Capítulo IX- O Papa prisioneiro
                 
Filipe, fortalecido pela decisão dos Estados Gerais, que apoiu a sua decisão de prender os Templários, decide ir a Poitiers se encontrar com o Papa. Este, já ciente da decisão da Assembléia de Tours, ficou bastante preocupado quando, a 26 de maio daquele crucial ano de 1308, o rei francês entrou em Poitiers com um pequeno exército. “ Será que o rei veio prender-me, como fez com Bonifácio VIII?”, deve ter pensado Clemente V, quando o séquito do rei cruzou as portas da cidade.
Havia um outro problema que incomodava Clemente V. Dois dos Templarios que o rei havia lhe enviado haviam se evadido da prisão onde eles foram encerrados. Isso o preocupava por dois motivos: primeiro porque ele não tinha, em Poitiers, uma fortaleza segura para manter os prisioneiros. A fuga dos dois cavaleiros mostrava isso. Depois, Filipe bem que poderia acusá-lo de desídia, ou mesmo de estar favorecendo os Templários, facilitando a sua fuga.
Mas Filipe apresentou-se ao Papa em alegre disposição de humor e se mostrou estranhamente humilde. Ajoelhou-se, beijou-lhe a mão, cumpriu todo o protocolo exigido para ocasião. Depois revelou a sua razão de vir a Poitiers.
 
– Vim vos falar a respeito do nosso projeto de uma nova cruzada– disse Filipe.
– Tendes pois, a intenção de fazer uma nova cruzada para recuperar os lugares santos? – pergunta o Papa.
– Sim , Santo Padre – desde que Vós a abençoeis e nos preste toda a ajuda necessária.
– Vós tendes a nossa benção – responde o Papa.– Quanto á ajuda, é preciso que conversemos a respeito.
– É por isso que viemos – disse o rei – com um sorriso ambíguo.
 
Essa era, todavia uma desculpa. Filipe não tinha em mente nenhuma cruzada. Dispensada a audiência protocolar, onde vários cardeais e nobres que acompanhavam o rei estavam presentes, o Papa fica sozinho com Filipe, Guilherme de Nogaret e o irmão do rei, Carlos de Valois. Então o rei declina a razão que, de fato, o levara a sair de Paris e vir até Poitiers se encontar com o Papa. Então a tempestade é desencadeada.
 
– Vossa Santidade está nos causando muito desgosto com vossa atitude em relação o Templo– queixou-se Filipe.
– A Santa Sé não pode agir imprudentemente – respondeu o Papa. – Temos o dever de garantir um julgamento justo a todos os nossos filhos.
– Os Templários deixaram de ser filhos da Santa Madre Igreja quando decidiram se entregar á hresia– interviu Guilherme de Nogaret.
– Ainda há muita coisa a ser apurada até que se possa imputar o crime de heresia a eles – respondeu o Papa. – Até o veredicto final, temos que aceitar a presunção da inocência.
– Eles já confessaram todos os crimes de que são acusados–retrucou coléricamente Filipe. – O que mais resta para ser apurado?
– Eles negaram perante nossos inquisidores todas as acusações. Alegam que suas confissões foram extraídas sob tortura – salientou o Papa.
– A tortura é um recurso admitido em lei para extrair confissões. A Igreja a utilizou em larga escala durante a cruzada Albigense – lembrou Guilherme de Nogaret, que certamente estava pensando nos seus próprios ancestrais cátaros, torturados e queimados naquela cruzada.
– Era outra situação– respondeu o Papa. – Certamente não quereis comparar os Templários com o hereges cátaros.
– Pois eu não vejo diferença nenhuma– disse Filipe.– E pelo que já apurado, não duvido que sejam piores e mais perigosos. Os albigenses não tinham os recursos do Templo.
 
Esse era o âmago da questão. Os bens do Templo. Filipe pede ao Papa que eles fiquem sob sua guarda. Promete levar na devida conta os interesses da Igreja e preservar o clero de novas investidas tributárias.
O Papa responde que os bens do Templo devem ser utilizados nas finalidades para os quais eles foram doados á Ordem. Essas finalidades eram, precipuamente, a preservação da Terra Santa.
– Exatamente para esse propósito é que Vós deveis consentir que esses bens fiquem sob a nossa guarda – disse Filipe. – Já vos falamos da nossa disposição de empreender nova cruzada para recuperar os lugares santos – completou – lançando a isca.
– Quanto a isso poderemos conversar– respondeu o Papa, que não mordeu a isca. – Mas quanto á destinação dos bens da Templo – completou, – isso não poderá ser feito até que a própria Ordem esteja suprimida. E isso só acontecerá depois que o inquérito, conduzido de mameira séria e isenta,esteja terminado.
– Concordo com Vossa Santidade– respondeu Nogaret, mudando de estratégia. – Que a Igreja dirija o inquérito e ao final faça dos Templários o que ela decidir; – Todavia – prossegue – como vimos, a Igreja não tem prisões suficientemente seguras para guardar os prisioneiros, como sabemos. Alguns deles já se evadiram, como nos foi informado. Então eles deverão ficar guardados nas prisões do rei, a pedido da Igreja. Os prelados e os inquisidores destacados por Vossa Santidade terão carta branca para visitá-los e interrogá-los da forma como for disposto.
Clemente percebeu a manobra do rei. Não gostava da proposta, mas na atual conjuntura, não via como contestá-la. Não podia negar que Nogaret tinha razão. A Igreja não tinha estrutura suficienemente segura pára guardar prisioneiros daquela ordem e importância. A evasão de dois deles era a comprovação. E o rei já sabia do caso e estava usando isso em seu proveito.
 
