O Silêncio da Noite - DTRL

Sobre o leito de uma cama estava um homem acometido pelos males da idade, pela tuberculose e pela amargura. Ao seu redor imperava o silêncio mórbido de uma noite fria e sem estrelas, enquanto da janela do seu quarto adentrava a luz dos relâmpagos que cortavam o céu, muito embora não caísse uma gota de chuva sequer.

- Malditos – ele falava para si com esforço, tendo apenas o quadro de sua falecida esposa pendurado na parede como figura humana a ouvir as palavras de rancor – Todos ingratos!

Ele se chamava Ludwig Fontaine. Filho de uma tradicional família francesa, ele herdou posses na juventude, adquiriu prestígio e fundou um dos maiores jornais do país, o jornal Voz da Nação. Durante a guerra que o mundo sofreu, o seu jornal era uma das principais fontes de notícias no qual tanto nobres senhores da alta sociedade quanto proletariados acompanhavam o andar da batalhas, dos governos europeus e da crise no mundo. Porém, nos últimos cinco anos, no final da segunda grande guerra, as publicações tiveram uma queda avassaladora de vendas mergulhando o jornal em dívidas e indo até a falência completa. Ludwig viu o trabalho de sua vida definhar diante de seus olhos. Ele gastou praticamente todo o seu patrimônio e até tentou acordos esdrúxulos com banqueiros da cidade, mas a recuperação não foi possível e o que tinha restado era a venda definitiva.

Em meio ao fracasso e à velhice, o que mais lhe perturbava, o que mais dificilmente ele conseguia suportar era o abandono de seus antigos amigos e até do seu filho que o afastou para uma espécie de aposentadoria compulsória como se ele fosse um velho senil, um estorvo inútil e desprezível. Naquela mesma noite estariam todos em uma festa para a negociação de venda. Iriam vender o trabalho que ele ergueu com as próprias mãos a custa de suor e madrugadas em claro sem a sua presença. Falavam que ele estava doente, que precisava descansar. Todos hipócritas. Queriam somente se livrar dele. Ele não tinha mais nenhum valor.

“Eu não posso deixar” ele pensava “eles não podem fazer isso comigo”. Ele precisava ir a essa festa. Desejava ver a cara de todos eles quando ele chegasse firme e forte. Seu filho disse que iria à sua casa o deixar a par da negociação no outro dia, como se isso fosse uma caridade. Ele merecia mais. Ele precisava está com eles.

Ludwig esboça uma primeira tentativa de se levantar, sem conseguir. Com certeza ele já teve dias melhores nos últimos anos, mas também não estava tão grave quanto poderia estar. Ele podia se movimentar e suas tosses não estavam tão freqüentes como em outras ocasiões. Ludwig estava completamente consciente do que estava fazendo.

Em uma segunda tentativa ele se põe sentado na cama. Arrastando suas pernas sob os lençóis, ele chega à beirada e põe seus pés nos chinelos. Concentrando até a última gota de força e determinação ele se põe de pé. Seu corpo estava dolorido e não sabia se poderia dar um passo, mas para o seu júbilo começa a andar no quarto. Tanto tempo de cama o fizeram temer que talvez não pudesse mais saber como era caminhar com as próprias pernas. Devagar, Ludwig pega sua bengala ao lado da cama e chega ao guarda-roupa. Ele começa a tirar seu pijama desabotoando os botões da camisa. Somente de roupas íntimas, ele tira sua calça do armário e a veste se apoiando nos móveis. Ele veste a camisa e seu paletó, e calça seus sapatos. Para ficar completo ainda faltava o seu chapéu que provavelmente estava na sala, no porta-chapéus. Ele queria está elegante para mostrar que não era o cadáver que todos achavam que fosse.

Devidamente vestido, ele caminha até a porta do quarto e no caminho se depara com o espelho da penteadeira. Com os relâmpagos que entravam pela janela e dissipavam a penumbra do quarto, Ludwig viu com espanto e tristeza o estado deprimente em que se encontrava: magro, olhos fundos, pálido, os cabelos grisalhos despenteados e sem brilho. Não havia mais nenhum sinal do moço bonito que um dia fora. Seus braços, antes fortes, estavam magros e fracos. Suas mãos, outrora firmes e precisas, estavam trêmulas. Sua pele estava flácida, cheia de rugas. O seu fôlego ameaçava abandoná-lo a qualquer momento, se desmanchando em tosses. Onde estava aquele menino alegre que brincava nas campinas? Onde estava o jovem esbelto que era invejado por todos os outros rapazes da cidade e desejado pelas moças? Tudo havia acabado. Tudo tinha ido embora. Então era assim que acabaria? Esse seria o fim de sua história? Um velho acabado e falido, sem nenhum amigo e com apenas um teto sobre sua cabeça e uma cama para morrer?

Uma ira amarga e blasfema o invade e de repente era como se isso o mantivesse vivo, como se seu coração batesse graças ao ressentimento e ao ódio que sentia contra o Estado, contra a vida e contra o mundo. Assim ele anda a passos vacilantes até a porta e a abre. Do outro lado, o corredor era tibiamente iluminado pelas lâmpadas nas paredes. Ele sai e caminha devagar até a escada que descia para a sala. A casa continuava silenciosa e vazia. Sua governanta, Helena, já teria jantado e se recolhido em seus aposentos. Ela era a única pessoa empregada que ele manteve, junto com seu jardineiro Cláudio, que também assumia o papel de motorista.

Ludwig andou pela sala à procura das chaves, com cuidado para não chamar a atenção. Se Helena acordasse e o visse, certamente ela iria impedi-lo. Felizmente ela guardava as chaves no mesmo lugar na estante. Ele foi até a porta da frente, pegou o seu chapéu e pões o lenço na boca para abafar a tosse. Ele abre a porta e sai com a sua bengala.

A noite soprava um vento gelado que farfalhavam as folhas das árvores com murmúrios sinistros e uma névoa alva e espessa encobria a visão do jardim e da rua. Ele avança até seu portão que range como se sofresse de dores terríveis ao ser destrancado e aberto. Ludwig precisava ser rápido. Helena poderia ter um sono pesado, mas os barulhos não passariam despercebidos.

Ele abre a garagem revelando seu Chevrolet 1941 preto que ele estimava como se fosse da família. O motor ronca ao ser ligado fazendo o carro tremer levemente como se fosse um animal animado em ver o dono. O carro era o luxo de que ele não abria mão.

