O menino Edson

O menino Edson sofria de um retardo mental grave e necessitava de cuidados especiais. Foi depois que Edson, com dez anos na época, matou três gatos recém-nascidos e foi pego com os dentes sujos de tripas e sangue, ingerindo um dos animais, que os pais de Edson tiveram a dimensão do problema. A mãe levou Edson para o hospital para que fosse socorrido, não se come um filhote de gato impunemente. Os outros gatos foram enterrados no quintal de casa. Nesse mesmo quintal havia uma mangueira,e nessa árvore, o pai de Edson foi encontrado enforcado, quando a mãe e o menino voltaram do hospital. Além de doar a gata velha que havia dado cria aos infelizes animaizinhos, a mãe de Edson nunca mais deixou que o menino assistisse Clube dos Vampiros, desenho que ele acompanhava fervorosamente entre gritos e gargalhadas triunfantes todas as manhãs.

Valéria. Esse era o nome da mãe de Edson. Empregada doméstica era a sua profissão. Depois do felinocídio, a vida de Valéria tornou-se penosa, tanto pela saudade que sentia do finado esposo quanto pela dificuldade que passou a encontrar para sair de casa para trabalhar. Não se sentia segura em deixar o menino com quem quer que fosse, e vivendo numa cidade rural no interior do Paraná, onde não havia nenhuma escola para pessoas especiais, não havia outro jeito senão ficar em casa. Sendo assim, Valéria passou a fazer pães, bolos, tortas, salgados, e junto com a pensão que recebia do falecido, conseguiam se manter.

Quando Edson completou quinze anos, Valéria conheceu outro homem, com quem passou a manter relações. O homem chamava-se Valter, tinha uma picape e trabalhava plantando fumo. Havia sido casado, uma vez. A mulher com quem fora casado não podia ter filhos, logo o casamento perdeu a força até desmoronar por inteiro. Valéria sabia disso, assim como Valter sabia do seu matrimônio anterior e do desfecho trágico que ele teve. Ambos estavam contentes, era uma nova chance para eles. Um acordo tácito de não falarem do passado se firmou, e à noite, Valter sempre ia visitá-la. Edson, que desde a morte do pai, não havia apresentado nenhum sinal de avanço no seu quadro patológico, continuava dando trabalho, embora, até então, sem que nenhum acontecimento bizarro tivesse se dado. Seu humor era intempestivo, e é verdade que se deixassem o à mesa sozinho com um garfo por um minuto, ele era bem capaz de atravessar o garfo na própria mão, como fez certa vez. Medicamentos, produtos de limpeza e venenos como raticidas eram sempre mantidos fora de alcance. Não tinha controle de suas necessidades também, mas não era nada que Valéria não tivesse se habituado. Ao conhecer Valter, Edson esboçou um sorriso, e nunca tendo aprendido a falar, apenas resmungou palavras inexistentes, babando e sorrindo. Valter não se assustou, o menino lhe pareceu inofensivo, e se problemático, nada que não valesse o esforço da convivência.

As visitas de Valter tornaram-se cada vez mais frequentes, até que certa noite, risonhos, depois de uma boa jarra de vinho colonial, Valéria decidiu chamá-lo para ir morar com ela e o filho. Valter ficou sem saber o que pensar, mas por fim acedeu ao convite. No outro dia deixou a erma cabana que ficava na plantação de tabaco, pegou seus pertences e passaram a viver os três juntos.

Os dias eram relativamente tranquilos. Pela manhã, ainda muito cedo, Valter tomava café com Valéria, Edson ainda dormindo. Depois, Valter seguia para o serviço na plantação, enquanto Valéria, se entregava as atividades domésticas- havia deixado as panificações de lado, uma vez que o novo companheiro comprometeu-se a arcar com as despesas do lar, não sendo mais necessário que ela realizasse tais empreendimentos. Por alguma razão, Edson dormia cedo e acordava só perto do almoço. A tarde assistia televisão, enquanto a mãe lavava roupa, limpava a casa, ou cuidava do jardim, sempre de olho no filho. Quando a noite caia, Valter retornava, sempre com algum doce para Edson, que deitado no sofá ou quicando uma bolinha de borracha na varanda, recebia o doce sorrindo, agradecido. Logo a janta era servida. No princípio, Valter se sentiu incomodado em ver Edson, com quinze anos, comendo com um babador preso no pescoço, ou então, quando Valéria descuidava para dar uma olhada na novela e o menino pegava feijão com a mão e esfregava no próprio rosto, logo sendo interrompido pela mãe e mandado para a cama aos berros. Tumultos semelhantes se repetiam quase todas as noites, e acabavam, invariavelmente, com Edson sendo puxado pela mãe para o quarto. Enfim o casal ficava a sós. Bebiam vinho na varanda, conversando, a não ser quando Valter pegava a viola e tocava alguma moda. Depois iam para o quarto namorar mais um pouco e dormir.

