O necrotério
Desde a infância sempre sofreu de solidão, órfão de mãe, o pai alcoólatra, tinha apenas a avó para cuidar dele. Cresceu sem futuro, sem educação, cresceu sem saber quem era. Depois dos 20 conseguiu um emprego insosso, mas que mudaria sua vida completamente, pois ninguém sofre de solidão toda a vida, há certos momentos em que surge alguém, e que este alguém te proporciona sentimentos outrora inimagináveis, mas com ele, a coisa foi um tanto peculiar. Peculiar é uma palavra muito simplória pra designar tamanha ousadia mórbida. Ele começou a trabalhar como vigia no necrotério da cidade, no turno da noite, folgava uma vez por semana, um salário mínimo com alguns benefícios fajutos. O maior dos benefícios para ele era o próprio trabalho, que lhe dera tanto prazer jamais sentido por outro ser humano. Agora não se sentia mais só e vivia inúmeras vidas diversas, agora ele era tudo que sua imaginação podia criar, um homem que vivia na fronteira da vida e da morte, e fazia os mortos viverem outra vida.
A primeira vez que adotou um cadáver foi no natal, a ideia surgiu influenciada pelo clima da data, precisava compartilhar aquilo com outrem, pois já não suportava mais confrontar seu cotidiano tão solitário. Trabalhava em pleno feriado, não havia mais ninguém no necrotério, e já passava da meia-noite. Chorou um pouco, mesmo sem saber o porquê, o vazio lhe furtava algumas lágrimas. Num ato pouco pensado,foi até a ala dos corpos e levantou o lençol de um homem de meia-idade que havia morrido por complicações cardíacas. Olhou-o fixamente e depois de alguns segundos pensou como estava frio no lugar e se pôs a buscar alguns trajes para o cadáver. Vestiu-o delicadamente para não machucá-lo. Percebeu que ele parecia desconfortável estando a tanto tempo deitado, numa mesma posição. Colocou-o sentado. Agora sim, tinha alguém para conversar. Sentou-se à frente do morto na maca e falou um pouco de sua triste vida. Pareciam estar se dando bem, afinal a conversa fluía e o cadáver parecia bem atento às confissões.Foram várias horas de diálogo e Alfredo continuava empolgado a contar suas histórias. Olhou para o relógio e percebeu que seu turno estava perto do fim. Esta tinha sido a melhor noite de trabalho de toda sua vida, nunca havia sentido algo assim, nunca nenhuma pessoa havia dado tanta atenção quanto aquele homem que reservou algumas horas de seu descanso eterno para ouvi-lo. Assim, despediu-se do corpo, que batizara de Euclides e foi para sua casa esboçando um tímido sorriso que contrastava sutilmente com as caras inchadas e fechadas dos indivíduos que estavam começando seu dia de trabalho depois do feriado.
Alfredo não conseguiu dormir aquele dia. Ansiava pelo próximo dia de trabalho, mesmo sabendo que Euclides provavelmente teria ido embora. Queria mesmo era conhecer outros cadáveres, contar-lhes algumas piadas e falar mal das pessoas em geral. Sua casa era pequena e mal cuidada, quase nunca dormia em seu quarto, pois tinha mania de pegar no sono assistindo TV, era preguiçoso quando se tratava de assuntos domésticos, nunca foi adepto da limpeza e sempre usava louça e copos descartáveis para não precisar lavar nada. Comia quase tudo enlatado para não cozinhar. Não fazia nada o dia todo, vivia somente para ocupar algum espaço no mundo. Na noite seguinte se preparava para o trabalho como se fosse um fanático torcedor indo ao jogo de seu time do coração. Ao chegar lá cumprimentou de modo displicente o vigia que iria substituir e acendeu um cigarro para acompanhar a xícara de café.
- Alguém deu entrada aqui hoje? – Perguntou Alfredo ao vigia que se ajeitava para ir embora.
- Não, ninguém, tu vai tomar conta das moscas, cuidado pra nenhuma entrar em sua boca enquanto cochila na madrugada.