Tendo em mente que a parte mais difícil de sua empreitada havia passado, Ludwig dirige o carro através do jardim e segue pela rua com destino à festa de venda do jornal. Os postes iluminavam através da neblina, formando um halo de luz ao redor como a auréola de um santo. A rua estava calma e silenciosa. Nenhum transeunte, carro ou carroça andava por aquela noite. A cidade inteira parecia dormir recolhida a espera de uma chuva que não vinha, enquanto os relâmpagos resplandeciam revelando os contornos das casas e os paralelepípedos da rua.

Ludwig continuava dirigindo solitário sem saber exatamente que horas eram ou como estaria a festa. Se pelo menos tivesse conferido as horas no relógio de pêndulo na sala. Ele começava a questionar o quão sábia tinha sido sua atitude, mas não poderia voltar atrás. Ele precisava chegar a essa festa.

Ele decidiu cortar caminho por uma rua deserta larga que o levaria a uma estrada de calçamento que margeava o parque municipal. Ludwig acelerou quando o carro começou a rodar sobre as pedras e os faróis do automóvel venciam com dificuldade as trevas formadas pelas sombras das árvores e pela neblina.

Ludwig tossiu como se algo houvesse se quebrado em seu peito e os ruídos se juntaram ao estalar das rodas na estrada desolada. O parque não ficava longe de sua propriedade. Havia poucos quarteirões entre eles, mas o mal estar tornavam aquilo uma longa viagem.

O carro era forçado ao máximo. Ludwig pressionava o pedal do acelerador até a perna cansar. A tosse não cessava. O ar frio estava piorando sua tuberculose. Ele forçava sua vista, tentado enxergar a estrada além do nevoeiro até que uma figura quadrúpede cortou à sua frente, tão repentinamente quanto um relâmpago e foi atropelado. O carro balançou quando as rodas passaram por cima do animal, bateu em uma ribanceira e capotou.

Sangrando, caído no teto do carro que estava emborcado feito uma criatura abatida, Ludwig se arrastou para fora depois de abrir a porta do automóvel à custa de muito esforço. As pedras da estrada eram ásperas e frias sob seu corpo sofrido. As dores eram intensas e seu sangue manchava de vermelho a terra e suas roupas. Ele queria gritar por ajuda, mas não tinha forças. Seus pulmões pareciam que iriam explodir e ele tossia expelindo mais sangue.

A vida se esvaia de seu corpo junto com a esperança. Não adiantaria se esgotar se arrastando sobre o calçamento. Ele havia perdido tudo; nada mais havia sobrado. Um túmulo era o seu futuro.

Ludwig avistou o animal que tinha atropelado quando mais relâmpagos iluminaram a estrada. Era um cachorro. Um mísero cachorro de rua havia acabado com a sua vida. Ele praguejou até perceber que era apenas o golpe de misericórdia. Ele iria morrer em breve, não importava carro ou cachorro. A angústia se sobrepôs às dores físicas e Ludwig se virou, voltando sua fase para cima. Nenhuma estrela, nenhuma lua, nenhuma ajuda do alto. Ele estava sozinho como sempre estivera. Ódio corria por suas veias. Ele queria sua vida de volta, seu jornal, seu prestígio, sua riqueza. Ele faria qualquer coisa para conseguir tudo de volta.

O cachorro morto começa a se debater e a grunhir, voltando à vida. Ludwig vira seu rosto para o lado, olhando em direção ao animal através da escuridão. O cachorro abre seus olhos vermelhos que brilhavam como brasa e olha fixa e diretamente para Ludwig que fica paralisado, como se cada fibra do seu corpo estivesse congelada. Os olhos se aproximam. O animal caminha trôpego em direção a Ludwig e o que restou para ele, sem poder se mexer, foi tentar gritar, mas o que saiu de sua boca um som fraco e abafado.

- Afaste-se – Ludwig meio que sussurrou.

O cachorro parou indeciso.

- Você me pede para afastar, mas o seu ódio me trouxe aqui – o cachorro falou, sua voz ecoou rouca e grave, como se ele falasse dentro de uma caverna.

- O quê... Você... Quem é você?

- Eu sou aquele que caiu como um raio. Eu vivo nas sombras e sussurrando nos ouvidos dos homens eu movo a história – a voz disse, e Ludwig ainda não conseguia acreditar que ela vinha do cachorro, mesmo ele movendo as mandíbulas.

- Por que está aqui? – o velho se esforçou para falar – O que quer?

- Não se trata do que eu quero e sim do que você quer. Não se lembra de sua juventude, Ludwig Fontaine? Você era um jovem ambicioso que desejava entrar para os maçons. Pediram para você fazer um ritual de invocação para lhe por à prova. E você fez. Estava tudo certo, as velas pretas, o cemitério, a data, exceto por uma coisa apenas. Não te deixaram entrar por que o ritual não funcionou. Você nunca entendeu o motivo. Mas eu venho te acompanhado de perto desde então, e agora eu te digo: você não havia feito o sacrifício do animal. No entanto, esse cachorro aliado ao seu sangue e ao seu ódio era o que eu precisava para aparecer definitivamente para você, e aqui estou eu, pronto para ouvir o seu pedido.

Ludwig se recordou de quando tentou entrar para os maçons e as lembranças de seus fracassos e de sua juventude só aumentaram sua tristeza.

- Pedido?... Eu posso fazer um pedido?

- Sim. Você pode – disse o cachorro – Mas tudo tem o seu preço.

Ludwig percebeu que ele queria um pacto, e ele estava disposto a ir até o fim.

- Pode devolver minha juventude? – ele perguntou com uma ponta de esperança.

- Não – o demônio falou – Eu não posso. Isso excede o meu poder. O acordo precisa envolver diretamente a esfera espiritual.

Ludwig refletiu sobre aquelas palavras. O demônio estaria sendo sincero? Ludwig supôs que sim. Ele sabia que o espírito das trevas não era um gênio da lâmpada e se fosse fazer um pedido teria que ser algo objetivo e bom para os dois lados, e teria que ser o quanto antes. Ele tossia e esse tempo sangrando sobre o chão frio estava fazendo sua tuberculose piorar para um estado irreversível, além de qualquer ajuda humana. Ludwig pensava sobre o seu acordo sabendo que o demônio cobraria seu preço mais cedo ou mais tarde. Ele precisava falar algo que contornasse esse fato, de modo que ele não o levasse para o inferno. Mas como fazer isso? Poderia ele barganhar com o próprio pai da mentira, aquele que foi o primeiro a cair do mais alto dos céus e tentou a primeira mulher pela boca da serpente como ele estava falando agora pela boca do cachorro? Uma idéia aflora em sua mente. Era algo que o agradava e teria como pagar ao senhor dos abismos sem para isso encurtar seus dias sobre a terra. Aquilo o animou e mesmo morrendo ele sentia que era capaz de sorrir.