A notícia foi dada por Valéria, meses depois, numa dessas noites frescas na varanda. Ela estava grávida. Valter mal acreditou. Tocou várias modas naquela noite. Beberam mais do que de costume, de felizes que estavam. Ele nem mesmo foi trabalhar na manhã seguinte.

No segundo mês de gestação, o ultrassom foi realizado. Teriam um menino, comemoraram. Se chamaria Valter também.

A partir do terceiro mês, a barriga começou a crescer. Durante os dias de semana, Valter pagava uma menina chamada Edite para fazer companhia e prestar qualquer possível auxilio à mulher grávida. Um novo ultrassom foi realizado. Aparentemente, não existe nenhum indício de má formação, disse o doutor. Felicitaram-se com a notícia. Fora isso, não houveram grandes alterações na rotina da família.

Quando o sexto mês chegou, vieram as contrações e as dores nas costas, devido ao aumento dos seios . Em compensação, o apetite sexual de Valéria pareceu renovado, para a alegria do marido. Edson, de vez em quando, colocava uma almofada debaixo da camiseta, criando um volume na barriga, tentando imitar a mãe e provocando risos na mãe e o no futuro pai. Valter trocou a picape antiga- de uma só cabine-, por uma cabine dupla.

No oitavo mês de gravidez, Valéria e Valter saíram para comprar itens para o bebê. Foram ao médico algumas vezes também. Edson ficou em casa, sob o cuidado de Edite, a menina que acompanhou Valéria durante a gestação, a pedido de Valter. Edson aproveitava para acordar mais cedo e poder assistir mais desenhos. Edite, a cuidadora, não conseguia entender como Edson se empolgava tanto com um daqueles desenhos animados. O desenho chamava-se Clube dos Vampiros.

No dia 14 de dezembro, Valter Junior, nasceu com 3,40 quilos e 52 centímetros. A equipe do hospital se apaixonou pelo bebê. A mãe e o filho tiveram alta dois dias depois do parto. Quando chegaram em casa, tarde da noite, Edson estava acordado, vendo televisão.

Os dias passaram com incrível rapidez, e o Natal logo chegou. Valter e Valéria fizeram todos os preparativos, decoraram a casa, e trocaram presentes entre eles. Edson ganhou um tiro ao alvo de brinquedo de Valter e uma lousa para desenhar com giz da mãe.

Cearam cedo, o casal sentia-se sereno. Beberam vinho e comeram peru. Deixaram Edson, brincar até mais tarde. Depois que Edson foi para o quarto, desenhar na lousa, foram para a varanda. Valter tocava modas que havia composto e Valéria ouvia, encantada. Ainda bebiam vinho. Valter tocava e cantava em alto e bom som. O bebê dormia num berço acomodado no quarto onde eles dormiam. Valéria imaginou ouvir o bebê chorando, foi até lá, embalou-o um pouco e logo ele voltou ao sono. De volta à varanda, seguiram os dois, ele tocando canções na viola, ela ouvindo, embevecida. O que nenhum dos dois ouviu foi o bebê chorando novamente, e foi minutos mais tarde, que estranhando a quietude lá de dentro, Valéria foi conferir como o bebê estava. Desmaiou na hora, ao ver, Edson, devorando parte do pescoço da pequena criança. Os olhos estavam dependurados, fora das órbitas. Valéria caiu no chão sem tempo de gritar. Estranhando a demora da mulher para retornar à varanda, Valter entrou na casa. Mas era tarde; apenas um fio débil ligava a cabeça sanguinolenta do bebê ao tronco. Rindo, Edson devorava um buraco que antes era a barriga. Pedaços do fígado, estômago e intestino estavam espalhados pelo chão. Desgraçado, retardado do inferno, filho de uma puta! gritou Valter, e por ter dito isso, lembrou da mulher no chão. Tomou o pulso dela. Estava morta. Valter foi até a picape. Vasculhou debaixo do banco do carona e achou o embrulho pesado. A noite estava mais fresca do que de costume, o vento se debatia de encontro a grande mangueira no quintal, fazendo os galhos produzirem um assobio arrepiante. Quando retornou para o interior da residência, Valter parou diante da porta do quarto e tirou o papel de jornal que envolvia a arma. Segundos depois, segurava o revólver na mão, carregado. Destravou-o. Edson olhou para ele, rindo e passando os restos mortais do recém-nascido no rosto, como costumava fazer com o feijão. Valéria estava morta aos seus pés. Uma lágrima de raiva e melancolia escorreu pelo rosto de Valter e ele disparou. Edson caiu no chão, segurando os resquícios do bebê, do qual só se podia ver os pequenos braços e pernas em meio ao sangue. Depois Valter foi para a varanda e sentou no banco, onde antes estava tocando viola. Grudou o revólver na têmpora, mas não teve coragem. Daquele jeito não poderia ser. O assobio do vento continuava, tão firme quanto antes. Ele olhou para a grande mangueira no jardim. Levantou-se, meio bêbado, meio insano e foi até lá. Morreu num daqueles galhos, balançando como um pêndulo.

Começou a chover. Feliz Natal, gritou alguém muito distante.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 30/10/2013
Reeditado em 27/07/2015
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