Psicose Literária parte 2
Como seria concebível realizar, ou mesmo cogitar tal feito egoísta e desumano? Nesse momento, ele era o pior homem da face da Terra, ou talvez aquele que melhor representasse o que realmente somos. Provavelmente sentia-se assim, como se desfrutasse ali o sabor amargo da essência de nossa espécie. Somos também animais, na verdade, somos primeiro animais, depois pensamos em humanidade. E assim estava ele, se vendo como um animal com desejos incrivelmente humanos. Então o fez. De um modo surpreendente e impiedoso. Não estava alcoolizado, nem ao menos havia planejado, por mais que ele tivesse a convicção que o momento estava próximo não tinha certeza de quando seria. Já não tinha medo, tampouco pensava em remorso, sua mente trabalhava por uma via de mão única, sem pensamentos duais. As palavras de seu agente realmente o afetaram intensamente, mas provavelmente já tivesse uma inclinação à loucura, ninguém que esteja em pleno domínio de suas faculdades mentais hortaria pensamentos tão execráveis. Assim, num ataque fulminante de cólera provocada por uma discussão banal com sua esposa, ele inicia sua ininteligível vingança contra sua família. As crianças brincavam inocentemente no jardim. Ele a golpeou de súbito interrompendo bruscamente o que ela dizia, banhada em sangue e perplexidade, caiu entre a mesa e o fogão solenemente branco, ainda não havia sucumbido, pois a faca não afetara um ponto vital. Lá estava ela, ensanguentada, exalando porquês pelos poros. Trêmula. Fitando horrorizada o amado algoz de pé, à sua frente ainda com a arma em mãos, suando bicas.
Apesar dos pedidos desesperados e agonizantes de sua esposa, ele não parou, não teria como, estava possesso e só pensava em calar aquela maldita voz de súplica. Desferiu mais quatorze golpes com surpreendente perícia. A partir da quinta ou sexta facada a pobre senhorita já não reagia de nenhum modo, mesmo assim, envolto pelo ódio infundado e cada vez mais fértil, ele continuou até deixá-la em frangalhos. Quando finalmente cessou, parte do sangue já havia coagulado e ela esboçava uma expressão quase sacra em seu rosto hipnotizante de tão belo. Uma linda mulher. Certamente dedicou seus últimos instantes de vida a preocupar-se com seus filhos. A preocupação tinha fundamento. O escritor psicótico levantou-se esbanjando uma profunda respiração, limpou as mãos ensanguentadas e se dirigiu ao jardim; as crianças prontamente o convidaram para brincar, como sempre faziam. Ele foi até os meninos e passou-lhes as mãos carinhosamente sobre seus cabelos. Chamou-os para dentro. Os dois meninos caminharam em direção a morte sem pestanejar, eram bastante obedientes. Não passaram pela cozinha, mas perguntaram pela mãe. “Foi fazer umas compras, meus filhos”. O pai então levou os garotos diretamente ao quarto deles. Lá se sentaram delicadamente em suas respectivas camas a pedido dele. Ele sentou-se num pequeno banquinho próximo a porta para que pudessem vê-lo sob o mesmo ângulo. Os rostos rosados e os olhos atentos dos pequenos não o fizeram esmorecer e repensar no que estava prestes a fazer. Começou então a comentar as razões que estavam motivando seus atos, obviamente as crianças nada entenderam, na verdade não era como se ele estivesse explicando a ninguém, o fazia somente para reforçar sua própria decisão: escolhera sua carreira em detrimento da própria família, pois àquela altura achava que eram duas coisas que não podiam coexistir.