- Um... – outro excesso de tosse – Acordo?

- Sim – disse o espírito através do animal – Qual a sua proposta?

- Você pode ter almas escandalizadas e perdendo a fé por meio de mentiras contadas pelas pessoas certas. Eu... Quero um espírito livre deste corpo e que possa assumir outros corpos... Possuir outras vidas.

O cachorro arquejou e Ludwig se perguntou se o demônio estava feliz com a proposta ou se ele era capaz de alguma felicidade por que quer que fosse.

- Feito! – dito isto o cachorro uivou alto e Ludwig viu o mundo se desmanchar em névoa e sombra quando agonizou pela última vez.

A noite avança e o som de galopes e rodas de madeiras sobre as pedras se aproxima pela estrada. O jardineiro Cláudio segurava as rédeas à procura do seu patrão. A governanta Helena tinha batido desesperada na porta da casinha em que ele morava dizendo que Sr. Fontaine tinha sumido. Cláudio conseguiu uma charrete e saiu à procura dele, percorrendo as ruas próximas até que resolveu conferir a estrada que margeava o parque. Ele vê uma forma sólida e grande surgir na névoa conforme ele chegava mais perto. A charrete estava bem próxima quando os cavalos empacaram.

- Vamos! – disse Cláudio, estalando o chicote. Porém, os cavalos empinaram no lugar, se recusando em ir além.

Cláudio desceu da charrete segurando a lanterna a óleo que trazia. Os cavalos continuaram agitados batendo seus cascos contra o calçamento e ele decidiu não forçá-los mais e chegar a pé até o que ele via na estrada. Ele caminha um pouco e percebe, após passar pelo corpo do cachorro, que o volume negro se condensando através do nevoeiro era um carro virado na estrada, lançando um rastro de luz com o farol, ao lado de algo que fez a espinha de Cláudio gelar.

- Minha Santa Mãe! – Cláudio corre até o corpo de Ludwig caído ao chão e sujo de sangue. Ele deixa a lanterna de lado e se ajoelha perto do cadáver – Sr. Fontaine! Sr. Fontaine! – ao tocar nos ombros do patrão, Cláudio sente uma sensação gélida invadindo suas mãos e subindo por seus braços, como uma película de gelo lhe dominado o corpo. O frio aumenta e a névoa começa a adquirir contornos estranhos à sua volta, girando como um redemoinho que explode em uma ventania que o derruba.

Cláudio abre os olhos. Ele mexe seus dedos, seus braços, e depois suas pernas. O homem se levanta do chão se limpando da terra e pagando o chapéu maltrapilho que tinha caído de sua cabeça, e observa intrigado o corpo no chão. Ele olha para baixo, para as roupas que estava usando. Quem diria que está vestido naqueles trajes puídos lhe causaria tanto prazer? Ele toma fôlego. O ar da noite era doce e gelado em seus pulmões saudáveis. Suas mãos, embora ásperas do trabalho árduo, eram firmes. Seus braços eram fortes. Ele estava como era mais novo, mas ele se sentia outro. Ele era outro.

- Funcionou! – disse Ludwig na voz de Cláudio.

* * *

Ainda não tinha amanhecido e o padre Roger já estava na catedral para suas orações diárias. O rosário de contas vermelhas pendia de suas mãos juntas enquanto ele recitava a Ave Maria, ajoelhado nos primeiros bancos da igreja. Seus olhos estavam voltados para o altar mor onde estava o Cristo crucificado e as imagens da Virgem Maria e de São José do seu lado. Sobre o altar havia uma cúpula com os doze apóstolos retratados na pintura e o teto da nave principal onde estava era feito com árcades e abóbodas cujos arcos cruzados convergiam suas pontas nas arestas e desciam nos pilares.

De cada lado estavam entradas para capelas menores que eram os “braços” da cruz que a catedral formava. Ali era a sua casa. Padre Roger sempre preferiu fazer suas orações na igreja olhando para o sacrário no altar, e não se sentina melhor em outro lugar que não fosse o confessionário atendendo as almas contritas e celebrando os Santos Mistérios como seria feito logo mais, quando as pessoas começassem a chegar para a celebração da missa.

Ele faz o sinal-da-cruz e se levanta ao término do rosário. Em pouco tempo o sacristão chegaria para ajudá-lo a preparar os paramentos litúrgicos e tocar o sino. Roger faz seu caminho entre os bancos em direção a sacristia e se detém perto de um pilar, ouvindo o choro de uma criança ecoando pelo templo. Ele se concentra, apurando os ouvidos para tentar descobrir de onde vinha o barulho. Alguma criança estava perdida e tinha sido trancada acidentalmente na igreja? O padre anda seguindo o som, as imagens dos santos por onde ele passava eram presenças vivas que pareciam observá-lo.

O sacerdote vira em um canto próximo de onde ficava o confessionário e chega à entrada da torre do campanário da catedral. As cordas que eram puxadas para tocar os sinos pendiam quietas, e Roger viu um menino de cabelo preto encaracolado, encolhido em um canto apoiando seu rosto nas mãos. Ele vestia uma espécie de túnica muito branca que resplandecia uma luz clara como se o garoto fosse banhado pelo luar, apesar de não ter lua no céu e o próprio menino era a maior fonte de luz que iluminava o recinto fechado.

O padre permanece petrificado na porta, sem conseguir desviar o olhar do par de asas nas costas da criança. Ela levanta a cabeça e olha para Roger com seus olhos cheios das lágrimas que percorriam sua face. Por um breve instante, o padre se esqueceu de respirar. Olhar para os olhos de um anjo era como olhar para um abismo no qual, por um momento de distração, a pessoa poderia se perder e cair eternamente.

- Não tenha medo – disse o anjo – Não vou machucá-lo.

Demorou algum tempo para Roger encontrar a sua voz.

- Por que choras? – ele disse, se surpreendendo com a própria pergunta. O que mais lhe intrigava não era o que levou o anjo a estar na terra e precisamente naquela catedral, e sim o que o levava a chorar aquele choro extremamente triste que fazia o sacerdote querer consolá-lo.

- Estamos esquecidos, padre. Ninguém se lembra de nós em suas orações. Ele também era assim. Completamente descuidado das coisas espirituais. Ele trilhou um caminho sem volta.

- Quem? Do que está falando?

- De Ludwig Fontaine. Ele afastou a mim, o seu anjo da guarda, e se perdeu ao fazer um pacto com o demônio.

- Fontaine? O dono do jornal fez um pacto?

