“Jamais zombe daquilo que não tiveres ciência. O que lhe é oculto que permaneça oculto”
P.M
 
Agosto de 1954.
 
 
Abri a porta que tinha o letreiro “Angelina Chaves – Investigações Confidenciais”entrada. Denise, a secretária me olhou levantando os olhos de suas anotações e, sem perder uma letra do teclado, exclamou:
 
- Entre. Ela o espera.
 
O ritmo “staccato” de sua máquina de escrever me acompanhou através do escritório até a porta com o letreiro: “Angelina Chaves – Privativo”.
 
Angelina, rude, maciça, belicosa e renitente estava sentada à escrivaninha. Os ornamentos em pedras preciosas brilhavam à luz matinal enquanto ela se movia vagarosamente na cadeira que rangia suave. O homem magro, de quarenta e tantos anos, sentado na cadeira do cliente fitou-me ansioso e apreensivo.
 
- Você demorou – disse Angelina.
 
Em vez de responder, examinei o cliente, um homem esbelto de cabelos já embranquecendo, bigodes grisalhos e uma boca que denotava ansiedade, algo próximo do medo, talvez.
 
Os óculos escuros me impediram de distinguir a cor daqueles olhos.
 
- Sr. Haroldo – disse Angelina – este é Eduardo Nunes, o rapaz a respeito do qual lhe falei, Nunes, Haroldo Pena.
 
Inclinei-me.
 
- Bom dia Sr. Nunes – disse Pena, com voz de um homem que aprendeu a se disciplinar para subordinar suas impressões gerais às propostas exatas.
 
Não me estendeu a mão. Parecia decepcionado.
 
- Não tire conclusões precipitadas a respeito de Nunes – acrescentou Angelina. Ele aparenta ser jovem, mas é deveras dinâmico e focado naquilo que precisamos que ele seja. É pequeno em estatura, mas grande em sabedoria.Se há respostas para o que procura, somente este homem poderá encontra-las.
 
Haroldo Pena inclinou a cabeça. Tive a impressão que não o fez com muita convicção, mas não pude ver seus olhos.
 
- Sente-se Nunes – disse Angelina.
Sentei na cadeira dura e de encosto reto.
 
- Este homem já fez coisas que o senhor não acreditaria se lhe contasse.
 
Angelina fez uma pausa para rir de boca fechada e prosseguiu:
 
- Nunes já consultou vários “Espíritos” e encontramos sempre o que procurávamos. O senhor presenciará.
 
Angelina me encarou com uma expressão sintética de afeto, que não tinha a menor autenticidade.
 
Haroldo inclinou a cabeça.
 
- Sr. Nunes. Eu poderei ver o que o sr. vê?
 
- Sim – Lhe disse sem a menor rusga de dúvida. Sempre fazem essa mesma pergunta.
 
Somos charlatães em busca de dinheiro fácil à custa da ignorância e, digamos, certa inocência das vítimas que Angelina pescava em seu trabalho. Eu nunca fui necromante. Para dizer a verdade, não acredito nessas coisas.
 
Haroldo Pena não quis esperar até domingo, quando a filha iria chegar para participar do ritual.
 
- Vamos fazer hoje, sexta-feira – disse fitando-me novamente com dois pequenos olhos escondidos atrás daqueles óculos – eu consigo tudo ainda hoje.
 
Fiz que sim com a cabeça, concordando com o homem que já não controlava suas ações que de início pareciam sob o domínio de uma pessoa treinada para moderar as emoções.
 
Angelina parecia se divertir enquanto o homem me estendia a mão, agora mais confiante.
 
Angelina usa o interfone para pedir a Denise, café para o cliente, água para todos.
 
***

 
A noite chegou acompanhada de uma brisa suavemente fria, que aos poucos ganhava força e uma densa névoa começava se fazer presente, trazendo consigo o cenário que causaria calafrios em pessoas normais, mas não em mim.
 
O cemitério deserto era o cenário perfeito para o ritual. Estamos em frente ao mausoléu da família Pena, onde Gertrudes Pena, a falecida esposa seria contatada.
 
Angelina, aparentemente com medo, fica ao meu lado, enquanto Haroldo Pena aparece a pé entre os jazigos em direção ao local combinado.
 
- Aqui está. Tudo o que pediram – Pena foi dizendo ao chegar com uma caixa de madeira em mãos – onde coloco?
 
- Aqui Sr. Pena, por favor – Angelina aponta uma mesa dobrável onde o material seria devidamente separado para que o ritual tome forma.
 
Objetos pessoais de sua esposa, muitas velas e incensos foram juntados aos pentagramas e outros equipamentos, apetrechos de uso nesta situação.
 
Um bode negro amarrado ao pé de uma pequena arvore faz com que o homem recém chegado tenha um sobressalto ao emitir um balido assustador, pois dizem que esses animais sabem quando serão sacrificados e o pavor da morte não perdoa nem os seres irracionais.
 
- Is-isto é necessário? – consegue balbuciar o tremulo homem.
 
Somente olhei para ele e naqueles olhos pude ver uma pequena faísca de arrependimento.
 
- Será de extrema importância, sem o animal não haverá contato, pois o sangue dele abrirá o portal.
 
O homem assentiu com a cabeça...
 
Dispostos os materiais para o ritual, todos se encontravam em volta da mesa e nesse momento os dois olham em minha direção.
 
Fico de frente com o homem que me contratou para descobrir através dos “espíritos” quem assassinou sua esposa. Uma mescla de esperança e ódio irradiam de seus olhos.
 