Ao terminar de comentar suas confidências, as crianças permaneciam rigorosamente no mesmo lugar e posição, aí então ele foi em direção ao mais novo, o pegou pelos braços gordinhos, o suspendeu à altura dos seus ombros e sorriu. Os dois sorriram. A criança tinha apenas quatro anos, de nada tinha noção ainda, e nunca teria. Ele a deitou na cama e com o felpudo travesseiro começou a pressionar sobre o rosto do garoto, cada vez mais forte. O outro menino assistia a tudo e sorria inocentemente considerando tudo aquilo uma grande brincadeira. Depois de algum tempo de sufocamento o pequeno sofredor começou a debater-se freneticamente como se estivesse se afogando no mar da infância pouco vivida. Seu irmão começou a chorar, e percebendo que havia algo de errado pedia insistentemente para seu pai parar. Aquela cena poderia certamente comover qualquer indivíduo, mas Ele estava implacável. Inabalável. Era como se uma força maligna guiasse suas ações sem nenhum receio. A criança dera seu ultimo suspiro, “ele está dormindo, está só dormindo”, disse ele para tranquilizar sua próxima vítima. Está dormindo. Um eterno sono. Uma pequena vida esgotada pelo extremo e doentio egoísmo desperto e alimentado elefantemente em tão pouco tempo.
O outro garoto, após ouvir seu pai, sentiu um inexplicável frio na espinha provocado por aquela voz gélida e assustadora. O medo atingiu dorsalmente o espírito da pobre criança que correu desesperadamente gritando pela mãe. Ao descer as escadas como se não houvesse degraus, o garoto se deparou na cozinha com o corpo incrivelmente perfurado de sua querida mãe, sua agilidade de segundos atrás se fora o deixando num estado de paralisia, simplesmente não conseguia se mover diante daquela imagem estarrecedora. O assassino rapidamente o acompanhou. Confuso e desolado o menino abraçou fortemente o pai apontado para sua mãe como se uma dolorosa interrogação fosse emitida pelo seu pequeno dedo indicador. Mal sabia o garoto que estava agarrado ao homem que causara toda aquela terrível situação. O decadente escritor respirou fundo mais uma vez e afastando os bracinhos do filho o segurou pelo pescoço com a maior força que dispunha e com o mínimo de piedade que se pode ter. O menino não se cabia em agonia e não parava de se contorcer. As lágrimas torrenciais não cessavam, seu nariz escorria e sua respiração se mostrava cada vez mais espaçada, e foi-se esvaindo até o momento que não pôde mais adiar seu encontro com a morte, desfaleceu. Talvez ainda estivesse com um vestígio de vida no momento que foi lançado ao chão, mas logo cederia e morreria, possuía um corpo muito frágil. Estava feito. Terminado. Não havia mais família. Na realidade não havia mais nada, também ele estava morto, de algum modo. Mas era preciso escrever o livro, esse imperativo era o que mais martelava em sua mente fria. Já se imaginava descrevendo onde, quando, isso e aquilo. Em sua cabeça todo o livro já estava esboçado, só restava passar tudo isso para o papel.
“Ó céus, porque a vida teria me destinado tal dose de ironia?” Curiosamente não conseguia mais escrever. Não do jeito que tanto desejava, não podia se satisfazer com qualquer frase, era sua obra-prima e precisava de uma inspiração inconcebível, daquelas que não surgem a um individuo qualquer, aquelas que só os grandes sábios conseguem aproveitar. Havia feito e desfeito um sem-número de inícios para seu livro, mas nenhum estava digno, nunca estaria, pois depositou tamanha soberba e expectativa em sua genialidade esquizofrênica que a ultima coisa que teria competência pra fazer era uma boa história. O Livro se tornara maior que ele. Sua incapacidade de escrever algo aceitável o deixou num estado ainda mais deplorável. Suas esperanças foram postas numa história tão primorosa que ficou impossível descrevê-la em simples palavras.