- Sim. Seu corpo está na estrada, mas seu espírito está em outro corpo. Ele poderá possuir diferentes pessoas e espalhar o mal.

O padre parou, absorvendo a informação.

- Por que não o impediu? Você não é o seu anjo da guarda? – ele perguntou, pensando como aquela criança aparentemente frágil protegeria alguém das forças do inferno.

- Não cabia a eu impedir. Fazer ou não o pacto tinha que ser escolha dele – o anjo abraçou as pernas e chorou. Roger sentiu uma vontade imensa de acabar com a sua tristeza.

- O que posso fazer? – ele perguntou – Por que está aqui chorando? Eu posso te ajudar?

- Para curar a ofensa e o orgulho é preciso a obediência. Para livrar o mundo do mal que o pacto que Ludwig fez, por sua própria escolha, é preciso a fidelidade de outro homem que, por sua própria escolha, queira da um fim a isso.

- Eu? – disse Roger, entendendo – Eu fui escolhido para impedir Ludwig de prosseguir com o pacto?

- Sim. Diferente de outros pactos o demônio não pretendi levar a alma dele. Não nesse século. Nesse ínterim o caos poderá se espalhar com o pacto em vigência. Almas poderão se perder. Com um homem isso começou, com um homem deve acabar.

- Eu posso impedir Ludwig?

- Você pode – disse o anjo – Mas tudo tem um preço. Você sabe o que é exigido dos eleitos. O que é preciso para se chegar à vida eterna.

Padre Roger pensou sobre os casos de muitas outras pessoas que tiveram experiências com aparições. Ele se recordou das histórias dos santos que foram incumbidos de missões divinas e que literalmente deram a vida por Deus. Sim, ele sabia.

Ele se ajoelha de mãos juntas como nas orações.

- Por toda a minha vida eu quis servir ao Senhor. Dediquei-me a orações e penitências e agora tenho a oportunidade de responder ao seu chamado. Que assim seja – disse o sacerdote.

O anjo sorriu com um sorriso lindo. Perturbadoramente lindo. Sua luz aumentou até dominar o ambiente, de modo que só o que se via era a vastidão branca e a paz que emanava dela. Sopra uma brisa suave e os sinos tocam sozinhos, exatamente no momento que amanhecia e o sol nascente iluminava a torre da catedral.

* * *

A morte de Ludwig Fontaine e as circunstancias em que ela ocorreu estampavam as manchetes do Voz da Nação e dos outros jornais da cidade. Não se comentava outra coisa nas praças, esquinas, tabernas e bares. Pessoas cochichavam entre seus pares, comentando o declínio do magnata e de sua saúde. Levantavam a suspeita de um assassinato e o criminoso seria um desafeto de Fontaine que fez tudo parecer um simples acidente. Outras diziam que tudo talvez não tenha passado do suicídio de um velho viúvo que queria encurtar os sofrimentos advindos da doença e tinha decidido acabar com a própria vida no meio de uma estrada deserta.

Carregando suas especulações, mais ou menos próximas da verdade, muitas pessoas compareceram no velório de Fontaine, até mesmo aqueles senhores ricos que não o tinham mais em consideração. Entre os presentes estava o jardineiro, um dos poucos empregados que sobrou, a velar o defunto com a cara de quem olha para si mesmo em um caixão. Ele andava diferente. Quieto e mais calado do que o costume. Até mesmo Helena que estava vivendo a base de chás calmantes – provavelmente ela era a única pessoa que chorava a morte de Ludwig – notou a diferença. Após o enterro, Cláudio veio com uma pergunta estranha para a velha governanta. Queria saber se ela conhecia pessoas que mexiam com espiritismo e negócios obscuros. Helena se lembrou que havia visitado uma cigana cartomante e falou a localização da residência dela.

Na manhã do outro dia, Cláudio estava batendo na porta com um amuleto pendurado e sinos de vento de um comboio de trem abandonado. Uma cigana de sobrancelhas desenhadas a lápis e com brincos de argolas douradas o atende, uma variedade de anéis e pulseiras brilhava em seus dedos e braços.

- Pois não, senhor?

- Você é Raísa? Helena me falou que você fala com espíritos.

- Ah, sim. Veio ao lugar certo. Entre.

O homem entrou, observando a decoração cigana do ambiente com cortinas de cores fortes e almofadas. A mulher indicou a mesa em que deveria se sentar.

- Você disse que uma Helena falou sobre mim – disse a cigana, se sentando.

- Sim. Conheci-a?

- Não me vem à memória agora. Muitas pessoas vêm aqui em busca dos meus serviços.

- Ela é a governanta de Ludwig Fontaine.

- O dono do jornal? Ele teve uma morte muito triste com aquele acidente de carro. É por ele que está aqui?

- De certo modo sim.

- Queres falar com ele? Algum motivo especial para querer falar com alguém que mal acaba de partir para o outro lado? – Raísa falou, sem tom de censura.

- Digamos que estou querendo uma consulta. Tenho perguntas.

- Devo dizer que os mortos nem sempre tem todas as respostas e deles nem sempre tem tudo o que se deseja.

- Estou completamente ciente disso, mademoiselle.

- Mademoiselle? Fala francês?

- Sou de família francesa – disse o jardineiro.

Raísa pôs um tabuleiro com um pentagrama desenhado em cima da mesa. Nos cantos do desenho, ela colocou velas vermelhas e no centro um copo com água pela metade.

- Estamos prontos – disse Raísa, pondo as mãos no tabuleiro e se concentrado – Podemos... – suas mãos gelaram, as chamas das velas aumentaram, formando um circulo de fogo ao redor do pentagrama e Raísa ouviu a si mesma falar com uma voz grave – Ludwig, o que queres?

- Quero perguntar como posso trocar de corpo. Passei o tempo no cemitério e no velório, em meio a todas aquelas pessoas, tocando-as, mas não troquei de corpo. Estou fadado a ficar nesse jardineiro rude?

- Ludwig, não basta tocar nas pessoas. Faça-as perder a serenidade. Faça-as temer e perder as defesas. Assim você trocará de corpo com elas, como ficou determinado no nosso pacto.

A voz foi embora e Raísa saiu do transe se sentindo exausta. No ar pairava o odor fétido de enxofre e a água no copo estava quente.

- Eu não entendo... Esse não era Fontaine.

- Não – disse Cláudio, muito calmamente – Você não o invocou, já que ele estava aqui. Eu sou Ludwig Fontaine. A invocação serviu para outro espírito. O senhor das trevas. Foi ele que falou.

