NOTURNO - DTRL 13
Sempre me considerei um misantropo. Outros também me consideram. Trago o que possuo numa mochila com muita sujeira acumulada e já bem gasta pelo tempo. Ela e a gaiola onde transporto um animal de estimação são meus únicos e inseparáveis companheiros.
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Mesmo sabendo do falatório acerca do meu gênio intratável, o dono daquele barco de pesca contratou-me. Acho que por ser uma tripulação relativamente pequena, quatro homens mais ele, o dono, imaginou que eu não teria tantas oportunidades e nem tempo para arrumar desavenças. Fui dividir o exíguo espaço da cabine com um sujeito tão quieto quanto eu, o que, no caso, considerei uma vantagem, pois não teria motivos para ser desagradável com ele. Jogamos uma moeda. Perdi o cara e coroa. Beliche de cima foi o que me restou.
Tudo resolvido partimos rumo ao mar aberto e à pesca. Seriam quinze dias de uma rotina pesada e relativo desconforto, mas longe da chatice da espera nas amuradas do cais por um contrato qualquer. E sem a conversa chata daqueles sujeitos que mais pareciam um enxame de urubus à cata de qualquer oferta de carniça num daqueles barcos suspeitos. Tratei de acomodar o mais que pude minha mochila e a gaiola onde mantinha RP a salvo de olhares curiosos, protegido por um pano escuro em volta.
No local escolhido pelo patrão lançamos os equipamentos, esperamos e os recolhemos. Os peixes foram para o porão antártico destinado à sua conservação. Nós, para o desconforto dos beliches. A quietude noturna bateu rápida. E o sono do meu parceiro também. Ao contrário dele, sofro d’uma insônia crônica e de terrores noturnos. Ajustei minha lanterna à cabeça, apanhei o canivete e calmamente fiz um pequeno corte na ponta do dedo médio da mão esquerda. Ergui o pano da gaiola e pela fresta entre as hastes ofereci-o ao RP. Protegi o pequeno corte e mergulhei na leitura.
Segunda noite: cedo para as cabines-dormitório. Ergui o pano escuro que protegia a gaiola de RP e abri a portinhola. Ainda me assusto um pouco com seu surdo bater de asas. Desci do meu catre, apanhei o punhal da mochila e o cravei no coração do camarada dorminhoco. Quando o corpo estremeceu, cortei-lhe a jugular com o canivete. Saí para o pequeno convés. O dono do barco ainda estava na cabine de comando, de pé como um herege que se flagelasse, olhando o horizonte na espera de salvação. Apanhei um arpão, entrei ali silenciosamente e cravei-o nas costas dele. A força foi tamanha que o prendeu contra a madeira da cabine. Cortei-lhe o pescoço acho que já por pura maldade ou pela certeza de que não restaria vivo. Havia ainda os dois da outra cabine.
Prendi o corpo acéfalo próximo à portinhola deles e espetei a cabeça no arpão, posicionando-a junto ao braço direito do cadáver; ri quando RP pareceu compreender a sequência. Ele passou sobre minha cabeça num voo direto para dentro do cubículo. Esperei. Os idiotas saíram ofegantes e gritando “vampiro”, “vampiro”; surpreendidos pela cena ainda mais grotesca, ambos se atiraram ao mar.
Juntei minhas coisas, prendi RP novamente, apanhei o que precisava e desci um bote. Posicionei o barco rumo ao paredão de pedras da ilha próxima, acionei os motores e me atirei na água.
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Parei de contar os dias depois de algum tempo nesta ilha. Pouco me importa saber de cronologia. Não acontece muita coisa por aqui. Fico a maior parte do tempo recolhido nessa caverna e muito de vez em quando passeio pela franja que a areia forma entre a água e a encosta. RP praticamente desapareceu. No começo ainda voltava por algumas noites. Acho que era ele. Na escuridão da caverna tinha a impressão de que vinha acompanhado. Não tinha mais carga na lanterna para verificar à luz de alguma claridade. Algumas mordidas a mais não me importavam. Hoje, raramente me visita.
Começo a temer pela minha saúde, ou talvez até pela minha sanidade. Sinto que a luz do sol me incomoda muito. Vou à praia quando anoitece, mas pareço ter medo da água. Coço a pele e isso tem provocado pruridos. Sei lá, as coisas me assustam. Minha audição parece mais aguçada e os sons que ouço muito incomodam. Esquisito demais.
Agora, esse enorme cansaço. Pareceu-me ver, à luz da lua, Helena passar aqui em frente. Muito de relance. O imenso cansaço já não me permite correr atrás dela. RP me abandonou. Acho que encontrou uma colônia e passou a viver nela. É característica de sua espécie, Desmodus rotundus; isto mesmo, morcegos vampiros. Deixo a gaiola aberta de todo modo.
Tenho que ir findando esse relato, pois o cansaço já é grande; ouço asas batendo na direção da caverna. Quem sabe não é RP e alguns outros que vêm para me içar num voo. Pedirei que apanhem Helena pelo caminho. Quem sabe?
PS: minha licença não permite mudar fontes; por isso, o nome científico da espécie não está grafado em itálico.