Psicose Literária parte 1
Uma folha em branco era a visão mais recorrente em sua vida desde então. Fitava-a insistentemente, mas não conseguia mais escrever depois que havia feito. Agora estava sozinho. Aliás, estivera sozinho há muito tempo, contudo, desta vez se encontrava fisicamente só, por pouco mais de um mês não vira algum mísero rosto diferente, nem o seu próprio. Quebrou todos os espelhos da casa, pois não suportava a expressão de fracasso e desolação tatuada em sua face. Por vezes conseguia se enxergar furtivamente no reflexo da água em suas mãos antes de lançá-la contra o rosto, ou senão era possível se reconhecer de um modo deformado na garrafa de uísque recém-esvaziado, esta sim, era a imagem que mais lhe agradara nos últimos tempos: seu semblante totalmente distorcido, o que representava para ele, a desfiguração de seu pobre espírito. Diante do estado de solidão, há muito tempo não pronunciara uma só palavra. Não carecia, ele não era do tipo que jogava palavras ao vento, o máximo que produziu sonoramente durante esse período fora alguns gritos dispersos de desespero e angústia motivados pelas lembranças vinculadas ao que fizera, surgiam em sua mente com tanta força e violência que não conseguia conter-se em silêncio: gritar emudecia sua mente e o deixava um pouco menos morto.
Falando nisso, não cogitou em nenhum momento a ideia de suicídio, para ele, viver o maior tempo que dispusesse com aquele sentimento tão corrosivo quanto ácido era o único modo de diminuir em alguns per centos sua parcela de responsabilidade sobre seu ato. Assim, já realizara o próprio julgamento pessoal, pois os meios jurídicos já não importavam mais, tampouco a punição divina, até porque não era religioso. No entanto fez de seu lar um inferninho particular para ser simultaneamente, demônio e pecador, onde ele mesmo prepara a via-crúcis e a percorre sem auto-refutações.
A casa era grande, entretanto ele passou maior parte do tempo num quarto dos fundos, sem móveis, onde havia apenas um belo tapete persa e sua máquina de datilografia com uma folha posicionada ansiando a primeira frase ser escrita. Ele achou que conseguiria escrever e secretamente ainda tinha esperança de fazê-lo, mas não podia dormir por pouco mais de quatro horas por dia, os pesadelos eram constantes e verossímeis e o cheiro dos corpos já impregnava toda a casa. O cheiro era mesmo o pior de tudo, aquilo que o deixava mais angustiado. Cansava-o. Espalhado por todas as partes da casa, exceto no tapete persa. Por isso ele passava horas a fio de bruços, com os braços abertos e o nariz estacionado nas cerdas do tapete. Podia cultivar o terrível sentimento até o fim contanto que não precisasse suportar o aroma da morte. Sabia que lhe restava pouco tempo até que o cheiro se ousasse a romper os limites da casa e chamar a atenção do mundo que há depois da porta da frente.
Pois então, se quisesse que valesse a pena tudo que havia feito, deveria começar a escrever logo. Seria sua obra-prima. Um estandarte da literatura moderna, recuperaria enfim, o reconhecimento de todos, mesmo com um débito tão alto a pagar, o sacrifício não seria em vão. Não o sacrifício próprio, mas o de seus entes: sua bela e amável esposa e seus filhos, carinhosos e educados. “Morreram para entrar na história”, pensava ele, em momentos de intensa insanidade, “serão eternos personagens do meu legado como escritor, estarão vivos por séculos no imaginário de toda a humanidade! Ora, como não? Se estivessem aqui prestariam inúmeros agradecimentos a mim por serem escolhidos para tal.” Sua mente agora doentia costumava variar do estado de plena culpa e desolação para uma incontinente e repentina megalomania. Um desgraçado dégradé de emoções que o deixava cada vez mais demente. Não era à toa que se encontrasse nessas condições, afinal praticara um dos atos mais lastimáveis conferidos ao ser humano: o assassínio da própria família.
“Mas foi por uma causa nobre! E ademais, eles me jogaram no poço da decadência, precisava ter feito algo, sim, tudo faz sentido!” Essa ideia repugnante brotou-lhe em sua cabeça paulatinamente, tendo como origem um sincero diálogo com seu agente, “antes de seu casamento cara, você era louco, bebia como ninguém e tinha várias mulheres, quantas quisesse, havia histórias pra contar e não eram poucas, sua mente borbulhava em criatividade e isso se traduzia em grandes escritos seus, por isso tinha se tornado um grande escritor, hoje você não é mais nada. Você é do tipo que precisa viver pra escrever, toda sua obra até hoje foi baseada em sua vida, por isso mesmo agora você é um cara decadente e sua familiazinha o deixou assim, sua vida é decadente e seus escritos também seguem o mesmo ritmo, tudo chatice. Volta a viver cara, viva para ter uma história pra contar, estão todos esperando você tornar a ser quem era, quem nunca deveria ter deixado de ser...”, nesses termos, a coisa que ele mais prezava no mundo, sua carreira, se transformara num fiasco, precisava reverter isso, custasse o que custar.