Havia um desenho feito na mesa, um pentagrama com o sangue do animal que ainda vive, e esse não deve morrer antes que termine o contato com os “espíritos”. Os olhos de Pena estão mais abertos que o normal, ele tremia compulsivamente. Angelina, mesmo sabendo que não passava de uma encenação sempre demonstrava medo e seus pelos eriçavam-se a cada vez que eu dizia algo.
 
Após invocar os seres de outra dimensão com palavras que eu mesmo criei para causar uma impressão ao homem que buscava vingança acabei conseguindo algo maior, muito maior...
 
***


 
Um vento morno e fétido tomou conta do lugar.
 
- Podemos parar? – Angelina nunca havia interrompido um ritual antes e achei ser parte da encenação, mas ela destilava um medo inexplicavelmente insano – Algo está errado! Vamos parar!
 
Tarde demais.
 
Angelina ainda tentou correr, mas uma força invisível alcançou a mulher que começou a flutuar sobre os túmulos e seu corpo a se contorcer fazendo com que ouvíssemos os ossos estralarem. Em segundos os gritos ecoaram pelo cemitério e uma massa disforme de carne e sangue fora arremessada em nossa direção. Tudo aconteceu muito rápido e minha percepção humana não conseguiu acompanhar.
 
Assistia a tudo, mesmo não acreditando em nada daquilo, movido pelo instinto de sobrevivência tentei correr. Minhas pernas não respondiam ao comando enviado de meu cérebro e ali fiquei paralisado vendo o Sr. Pena cair de joelhos e tentar fazer contato com os demônios que ele acreditava ser os “espíritos”. Ele não se importou com a morte trágica de Angelina, Pena só queria saber quem matou a esposa. Na verdade ele sentia uma sede enorme por vingança.
 
Nesse instante, um ciclone de almas gritantes desceu sobre a cabeça do grisalho senhor e seus olhos continham um brilho avermelhado. Sangue jorrava de sua boca que mesmo assim emitia um grunhido apavorante. Pena correu em direção ao bode que se debatia na tentativa frustrada de escapar e com um só golpe arrancou a cabeça do animal que começou a devorá-lo. Enquanto nacos de carne eram arrancados do homem, da cabeça do animal surgiam pernas muito maiores que as antigas e um corpo meio homem e meio animal se materializava bisonhamente.
 
Tremores tomavam conta do lugar e pude senti-los em meus ossos...
 
Meus medos de toda a vida, se juntos, não chegariam a um milionésimo do que sentira naquele momento. Em todo esse tempo em que me dizia necromante, jamais senti a presença de algo do além. Eu nunca acreditei nessas coisas, mas creiam, elas são reais.
 
De repente, como se o tempo parasse, tudo ficou calmo e somente o cheiro do sangue dos personagens desse episódio macabro se fazia presente. Voltou o remanso. O silencio parecia reinar novamente.
 
Senti que estava livre, pois meus pés estavam leves. Tentei correr na direção da saída daquele lugar tão macabro, onde as vísceras de Angelina e do Sr. Pena se misturavam, mas o que vi naquele instante me tirou a réstia de esperança de sair vivo dali...
 
Com mais de quatro metros de altura lá estava o bode, ou melhor, o ser que saiu da cabeça do bode e me olhava com certo desdém.
 
O cheiro de enxofre causou-me náuseas e senti vontade de vomitar, mas não o fiz.
 
Uma voz gutural ecoou no mausoléu, e ouvi aquele ser pronunciar meu nome:
 
- Eduardo! Eis-me aqui! Você me invocou e aqui estou.
 
Eu achei que perderia os sentidos, mas aquele demônio disse:
 
- Não, você não vai desmaiar agora, preciso que esteja lucido e bem acordado para presenciar algo que poucos ao longo da história tiveram o desprazer!
 
Uma risada penetrou em meus tímpanos. Senti minhas entranhas queimarem e a pele de meu corpo exibia erupções de onde brotava pus. Eu apodrecia feito um cadáver em avançado estado de decomposição e a dor lancinante arrancava gritos que vinham de minha enegrecida alma.
 
- Você me evocou e sem saber o que fazia – a voz continuou com força estridente, meus tímpanos sangravam – Agora estou aqui e não voltarei de mãos vazias.
 
Meus olhos vazaram quando o ser se aproximou de meu rosto e senti sua áspera e fétida língua, lambendo minha face. Ele saboreava o liquido que escapava do local onde repousavam os globos oculares que doíam insanamente.
 
Clamei pela morte, mas nem mesmo ela se atreveu a enfrentar o demônio das trevas.
 
- Agora você será meu servo e andará nos dois mundos, você será o canal do inferno para o mundo dos mortais e sempre que alguém me evocar você sofrerá dores que nenhum ser experimentou antes. Você, a partir de agora é meu embaixador e sua paga será viver eternamente, mas não sem dores e ranger de dentes...
 
- Você não chamará mais Eduardo Nunes, pois te darei outro nome.
 
Meus gritos perduram desde então pelos dois mundos. Se você ainda não ouviu, não se preocupe.
 
Numa noite qualquer, quando sentir falta de um ente querido, ou se porventura tentares contatar os “espíritos”. Lá estarei e ouvirás na noite meu grito de angustia, ouviras o desespero do servo do demônio, pois eu sou o NECROMANTE.

 
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Paulo Moreno
Enviado por Paulo Moreno em 23/10/2013
Reeditado em 23/10/2013
Código do texto: T4538454
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