Raísa se levantou olhando aterrorizada para o homem à sua frente. Ela não duvidava diante do que presenciou. Foi como ser uma marionete, presa em seu corpo ouvindo a voz horrível falar. Talvez alguma magia que realmente exista nos amuletos a sua volta tenha preservado a sua consciência para ver ser possuída e ouvir tudo o que foi dito. A cigana se afasta para trás com as mãos nas costas. Ela chega à estante e tateia um objeto.

Cláudio se levanta, ou pelo menos o espírito que estava nele, e caminha em direção à Raísa.

- Qual o problema, cigana? Achei que estivesse habituada às experiências do além.

Ele chegou bem perto.

- Eu não quero problemas – ela disse, apavorada.

- E não vai ter – disse o homem estendendo a mão.

Raísa investiu contra ele com o porta-jóias que pegou da estante atrás de si em mãos, porém, o homem foi mais rápido. Ele agarrou o braço dela e com a outra mão agarrou a sua garganta. “Faça-as temer” a voz tinha dito. As mãos dele se tornaram como gelo contra a pele dela e o mundo pareceu escurecer. O corpo de Cláudio caiu e a cigana tombou para o lado, se segurando na estante. Quando ela abriu os olhos não era mais Raísa, e sim Ludwig.

Ele olhou para Cláudio ao chão. Ele podia sentir as marcas dos dedos na garganta. Sem dúvida o jardineiro era um homem forte e seria possível viver mais algum tempo no corpo dele. Pena que a mulher entrou em pânico, fazendo-o possuí-la. Mas o corpo da cigana deveria servir, por enquanto.

* * *

Todos pareciam carregar no semblante o final da guerra. Era como se o alívio tornasse os dias mais vivo de cores, quando há pouco tempo as explosões de uma guerra ameaçavam o país à distância. Findado os conflitos na Europa, o mundo tentava voltar à sua rotina com menos tensão. Os bondes desciam pelos trilhos nas ruas carregando homens para o trabalho e mulheres para o mercado. Os armazéns estavam abertos com caixotes de verdura e legumes perto da entrada. Cavalheiros faziam a barba nos salões e meninos sujos de graxa engraxavam seus sapatos. Outras crianças, mais limpas e arrumadas, andavam para a escola carregando seus livros e cadernos. Os meninos usavam pequenos shorts e as meninas tinham saias e traças no cabelo; ambos usavam sapatos com fivelas.

Onde quer que Ludwig passe, as pessoas lhe lançavam um olhar de soslaio e grupinhos de senhoras com longas saias cochichavam entre si. Ele sabia que se olhasse para trás surpreenderia as pessoas olhando para ele. Fazia tempo que Ludwig não andava nas ruas, e tinha se esquecido de como era ser olhado, principalmente daquele jeito. Fontaine era um senhor de respeito que tinha vivido nos círculos da aristocracia, mas naquela manhã ele se sentia menosprezado. As pessoas olhavam para ele como se fosse um ser estranho, como se fosse de outro mundo. Ele começava a cogitar que talvez as pessoas desconfiassem que estivessem vendo o homem que havia sido enterrado no dia anterior, quando teve que lembrar a si mesmo que estava no corpo de uma cigana. Ele não era mais um senhor nobre e rico, agora era uma cigana enfeitada e que tinha a fama de falar com os mortos. A sociedade não a via com complacência. Para todos os efeitos ele era uma necromante. Uma mulher exótica que com seu decote e brincos despertava os olhares libidinosos dos homens e os comentários reprovativos das mulheres.

Ludwig tentava caminhar como a naturalidade que uma mulher caminharia. Já era suficientemente incômodo ser uma cigana, e não queria parecer uma cigana com alma e andar de homem – que era o que ele era. Ele viu um menino sujo, de boina e calças maltrapilhas na calçada de uma barbearia. O garoto segurava um jornal, ao lado de um monte de jornais quase de sua altura, e gritava:

- Extra! Extra! É enterrado Ludwig Fontaine!

- Com licença. Quero um jornal.

O garoto olhou para a cigana.

- São cinqüenta centavos.

Ludwig procurou por suas roupas. Não sabia se a cigana tinha uma bolsinha com dinheiro escondido em algum lugar, e não estava com muita vontade de procurar pelo corpo inteiro da mulher no meio da rua. Ele sutilmente olhou no decote, mas não tinha nenhum dinheiro.

- Não tenho. Eu quero apenas olhar uma coisinha. Em um minuto te devolvo.

- Sem dinheiro, sem jornal.

- Por favor.

- Não – o menino continuou gritando as manchetes, ignorando a mulher.

- Moleque, eu posso enviar um demônio para te pegar à noite. Olha que eu mexo com isso – disse Ludwig pensando no quanto daquilo era verdade.

- Eu não tenho medo – disse o garoto. Ele não acreditou, mas se afastou por via das dúvidas.

- Ah... – sem paciência, Ludwig tirou um anel do dedo – Toma! É valioso.

- Isso dá azar? – o garoto tinha aprendido a não confiar em estranhos, ainda mais quando o estranho em questão era uma cigana esquisita.

- Não. É só um anel. O jornal, por favor.

O menino pegou a jóia e lhe entrega um exemplar do concorrente do Voz da Nação. Ludwig se afastou e vasculhou as páginas, lendo os textos sobre a sua morte. Ele encontrou um edital que falava sobre ele, fazendo uma pequena introdução à sua biografia e ao seu trabalho como editor chefe do jornal. A parte que falava da última década lhe deixou particularmente interessado. Falava-se da administração rígida de Fontaine e do declínio durante a guerra, no qual teve que se afastar por problemas de saúde, deixando o filho assumir a direção do jornal. Porém, na administração do herdeiro muitos jornalistas com tendências comunistas foram admitidos no Voz da Nação, fazendo matérias e escrevendo as notícias de forma tendenciosa sobre a guerra, o que durante a Era Vargas acabou causando a perda de credibilidade do jornal.

As idéias marxistas circulando parece ter influenciado boa parte dos trabalhadores, que montaram um sindicato e pressionaram a direção por melhores salários e diminuição da jornada de trabalho, apesar de o jornal já fornecer todas as garantias trabalhistas que podia. Com a tensão envolvendo os trabalhadores sindicalizados e as constantes ameaças de greve, a derrocada do jornal parece ter sido inevitável.

Ludwig terminou de ler, completamente sério. Ele estava surpreso com tudo o que estava sendo dito no jornal, já que seu filho fazia questão de mantê-lo afastado de todos os assuntos que se referiam ao Voz da Nação sob o pretexto de não querer perturbar o pai tuberculoso. Antes estava amargurado pela falência e venda do jornal e saber que tudo se deveu a irresponsabilidade de seu filho que fez do Voz da Nação um antro de comunismo, fez sua revolta aumentar. Mesmo agora que era considerado morto e estava livre para possuir e ser quem quisesse, ele sentia que precisava tirar satisfações. Ele joga o jornal fora e vai embora pela rua. Cláudio que ele deixou desmaiado na casa da cigana já devia ter acordado, mas ele não se importava. Ludwig precisava esperar para chegar às pessoas certas.