– Parece-me justa e providencial a proposta de Vossa Majestade – concordou o Papa. – Vós podereis providenciar a remoção deles para as prisões reais.
– Quanto aos bens da Ordem – disse Nogaret, tirando de uma pasta de couro um documento redigido em latim – eles serão entregues á guarda dos bispos e dioceses onde eles estão situados, para que sejam bem e fielmente administrados com prudência e precaução. Para salvaguarda dessas medidas, o rei designará intendentes de sua confiança, os quais terão pleno poderes sobre essas administrações, respondendo perante á co-roa e á Igreja, todo ano, sobre as contas a eles relacionadas.
 
Clemente enguliu seco. Percebeu que tudo já tinha sido resolvido por Filipe e Nogaret. Aquela conversa era apenas pró-forma.
– Parece que já tendes tudo preparado – disse o Papa, não sem uma certa amargura na voz.
– Desejamos poupar Vossa Santidade dessas questões aborrecidas– respondeu Nogaret, com sarcasmo.
– Mas Vossa Santidade poderá designar superintendentes para receber as contas todos os anos, e ao final, a conta definitiva – continuou o inflexível Lorde Guarda Selos. Ele estava agora lendo, textualmente, o documento.
“ Depois da prestação de contas, o dinheiro arrecadado só poderá ser útil e seguramente guardado pelo rei, que dará um recibo aos bispos das somas provenientes das suas dioceses e aos superintendentes do total das somas recebidas cada ano no reino da França”
“  O rei se compromete por escrito de que não entregará esse dinheiro para qualquer outro uso e não o entregará com essa intenção, sem ordem da Igreja, ouvida a opinião do rei.”
Na cláusula seguinte, Filipe rematava seu pensamento acerca do Papa e da Igreja a quem jurava servir e defender:
“ O rei não duvida do Papa atual, mas não pode garantir-se acerca dos seus sucessores. Por isso considera prudente e sensato, no interesse da defesa da Terra Santa, que esse dinheiro só poderá ter esse destino, e que para esse fim, será necessário consultar o rei e seus sucessores.”
 
– Esperais que eu concorde com esse documento? – perguntou o Papa.
– É do maior interesse de Vossa Santidade e da Santa Madre Igreja que o façais– responde Nogaret.
– De qualquer modo – diz Filipe, levantando-se. – É o que foi decidido pelo povo da França. – Tenho certeza que Vossa Santidade não deseja contrariá-lo.
– Vejo que já tendes tudo arranjado e só me resta concordar com vossas disposições– disse o Papa, levantando-se. Sentia-se muitos anos mais velho do que realmente era. A figura alquebrada de Bonifácio VIII assumiu, por inteiro, a tela da sua memória.
Antes de sair do aposento, não foi poupado de ouvir a desagradável voz de Nogaret lendo as cláusulas finais do documento:
 
“ Todos os Templários presos em território francês serão entregues ao Papa, que encarregará o rei da sua guarda, que os apresentará a pedido do Papa e dos bispos. Estes julgarão os Templários de sua diocese, exceto o Grão-Mestre, o Visitador da França,e os preceptores das províncias de além-mar, da Normandia, de Poitou, Aquitânia e Provença, cujos julgamentos o Papa se reserva, assim como de pronunciar o destino da Ordem.
“ Se a Ordem for suprimida, os seus bens não poderão ser aplicados, no todo ou em parte, senão em auxiliar a Terra Santa, conforme a intenção dos doadores... E assim como Deus o inspirou ao Papa e ao rei...Os lucros terão igual destino...”
“Quanto aos restabelecimento dos poderes da Inquisição, o Supremo Pontífice fará tudo que lhe compete junto ao Sacro Colégio, para que esses poderes lhes sejam resguardados, e exercidos juntamente com os prelados designados pela autoridade papal...”
 
– Assinai– diz Nogaret, com a pena na mão.
Com a mão trêmula, como se estivesse assinando a própria abdicação, Clemente V assinou.
De volta ao seu quarto, de repente, o Papa recobrou a coragem. Chama seus homens de confiança e manda preparar, no maior segredo, a sua partida de Poitier. Acredita que longe de Filipe, no refúgio seguro de Roma, onde poderá mobilzar recursos e força militar e política para resistir à Filile, ele poderá revogar esse acordo promíscuo e vegonhoso que foi forçado a assinar.
Mas não pode fugir sem os seus tesouros. Quatro carroças carregadas de ouro, prataria e pedras preciosas, e uma tropa de mulas com outro tanto de riquezas, são preparadas para deixar os muros da cidade ao romper da aurora. O Papa e seus secretários, disfarçados de monges, entretanto, não passarão dos portões de Poitiers. Uma comitiva tão grande não poderia deixar de chamar a atenção dos guardas do rei. Detido, o vexado Papa é reconduzido ao palácio episcopal. Rende-se á evidência. É agora prisioneiro do rei. E o fantasma de VIII volta a assombrar-lhe á memória
Aquele fora aprisionado pela arrogância. Clemente V pela cobiça.

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 Da obra "Filhos da Viúva",  Conspiração dos Templários", título provisório, no prelo.