“Viva cara, para ter uma história”, depois dessa conversa com seu agente e conselheiro essa ideia foi-se germinando tão intensamente que não conseguia pensar em outra coisa, “viver uma história, viver uma história, fazer uma história, fazer história”, os pensamentos dele iam sendo gradualmente atingidos por uma gangrena de obscuridade, pensava finalmente que para voltar a escrever como antes precisava se livrar de sua família, a esquizofrenia rondava suas ações e emoções. A partir daí cada vez que observava seus filhos brincando e sorrindo, e sua mulher realizando as tarefas domésticas com todo o carinho e dedicação, pensava como eles estavam sugando seu talento e transformando num escritor inconstante. Aquilo não era vida. O ódio crescia vertiginosamente e a rotina tediosa potencializava ideias psicóticas e compulsivas. A essa altura formulava diversas maneiras de abstraí-los de sua vida, e só a morte lhe parecia a opção plausível e necessária. Então começa a surgir em sua mente doentia a possibilidade de destruir sua família e renascer enquanto escritor. A premissa de que, sem seus entes sua carreira iria renascer como uma fênix levantando voo já lhe soava como uma verdade absoluta. A solidão realçava sua aptidão para a escrita. Mal via a hora de voltar a escrever majestosamente como antes e se envaidecer diante dos elogios que outrora havia se habituado.
Durante meses fora crescendo em seu ser a vontade de ver seu lar definhar às suas vistas. Tornara-se frio com todos. Isolou-se em sua redoma psicótica, todos eram inimigos, pois o condenariam caso seus pensamentos viessem à tona. Não podia mais confiar em ninguém. Estado paranoico. Olhava para todos os lados a todo o momento. A única coisa que o fazia esboçar um leve sorriso era reler seus antigos escritos e fomentar a esperança de que tudo voltaria a ser como antes. A nostalgia era obrigatória e morbidamente seguida pelo desejo de aniquilar seus inimigos do lar.
“Dei minha vida por eles, e o que eles fazem? Acabam com minha criatividade, destroem minha carreira, me deixam decadente. Mas isso não ficará assim, não mesmo.” Só lhe faltava a coragem da prática, pois a bravura de admitir a si mesmo seus intentos sórdidos ele já havia alcançado. Imaginava como seria glorioso seu retorno as livrarias, mataria sua família e faria deste ato o enredo para o novo livro. Sim! Estava tudo certo, todos ficariam estupefatos e secretamente maravilhados com todos os detalhes descritivos que constariam no texto, quebraria todos os paradigmas vigentes. Seria ali inaugurado um novo momento da literatura mundial. No primeiro instante, as pessoas o bombardeariam impiedosamente pelo que havia praticado, mas os insultos costumeiros estariam criptograficamente carregados de admiração pela bela e pormenorizada descrição de seu ato. Seria a redenção de sua carreira e o declínio de um homem na sociedade. O escritor do submundo. Um maravilhoso paradoxo que mexeria com a cabeça de todos os leitores e marcariam suas vidas. Só isso o interessava agora. Marcar. Chocar. Faria com que as pessoas sentissem desejos absurdos e obscuros ao lerem sua obra. No fundo tinha a certeza de que toda a humanidade tem intrinsecamente o instinto psicótico de contemplar a violência e a barbárie.
Sabia que esta podia ser sua ultima obra, mas estava tão obcecado com a ideia que nada mais importaria, nada precisaria ser escrito após o ponto final. Só lhe faltava mesmo a coragem do ato. Nunca tentou contra a vida de alguém, tampouco agredira sua esposa, ultima vez que havia brigado ainda cursava o colegial. Por mais que seu estado fosse de plena psicose, ainda esbarrava em preceitos cultivados durante toda uma vida e era cabível que mesmo anestesiado por pensamentos tenebrosos, seu corpo poderia não responder a seus comandos quando necessário. Pensava fazê-lo ébrio, mas isso prejudicaria a etnografia do ato, pois poderia perder alguns detalhes ou mesmo não lembrar devido à embriaguez.