* * *

A mulher se olhava nua no espelho. Possuindo seu corpo, Ludwig admirava a beleza de Marina, sua nora. Ele a achava uma linda mulher desde que Otávio, seu filho, a apresentou há alguns anos como sua noiva, e desde então não pode questionar o gosto de seu unigênito. Marina parecia uma moça de família recatada, daquelas que tem todos os requisitos para se tornar uma maravilhosa esposa.

O defeito mais notável talvez fosse seu espírito excessivamente ingênuo e supersticioso, provavelmente as superstições de Otávio havia a contaminado, ou seria uma característica natural dos dois que os uniu. De todo modo, bastou Ludwig se aproximar dela no corpo da cigana Raísa, na feira ao final da tarde, e fingir que lia sua mão, prevendo coisas terríveis que iriam acontecer para ela ficar apavorada, dando o ensejo para o espírito de Ludwig trocar novamente de corpo, possuindo a segunda mulher daquele dia. Ele deixou a cigana desacordada em um beco, longe da vista dos passantes e foi para a casa do seu filho, fingindo ser Marina.

Essa habilidade de trocar de corpo que adquiriu mediante o pacto era o que de melhor tinha acontecido em sua vida. Ludwig poderia ser rico, poderia ter fama e reconhecimento no mundo acadêmico e dos negócios. Mas do que adiantaria, se ele acabaria morrendo e não podendo aproveitar o que construiu? Tudo o que ele faria se esvairia como cinzas ao vento. Ele se recordou das palavras de Agostinho de Hipona, que leu uma vez em um livro: “Do que adiantaria eu viver bem, se eu não viver para sempre?”

Agora ele era imortal. Poderia possuir qualquer pessoa, levar os mais diferentes modos de vida. Poderia ser uma criança, um senhor, um homem, uma mulher, um rico com conforto, ou um jovem viajante; e quando ele se cansasse de um, bastaria mudar de hospedeiro com um toque e um pouco de medo. Aterrorizar uma pessoa seria um meio de possuí-la. Ludwig sabia que com o tempo ele teria maior domínio do poder de possessão, e tempo ele teria de sobra. Contudo, antes de sair pela terra encarnando as mais diferentes vidas ele precisava falar com seu filho, o ingrato. Seria uma forma de se despedir.

- Marina, querida! Onde você está? – A voz de Otávio veio pela casa.

- Estou trocando de roupa! Já estou indo! – Ludwig gritou, ouvindo a si mesmo com a voz de Marina, o que ainda soava estranho para ele. Ele terminou de admirar Marina nua no espelho e pegou as roupas dela. No início, teve receio de que não acertaria as peças do vestiário feminino no lugar correto, mas tirando o espartilho que sufocava, ele se vestiu corretamente.

Ludwig saiu do quarto e chegando à sala, encontrou Otávio mexendo no rádio. O filho de Ludwig era um homem alto, no auge dos seus trinta e cinco anos. Ele vestia um paletó marrom, seu cabelo preto estava penteado para trás e seu bigode estava bem aparado.

- Desculpe não chegar para o jantar. Encontrei o Sr. Cavalcante e ficamos conversando – Otávio tirou seu paletó, deixando à mostra seus suspensórios sobre a blusa branca.

- Não se preocupe querido. Guardei algo para você.

- Fico agradecido, mas depois do dia de hoje tudo o que quero é dormir. Estou sem apetite.

- Não vá fazer essa desfeita comigo. Venha. Vai levar apenas alguns minutos.

Não querendo desagradar a esposa, Otávio a seguiu para a sala de jantar, vendo sobre a mesa quase todo um jogo de talheres em um lugar para um. O que Marina tinha preparado parece ser de bastante requinte para tantos garfos e facas.

- E Fabiana? – ele perguntou, se referindo à empregada.

- Foi se deitar. Dispensei-a mais cedo hoje. Queria ficar mais tempo a sós com você, para conversar. Você passou por um período difícil. Não é fácil perder um pai – Ludwig se aproximou de Otávio, quando este se sentou à mesa, e ficou com as mãos em seus ombros, tentando imitar os trejeitos de Marina – Aliás, você não me fala muito do jornal. Como foi a venda?

- Eu não falei? – Otávio perguntou. Felizmente para Ludwig, o filho continuou sem que ele precisasse falar nada – Bem, o fim da festa foi marcado pela notícia do acidente do meu pai, mas ocorreu tudo bem. Ele foi vendido por um bom preço e como herdarei o dinheiro, poderemos investir nos nossos próprios negócios.

- Não ficou com vontade de revitalizar o jornal? – Ludwig perguntou, se afastando para pegar uma bandeja na cozinha – Afinal, era o trabalho da vida de seu pai.

- Por que pergunta isso, Marina? Você sabe que aquilo não ia bem das pernas desde a guerra. Fiz um favor em vendê-lo. Foi o melhor. Antes que meu pai gastasse todo o que eu iria herdar com aquele “elefante branco”. Sabe que não levo muito jeito com jornalismo. Convencer meu pai a se afastar foi a melhor maneira de me livrar do jornal mais rápido e conseguir dinheiro para os meus projetos.

- Eu não lhe culpo por pensar assim – Ludwig voltou com uma bandeja – Mas você sabe como esse povo fala. Leu o jornal? Ao que indica nas matérias, você mesmo agravou muito a situação do jornal após o afastamento do seu pai, com jornalistas marxistas, sindicato e tudo o mais.

- Provavelmente, mas você sabe como exageram tudo. Meu pai que começou a queda do jornal. Ele estava velho e precisava ser afastado. Tive que contratar até alguns médicos para escreverem atestados. Se bem que aquela tuberculose dele estava mesmo muito ruim, e também ele estava velho e fraco.

- Ah, não fale assim – Ludwig abriu a tampa da bandeja – Seu pai sempre tentou ser um bom pai. Ele também teve que tolerar suas fraquezas. Como as suas superstições quase obsessivas, que ele via como um defeito grave. Principalmente essa sua fixação por números, como a preferência pelo número sete – Ludwig fez uma pausa – E o terror pelo treze.

- Você está estranha – comentou Otávio.

- Estranha como, querido?

- Não sei. Diferente – Otávio olhou para a salada na bandeja e para os grânulos estranhos dispostos em um círculo – O que é isso?