“É só uma questão de tempo! Logo estarei vendo tudo com mais clareza e aí sim começarei a escrever tudo como tem de ser escrito, de um modo impecável.” Não aconteceu. Alguns dias se passaram, o telefone e a campainha já haviam tocado infinitas vezes, como se o mundo perscrutasse alguma informação sobre a família que a muito não dava sinal de vida. Ele já não sabia mais o que fazer. Colocou a culpa de sua surpreendente inércia literária no idioma, era demasiado limitado para expressar tão grande emoção que transmitiria em seus escritos. Duas semanas se passaram. Emagrecera alguns quilos; a barba já escurecera grande parte seu rosto, tinha profundas olheiras causadas pela insônia crônica. Sua aparência se transformara de tal modo como se buscasse uma representação estética para se assemelhar ao que fizera com seus entes. Brutalidade. Selvageria. Passou dois dias inteiros deitado, olhando para o teto de braços abertos no tapete persa. Sem beber nem uma gota d’água, sem comer sequer uma migalha de pão. Zumbi.
Pouco tempo depois de completar um mês após o acontecido, ele começou realmente a se dar conta do que havia feito, como se um choque de realidade o atingisse vertiginosamente. Ficou horrorizado. As lágrimas secaram. Não parava de tremer, nem mesmo quando ganhava alguns minutos de cochilo. Mas em nenhum momento pensou em suicídio. Os flashes daquele dia fatídico surgiam em sua mente de modo tal que o deixava com a sensação de estar enjaulado junto a crocodilos famintos. Mesmo assim ainda pensava em seu livro. Sua máquina de datilografia continuava lá de prontidão, esperando o primeiro lampejo do escritor. Ele a fitava por várias horas ao dia, mas a folha em branco posicionada no aparelho era o que melhor representava sua inspiração para escrever.
Passaram-se mais alguns dias, seu corpo estava num estado miserável, seus poucos passos eram cada vez mais frágeis. E Aquele cheiro insuportável. Alguns vizinhos que imaginaram por alto que a família teria viajado começaram a dar fé do odor. Na vizinhança mal conheciam uns aos outros, contudo perceberam que alguma coisa estava errada. Chamaram a polícia. Chegaram rápido e sem titubear tocaram insistentemente a campainha. O escritor a essa altura já imaginava quem estava à sua porta e porque chegaram até ela. Não importava. Levantou-se do tapete persa se sacolejando desajeitado e um súbito desejo veio-lhe à cabeça: queria ver sua família pela ultima vez, por pior que estivessem, afinal, desde aquele dia evitou passar o olhar sobre suas vítimas, não os observara nem por um segundo. Então, foi lentamente ao quarto dos filhos onde o mais novo sucumbira de modo cruel e agonizante. Lá estava o pequeno que, mesmo rodeado por moscas, ainda parecia manter um tênue aspecto angelical. O escritor o fitou por alguns segundos, depois começou a tossir ininterruptamente em razão do fedor. Ansiava vomitar, mas certamente nada sairia daquele corpo a não ser resquícios de sua bile. Desceu as escadas acompanhado do toque cada vez mais decidido da campainha, sabia que em um ou dois minutos tudo estaria acabado. Tudo, exceto seu livro.
Ao descer, dirigiu-se de um modo decadente até a cozinha, apoiou-se na parede com a palma da mão e ergueu a cabeça em direção aos corpos. Nesse exato momento, um dos policiais virilmente arromba a porta com um forte chute, o frágil escritor não se deu ao trabalho de olhá-lo, era como se já tivesse vivido esse momento mil vezes, nada que acontecesse ali seria imprevisível para ele. Os policiais tentam chamar a atenção do moribundo entoando gritos firmes de ordem, assim, com as pálpebras semiabertas ele cai de joelhos, escorando as nádegas sobre seus calcanhares encardidos, neste momento, qualquer um que presenciasse tal cena seria capaz de medir até que ponto um ser humano pode alcançar na escala da degradação. Após isto, os policiais se entreolharam como se estivessem em dúvida da abordagem a ser executada, e não era à toa: o assassino aparentava ser tão vítima quanto os cadáveres encontrados na casa momentos mais tarde. E dessa forma, ele ficou conhecido por todo o país somente como o escritor assassino, não tinha mais nome, não tinha mais nada, restou-lhe apenas a perspectiva de escrever seu livro no tempo perpétuo do cárcere.
FIM.