Alfredo não riu. Por dentro estava profundamente decepcionado, teria de passar a noite sozinho. Ninguém havia morrido na pequena cidade. Parece que depois daquela noite com Euclides sua perspectiva de vida tinha sofrido alguma mudança, a solidão não era mais aceitável para ele, ficava inquieto a todo o momento. Foi uma noite difícil, fumava a cada cinco minutos, mas naquele momento estava sofrendo mais que seu próprio pulmão. A manhã chegou e retornou cabisbaixo à sua casa. Sua avó foi visitá-lo pela tarde e como sempre o criticou pela imundície do lugar e o chamou de imprestável e mais uma vez o alertou de que nunca iria arranjar uma mulher desse jeito. Ele se esforçava em fingir que dava ouvidos, pelo menos ainda restava um pouco de respeito. A velha se foi deixando algumas frutas e “comida de gente, não essas porcarias enlatadas que você come”. Aquele dia não iria trabalhar, estava de folga. Dormiu até as duas da tarde, não tinha nada melhor para fazer. Ao acordar, comeu a azeda comida da avó e caminhou dois quarteirões para comprar cigarro. No mercado ouviu o boato de que alguém tinha morrido no dia, era uma jovem mulher vítima de um marido ciumento, havia sido alvejada com um tiro no peito. Alfredo ficou radiante e olhava para o relógio com suas lentas passadas de ponteiro. Torcia pelo óbito alheio como se isso lhe desse um pouco mais de vida. Chegou ao necrotério meia-hora antes do horário de bater seu ponto. O esperto vigia do turno da tarde tratou logo de ir embora. Lá estava Alfredo, aguardando os peritos deixarem o recinto ao ritmo de suas batidas frenéticas de pés. Depois de duas longas horas eles se foram. Pronto, o lugar era só dele agora, respirou fundo e foi até a sala refrigerada conferir sua mais nova amiga.
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Lá estava ela, com aquele lençol azul claro cobrindo-a. Alfredo se aproximou em passos lentos, como se apreciasse cada segundo desse momento de expectativa. Ao puxar o pano de modo cerimonial ele viu uma mulher simplesmente deslumbrante. Não acreditou que estava morta, “a pequena cavidade em seu seio pode ser apenas uma ferida superficial” pensava ele, sem nenhum senso de realidade. De fato ela parecia estar apenas num sono profundo, ainda estava corada e tinha um corpo exuberante. A cada vez que Alfredo a olhava nos olhos ela parecia mudar de expressão. Ele ficou fascinado. Apesar do frio, dessa vez não quis vestir o cadáver, para falar a verdade nem cogitou essa possibilidade. Com a mão trêmula, como se esperasse uma súbita reação da mulher, ele foi encostando levemente sua mão sobre a face dela e em seus cabelos loiros. Sua mão foi escorregando e percorrendo vagarosamente todas as sinuosas curvas. Todo movimento dele era realizado com extrema apreciação, do tempo, do espaço e do corpo. Não sentiu desejo de conversar com ela, mas a batizou de Suzy. Levantou sutilmente as pálpebras para ver a cor dos olhos, eram verdes. Combinavam com a cor do esmalte semi-descascado. Aparentava ser uma mulher vaidosa, pele límpida e macia, cabelos brilhosos e depilação em dia. Sua libido começou a aumentar desproporcionalmente. Nunca havia sentido nada igual, precisava tê-la naquele instante. Certificou-se que as portas estavam trancadas. Num movimento delicado pôs as pernas da mulher num ângulo favorável para penetração. Nem sequer passou pela sua cabeça algum tipo de autocensura ou debate sobre moralidade. Assim deu-se princípio ao ato, ele a tratou como se trata uma virgem em plena iniciação sexual, com bastante cavalheirismo. A genitália da mulher ainda estava aquecida mas ele precisou lubrificá-la com saliva, não era problema, nada ali poderia ser problema para este homem, que de tão solitário buscou refúgio nos mortos. Depois do orgasmo sentiu-se feliz, como nunca se sentiu antes, aqueles momentos estavam sendo os mais incríveis de sua vida, não conseguia tirar o sorriso do rosto. Depois de se vestir olhou para o rosto de sua parceira, teve a certeza de ver um leve sorriso desenhado nele. A hora de encerrar seu turno estava próxima, mas sua vontade era de ficar ali para sempre, nada fora daquele lugar interessava mais, o melhor de sua vida estava em meio aos que já se foram. Euclides foi seu melhor amigo, Suzy sua amante mais fervorosa, sem hipocrisia e sem esforço teve ali suas melhores companhias. Seu horário de trabalho acabou, retornou a sua residência cantarolando uma música qualquer. Dias depois entrou no necrotério, mas dessa vez não foi para trabalhar. No criado-mudo da sua avó, deixou um recado dizendo que estava com saudades de seus amigos e iria reencontrá-los.