- Treze aranhas assadas. Devia mandar limpar aquele porão. Aliás, mudei um pouco a decoração da sala de jantar, espero que não se importe.

Mesmo com o espanto e nojo, Otávio percebeu. Havia treze talheres na mesa. Os castiçais da casa estavam na sala em uma estante, totalizando treze velas neles. No tapete, estava pintado com tinta o algarismo. Nos quadros e na parede o mesmo número de repetia.

Com horror e um medo insano, Otávio se levantou abruptamente da mesa, derrubando a cadeira e encostou-se à parede atrás dele.

- Marina, o quê... – Otávio tentou falar, com a respiração descompassada, quando Ludwig se aproximou e tocou em sua mão. Uma sensação gélida se espalhou pelo seu corpo e o temor pelo número durou até tudo em sua volta parecer se desmanchar.

Marina caiu desacordada, mas Ludwig não estava mais nela.

- Nada como uma fobia tola para facilitar as coisas para mim – disse Ludwig, no corpo de Otávio. Ele passou por cima de Marina e foi olhar seu reflexo na prataria da sala de jantar. Pensava no que poderia fazer e o quão longe poderia ir com o corpo do filho. Talvez começasse tirando esse bigode ridículo.

- Ludwig! – alguém o chama.

Fontaine se virou, mas não encontrou ninguém. Na segunda vez que seu nome foi chamado, ele percebeu que vinha de Marina, caída ao chão, que movimentava somente os lábios. Ele reconheceria aquela voz cavernosa em qualquer lugar e vinda de qualquer lugar.

- Você?

- Sim. Esqueceu do nosso acordo?

- Não esqueci – Ludwig se agachou perto de Marina – Não se preocupe. Poderei possuir o corpo de outras pessoas para fazer o mal aos outros. Poderei possuir um presidente e aprovar leis abusivas. Talvez elevar o satanismo à categoria de religião formal. Possuirei clérigos e provocarei escândalos, sendo eles, que até o mais devoto perderá a fé e a esperança. Quem sabe o Papa? Eu sacrificarei pessoas e meus hospedeiros levarão a culpa. Eu serei o Anti-Cristo, se quiser. E possuindo pessoa a pessoa, poderia estabelecer uma nova era. Mas tenha um pouco de paciência. Eu preciso aproveitar um pouco a vida, ou a vida dos outros. Afinal, temos tempo.

- Não, Ludwig. Um padre está chegando – disse o demônio através de Marina.

- O quê?

- Um padre está à sua procura. Ele vem com a intenção de acabar com nossos planos.

- Mas como? Ele não pode me matar, pode? E exorcismo não funcionaria em mim, porque não sou um demônio. Se eu fosse tirado de um corpo, eu tomaria outro, não é?

- Não sei o que ele pretende fazer. Mas é melhor fugir. Você sabe o que aconteceria se ele conseguir o que quer. Você iria para o mundo dos mortos. Para o meu mundo.

Ludwig se levantou.

- Onde ele está?

- Os anjos me mantiveram afastado, mas eu pude descobrir que ele está na cidade, vindo para cá. Apresse-se, Ludwig. Antes que ele o encontre. Saia daqui.

Ludwig saiu apressado da sala de jantar, deixando Marina inerte ao chão. “Não” ele pensou “ninguém acabará com tudo”. Ele percorre pela casa, vasculhando tudo à procura das chaves do carro de Otávio. Não encontrando por nenhum lugar, ele foi ao quarto do casal e perscrutou por todas as gavetas. Ele acabou encontrando uma arma carregada com duas balas, que pôs no cinto. Ele foi ao guarda-roupa e colocou o sobretudo de Otávio. Depois, correu para a sala e abriu a porta. O demônio tinha dito que o padre estava perto e que precisava se apressar. Ludwig saiu pelas ruas a passos largos.

Fazia muito frio naquela noite e assim como quando ele morreu, uma neblina densa pairava pelo ar, tornando o mundo um borrão fosco, cheio de sombras e contornos.

Novamente a rua estava quieta. As pessoas se recolhiam em suas casas nas noites frias e por aquelas bandas não existiam bares ou outros estabelecimentos movimentados, deixando Ludwig sozinho, ouvindo sua própria respiração – tecnicamente a respiração de Otávio, uma vez que estava no corpo dele – e o som de seus sapatos nos paralelepípedos da rua.

Seu sobretudo esvoaçava por seus tornozelos como uma capa e ele sentia o revolver na cintura, preso ao cinto. Ele pretendia usar a arma para assustar alguém que estivesse no caminho, tomando literalmente o corpo por assalto, e pensava onde estaria o tal padre e se ele poderia reconhecê-lo em outra pessoa.

A rua desemboca em uma praça, onde ele para, encostado em um poste. Para um corpo relativamente jovem, ele estava demasiadamente cansado. Aquilo não era natural. Algo o estava atrasando. Ele olhou em volta, procurando alguém que pudesse possuir e prosseguir como outra pessoa, e viu uma silhueta sombria se aproximando através da névoa. Ele vestia uma espécie de túnica tão negra que poderia se confundir com a própria noite e foi quando chegou bem perto que Ludwig percebeu que era uma batina.

Padre Roger se aproximou e sob a luz fantasmagórica e pálida do poste com três lâmpadas os dois homens se encararam.

- Ludwig Fontaine. Que bom que te encontrei – o padre falou. E Ludwig sentiu uma sensação estranha. Depois desses dias sendo outras pessoas, atendendo por outros nomes, foi estranho ouvir seu nome verdadeiro sendo chamado por outra pessoa olhando diretamente em seus olhos, sabendo exatamente quem ele era.

- Sabe quem eu sou?

- Sei – disse Roger – Eu posso vê-lo, não importa em que corpo esteja. O anjo me falou que eu veria.

- Anjo? Foi enviado por anjos para me pegar? – Ludwig disse em tom de deboche, porém, sabia que o padre falava a verdade. A fraqueza que sentia poderia significar uma força com o sacerdote, uma presença que enfraquecia o poder do seu espírito sobre o corpo de Otávio – O que vai fazer? Lutar comigo? Você não mataria esse corpo, mataria?

- Não mataria ninguém. Posso não saber exatamente como, mas te impedirei de continuar.

Ludwig riu rispidamente.

- Os anjos não te contaram muito, pelo visto. Pelo menos sabe por que deve me impedir? Tudo o que fiz foi querer continuar vivo. Diga-me: há algum mal em querer viver?

- À que custo, Ludwig? – disse Roger – Mediante um pacto com o demônio que faz de você um ladrão?

