lado externo de sua coxa, com o impacto de Júlio no chão o pedaço de madeira perfurou ainda mais sua perna, saindo transversalmente, depois de trespassar sua pele, entrando em seu ânus. O Júlio, impressionantemente, ainda conseguiu se levantar, mesmo com a estaca enfiada profundamente em suas entranhas. O sangue jorrava por entre suas pernas, misturada com merda e caroços de feijão não digeridos. O futum que tomou conta do lugar era repulsivo. O intestino grosso também foi afetado. Ele pulava e gritava comigo com seus olhos injetados de ódio: “Tá vendo Pedro, eu te disse que nós fomos amaldiçoados. E a culpa é sua, foi você que levou a gente naquela maldita igreja. Olha aqui o que aconteceu comigo, olha, porra. Filho da puta. Olha pra mim, caralho!” Eu o olhei. Ele chorava constrangido. A vergonha de ter um objeto introduzido em sua bunda o magoava mais do que a dor que ele sentia. Depois de alguns minutos ele desmaiou, tinha perdido muito sangue. Entrou na sala de cirurgia e ficou lá por sete horas, ficou em coma por três dias, mas retornou e se recuperou a contendo, entretanto, nunca mais falou comigo. Ele perdeu uma boa parte de seu intestino, e por isso sua alimentação era regrada, magra e em pequenas porções, enfim Júlio emagreceu.

Até hoje eu me lembro da expressão de seu rosto voltada para mim, uma mistura de sofrimento, pânico, ira e desprezo, desprezo por mim. Aquele olhar me atingiu tão duramente quanto às palavras que ele me cuspiu.

Cara, eu vou te falar uma coisa, as acusações de Júlio me pegaram de jeito. Fiquei muito abalado, e as noites que já eram muito ruins ficaram insuportáveis. Os pesadelos que me perseguiam eram um emaranhado de visões grotescas. Começava com Dona Lindalva nua no banheiro gargalhando e apontando para Júlio, que pulava em um canto como um canguru, com uma seta de madeira empalada em seu rabo, “Penca”, em outro canto, chorava segurando seus testículos pendurados. E eu ficava ali no meio daquilo sem saber o que fazer. De repente o banheiro começava a encher de sangue e tudo escurecia, e eu, o Júlio e o “Penca”, éramos engolidos por esse sangue, ao passo que o pastor H e sua esposa, agora do lado de fora da casa, nos olhavam pelos combogós. Eu só conseguia ver os olhos vermelhos deles, ardendo como brasa, pela parede vazada. Uma risada sinistra explodia de suas gargantas, fazendo com que eu acordasse suado de pavor.

Depois disso adoeci e fiquei o resto das férias em casa. Júlio não quis me receber quando fui visitá-lo na clínica, e quando finalmente voltou para casa não atendeu meus telefonemas. No primeiro dia de aula descobri que “Penca” e Júlio não estudavam mais lá. Fiquei sozinho.

Uma semana após o início do ano letivo a minha vez de pagar por espreitar Dona Lindalva chegou. Eu estava caçando passarinho com meu estilingue de liga de soro e forquilha de goiabeira, num matagal que ficava ao lado do meu bloco, e acertei em cheio no peitoral de um bem-te-vi. Corri eufórico na direção de onde ele tinha caído. Nunca tinha acertado um passarinho daqueles, ainda mais a aquela distância, foi sensacional. Eu caçava pardal e beija-flor, e já tinha até tentado comer o coração de um colibri, que segundo a lenda me faria ficar com uma boa mira, não consegui comer, tive nojo, ainda assim, sempre fui bom de mira. Também matava calangos, quando eles saiam de suas tocas para esquentar o sangue em baixo do sol sufocante do verão do planalto central.

Aquele passarinho seria um troféu e tanto, e eu tava doido para mostrar para o Júlio e o “Penca”, talvez nossa amizade voltasse ao normal com este meu feito. Ninguém da nossa idade tinha realizado uma façanha dessas, só os carinhas mais velhos. Meu coração estrondava no peito enquanto eu corria em direção ao pássaro morto, eu ia a toda velocidade e não percebi um tronco caído no meio do caminho, e como num enredo de um filme de terror sádico e sangrento, tropecei nele e cai de cara no chão. Antes de o meu rosto tocar o solo, meus olhos foram atingidos por cacos de vidros de uma garrafa de cerveja quebrada. Os fragmentos perfuraram os meus olhos com uma precisão cirúrgica. Nenhuma outra região do meu rosto foi afetada, não tive nenhuma laceração, corte ou contusão, foi como se os vidros estivessem ali só pra isso, há muito tempo, esperando ansiosamente por aquele momento. Levantei desesperado, sentindo uma dor aguda e ardente. Corri com meus braços para frente, tateando o ar, tropeçando, caindo e levantando, até chegar ao meu prédio. Minhas faces estavam banhadas de sangue, que pingavam dos vidros amarronzados cravados em minha vista.

No hospital os médicos fizeram o que podiam, contudo, sem sucesso. Fiquei cego aos onze anos de idade. “Penca” me visitou uma vez, falei a ele sobre a estilingada certeira. Ele pareceu impressionado. Nossa amizade dura até hoje. Júlio não apareceu, mas, mandou um seco e sombrio bilhete que dizia: “Enfim seu dia chegou, imaginei muitas vezes como seria. Melhoras. Júlio”. Nunca mas o encontrei ou soube alguma coisa sobre ele.

Fiquei em pânico quando minha mãe avisou-me que o pastor H viria me visitar e relutei muito para aceitar, quase conto sobre a espiada que demos em dona Lindalva, acabei não contando. Encarar o pastor seria mais fácil do que envergonhar minha mãe com uma estória daquelas. E se eu falasse sobre a tal maldição, aí sim que pioraria tudo. Resolvi aceitar a visita.

Ele chegou ao fim da tarde de um domingo. Afagou meus cabelos. Fez perguntas sobre como eu me sentia. Respondi gaguejando, estava com a boca seca de medo. Eu não podia vê-lo, mas conseguia sentir sua presença, e imaginava ele vestido com seu terno preto impecável, seus cabelos fixados com gel e segurando a bíblia em uma das mãos. Minha mãe anunciou que sairia para comprar um lanche e ficamos sozinhos no quarto do hospital. Senti-o chegar mais próximo de mim, muito próximo mesmo, praticamente encostando seus lábios na minha orelha; então ele disse: “Finalmente a sua alma e a de seus amigos foram salvas, meu filho”. “O quê?”; perguntei assustado. “Cale-se, e escute-me!”. Ele disse com certa ira na voz, e continuou: “Mas ele foi ferido por nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades, o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos curados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Isaías, parágrafo cinquenta e três, versículos cinco e seis”. Parou um instante, respirou fundo e concluiu. “Jesus sofreu para nos salvar, vocês foram castigados para salvarem suas almas. Eu implorei a Ele, e Ele me ouviu. O Senhor é misericordioso aos seus seguidores e impiedoso aos pecadores, em toda sua glória, amém.”

Fui assombrado por muitos anos pelas palavras do pastor H e por sonhos ruins que insistiam em me perseguir. Hoje, homem feito, o que me assusta de verdade é saber que existem pessoas que acreditam serem detentores de poderes metafísicos que possam mudar destinos, assim com o pastor H pensava, e que o seu Deus magnífico, que ele tanto pregava como sendo o amor em plenitude, seria aliado dele na conspiração do universo contra três crianças. Atualmente tenho uma convicção absoluta que o que nos aconteceu não passou de uma infeliz e trágica coincidência, explicada unicamente pela impetuosidade e impulsividade infantil. Ou será que estou enganado?