- Um ladrão? – Ludwig não tinha entendido.

- Sim. Não percebe? Você rouba essas pessoas. Rouba a vida delas. Enquanto você está no corpo de alguém, ele não pode viver.

- Bobagem – disse Ludwig, sabendo que o que o demônio pretendia era muito mais grave que viver a vida dos outros – Vou tirar apenas alguns aninhos para mim. Os outros têm tanta juventude, por que não podem compartilhar comigo que perdi a minha?

- Você já teve a sua juventude. É hora de aceitar o fim dela.

- Aceitar e morrer? Sinto muito. Tenho outros planos – Ludwig deu passos para trás e para o lado, se distanciando do padre – Se me der licença, a conversa está ótima, mas eu tenho mais o que fazer.

- Não. Você não tem – Roger se aproximou.

- Deixe-me ser mais claro – Ludwig sacou a arma e apontou para o padre, que parou e levantou os braços como alguém que é assaltado ou pedisse calma. Em sua mão direita estava entrelaçado em seus dedos o rosário de contas vermelhas.

A quietude que se seguiu era densa como a névoa que os envolvia. A noite estava parada, observando o impasse entre os dois homens.

Ludwig pôs seu indicador no gatilho e apontou para o coração do sacerdote. Daquela distância não teria como errar. Roger fitava o revolver e os olhos de Ludwig, vendo naquele olhar um divertimento macabro, um deleite por usufruir daquele momento de expectativa antes do tiro, em que tinha o poder de matar ou deixar viver uma pessoa. Rapidamente, em um gesto aparentemente inofensivo, padre Roger traça com a mão direita o sinal de uma cruz no ar, como se desse uma benção, e fala:

- Exorcizamus te omnis immundus spiritus.

O tempo pareceu parar para Ludwig, paralisando seus movimentos. Embora as palavras em latim não fossem o suficiente para exorcizá-lo em definitivo, ele sentiu por um instante perder o controle sobre o corpo de Otávio; nesse breve tempo Roger correu para ele e tentou lhe tirar a arma. Ludwig se recuperou e apertou o gatilho, porém, Roger segurava seu braço no alto e a bala rasgou como um raio o ar para o céu escuro.

Roger conseguiu que Ludwig largasse a arma que caiu há alguns metros. Enquanto os dois se engalfinhavam, Ludwig derrubou Roger e tentou pegar o revolver, mas o padre puxou o sobretudo de Ludwig. Ele caiu, batendo a cabeça no chão e mesmo com as nuvens e o clima fechado, ele viu estrelas.

O padre tentou se levantar e pegar a arma, mas Ludwig estava mais perto. Mesmo tonto e com o rosto sagrando, ele se arrastou e esticando o branco a alcançou primeiro assim que Roger se abaixava sobre ele.

Um segundo tiro rompe o silêncio da rua e o padre tomba para o lado com as mãos no estômago. Ele levanta as mãos e as vê vermelhas com o líquido quente que se espalhava e encharcava sua batina.

O padre caiu como uma sombra sabre os paralelepípedos. Perto dele, Ludwig tenta se por de joelhos, sem conseguir. Ele ainda estava zonzo com a pancada na cabeça e sentia que poderia a qualquer momento desmaiar. Não sabendo se era alucinação ou outra coisa, ele podia ouvir burburinhos. Os moradores da circunvizinhança provavelmente estariam despertos, assustados com os sons dos tiros. Não seria nenhum absurdo pensar que a polícia estaria por perto. Era quase possível ouvir as rodas dos carros dos policiais se aproximando.

Ele precisava agüentar mais um pouco. Logo estariam muitas pessoas ali, ao redor, chocadas com a cena de um crime. Alguém se aproximaria dele, poderia ser um policial ou um passante, e ele o tocaria e iria para um novo corpo. Era só agüentar firme e ficar acordado para o toque.

Ludwig se arrasta para longe do padre, sentindo as pedras frias abaixo de si, o que o recordou do acidente, da sua morte na estrada e do cachorro de olhos com brilho escarlate. Assim como na outra ocasião ele sobreviveria, ele venceria a morte e viveria nem que para isso tivesse que espalhar a vontade do demônio.

Ele estava quase chegando à praça, sob a luz dos postes, quando sentiu alguém pegando em seu tornozelo.

- Exorcizamus te... – soou um sussurro praticamente inaudível. O padre Roger em um último fôlego tinha se arrastado pela rua deixando um pequeno rastro de sangue, e o alcançado.

Ludwig novamente experimentou aquela sensação de perder o controle do corpo, mas diferente da primeira vez, o padre Roger o estava tocando, estava ferido e estava indefeso.

Uma força o perpassa como um vento forte e no momento seguinte, Ludwig se vê vestido em uma batina, sentindo a dor de um tiro e pegando no pé de Otávio que estava desmaiado.

O sangue do padre Roger escorria de seu corpo, como as areias de uma ampulheta que se acabavam, contando seus segundos restantes. “Não!” as lágrimas lhe queimavam os olhos “Eu não posso perder tudo...” Ludwig pensou fraco demais para falar em voz alta “Não posso...”

Os dedos afrouxam o aperto na perna de Otávio e Ludwig repousa a cabeça no solo. A dor, o sangue quente, o solo duro em que estava deitado, tudo sumiu quando o manto da morte lhe sobreveio ao fim do último suspiro e do último batimento cardíaco.

Após, de uma forma que não se pode explicar, Ludwig viu – embora ver não seja o melhor termo para descrever – o padre Roger com quem habitava o mesmo corpo moribundo, mas naquele momento uma distância intransponível os separava, como se os dois pertencessem a duas imensidões completamente distintas e uma fronteira oceânica se abrisse entre eles. Para Roger havia um horizonte de luz, onde reinava a paz, onde a felicidade perfeita era possível, porém, Ludwig não iria experimentar nada daquilo. O abismo que o possuía e para o qual ele caía tinha trevas tão sólidas quanto às paredes de uma caverna e de suas profundezas além da escuridão emanava o mesmo brilho incandescente dos olhos do cachorro na estrada e vinha a voz tenebrosa que já lhe era familiar: “Você falhou Ludwig. Agora você é meu para sempre” ela dizia “Para sempre”.

O sentimento de perda que tinha torturado Ludwig em seu leito, antes de fazer o pacto não era nada comparável àquilo. Definitivamente, ele tinha perdido tudo. Absolutamente tudo. Nada mais lhe tinha sobrado, a não ser o ódio, as sombras...

E o fogo.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 30/10/2013
Reeditado em 07/11/2013
Código do texto: T4548328
Classificação de conteúdo: seguro