Capítulo VII- Heresia, heresia.
O Papa Clemente sabia das acusações que estavam sendo feitas aos Templários. Desde o dia primeiro de novembro de 1306, quando ele se encontrou com os Grãos-Mestres do Templo e do Hospital para uma conferência, em Poitiers, esse assunto estava sendo tratado. Embora a reunião tivesse sido adiada por causa de uma crise de gastropatia, mal que o Papa sofria já ha algum tempo, Jacques de Molay conversara, dias depois com o Santo Padre, onde expôs sua preocupação sobre os rumores que eram levantados em relação ao comportamento de alguns Irmãos da Ordem do Templo. O Papa, acamado, prometeu estudar o problema e dar uma resposta o mais breve possível. Fá-lo-ia em fins de agosto de 1306, num encontro em Poitiers, do qual também participou o Grão-Mestre do Hospital, Fouques de Vilaret. Nessa ocasião discutiram a realização de uma nova cruzada e a fusão das duas Ordens, o que foi, como já sabido, desanconselhado pelo Grão-Mestre do Hospital e firmemente combatido por Jacques de Molay.
O Grão-Mestre do Templo suscitou então a questão das acusações que estavam sendo feitas contra o Templo. Pediu ao Papa que abrisse uma investigação a respeito, para que não, pairasse nenhuma dúvida sobre a virtude dos membros da Ordem. Que fossem condenados os que assim se provassem ter cometidos delitos, e inocentados os demais, que ele, Jacques de Molay acreditava ser a grande maioria dos Irmãos, “homens virtuosos, tementes a Deus e firmes na fé católica”, como ele os definiu.
Clemente V, sem dúvida, tinha o desejo de apurar tais acusações, até porque ficaria numa situação complicada se não o fizesse. Não acreditava, realmente, que os Templários fossem culpados de tais vilanias. Creditava tais acusações aos progan-distas de Filipe IV, especialmente Nogaret, que já decidira levar a cabo sua campanha para destruir a Ordem do Templo.
Mas antes que ele tomasse qualquer providência a respeito, Filipe tinha tomado a sua frente. Com sua ação da sexta-feira treze, dia 13 de outrubro de 1307, ele havia sido colocado diante de um fato consumado, um feit accompli, cujas conse-qüências ele precisava agora, saber administrar.
Clemente sabia que os Templários seriam torturados e a ma-ioria logo confessaria o que quer que fosse para evitar a dor dos terríveis suplícios que causavam o cavalete, a roda, a estrapada, e todos os meios de tortura física e moral, nos quais os carrascos da Inquisição haviam se tornado mestres.
Ele não estava preocupado toa. Pois já no segundo interro-gatório, um Geoffroy de Charney alquebrado, abatido e frágil, se apresentou frente á Guilherme de Paris em um estado físico e moral totalmente diferente da primeira vez que esteve ali. Nem parecia o mesmo cavaleiro orgulhoso e varonil que negara, e até desdenhara, alguns dias antes, de todas as acusações que haviam sido feitas aos Templários.
– Quando fostes recebido na Ordem? – perguntou Guilherme de Paris.
– Há trinta sete, ou trinta e oito anos atrás – respondeu Charney.
– Quem vos recepcionou? – perguntou Guilherme.
– Um irmão de nome Amaury de La Roche, juntamente com o Irmão Jean François, na época preceptor de Paris –.responde o preceptor da Normandia.
O interrogatório prossegue. O Inquisidor, sempre no mesmo tom incisivo, e o interrogado, respondendo, como se tivesse dando respostas decoradas.
– Descrevei como foi essa recepção – ordenou o Inquisidor.
– Depois da vigília de praxe, na qual fiquei sozinho na cripta, orando e velando minhas armas, fui levado á presença do dito Irmão Amaury e do preceptor de Paris, Jean François. Presentes também vários outros Irmãos, já falecidos. Fui recebido com um beijo nos lábios, e o Irmão Amaury vestiu-me com o manto.
Geoffroy de Charney suspirou fundo como se alguma dúvida se passasse na sua cabeça. Guilherme de Paris prosseguiu, inclemente.
– Continuai.
– Trouxeram-me uma cruz com a imagem de Cristo – disse ele, finalmente, como se aquela revelação lhe pesasse na alma.
– E o que fizestes?
– O Irrmão Amaury disse que Cristo era um falso profeta e que eu não devia acreditar nele. Não se tratava de um Deus.
– Continuai – ordenou Guilherme de Paris, cuja face, naquele momento, revelava uma alegria que não conseguia esconder.
– O Irmão Amaury me disse para renegar Cristo três vezes.
– E vós o fizestes?
– Sim. Mas apenas com os lábios e não com o coração.
– Cuspistes também na imagem de Cristo?
– Não me lembro de tê-lo feito.
– E quanto aos beijos obscenos que vós sois acusados de trocar em vossos rituais de iniciação, o que tendes a dizer?
– Beijei o meu receptor no umbigo, por que assim foi mandado que o fizesse.
– Não praticastes conjunção carnal com vossos Irmãos?
– Nunca o fiz, nem me foi pedido que o fizesse. Mas ouvi o Irmão Gérard de Sauzet dizer aos Irmãos do Capitulo que era melhor unir-se carnalmente com os Irmãos da Ordem, do que ter relações com mulheres. Que isso não era considerado uma quebra do nosso voto de castidade.
– Como preceptor da Normandia recepcionastes pessoalmente a muitos Irmãos?
– Sim.
– E procedestes a essas recepções da mesma forma como fostes recebidos?
– Nas primeiras vezes sim, mas depois percebi que cada preceptoria fazia o seu próprio ritual e então voltei a fazer nossas recepções de acordo com os Estatutos da Ordem.
– Porque fizestes assim?
– Porque percebi que a forma como fui recepcionado era uma profanação ímpia e contrária a fé católica.
Isso é o que queriam Guilherme de Paris, Guilherme de Nogaret. Filipe o Belo, e todos aqueles que buscavam a perdição dos Templários: uma confissão feita por um grande dignatário da Ordem. Não importava que ela tivesse sido extraída a´custa de tortura. Pois, nos dois dias que antecederam esse interrogatório, Geoffroy de Charney, Jacques de Molay, Hugo de Pairaud e Geoffroy de Gonneville, os quatro mais importantes diganatários da Ordem, em território francês, haviam sido cruelmente torturados. Foram submetidos ao suplício da roda, postos no cavalete, onde seus membros foram esticados até o limite do rompimento, suspensos na estrapada, para que seus membros e ossos fossem deslocados, e tiveram os pés untados com gordura de porco, e amarrados próximos a um archote, para que a gordura, ao esquentar, lhes queimasse a pele. E em todos esses suplícios, era o próprio Guilherme de Paris que os assistia e comandava, sempre dizendo: – Confessai, para que esse suplício possa acabar. Salvai vossa alma e poupai dessas dores o vosso corpo.
Foi dessa forma, triturados, alquebrados, com os braços e pernas deslocados, os pés em carne viva, que esses bravos e altivos cavaleiros se apresentaram, pela segunda vez, perante o terrível Inquisidor. E desta vez disseram o que seus algozes queriam ouvir.
– Há quarenta e dois anos – disse Jacques de Molay – fui recepcionado na Ordem pelo irmão Humberto de Pairaud, na preceptoria de Beaunne. Estava presente o Irmão Amaury de La Roche e muitos outros dos quais já não me lembro o nome. Fiz a promessa de observância dos estatutos da Ordem, depois recebi o manto. O Irmão Humberto pediu-me mandou trazer uma cruz de estanho, com a imagem do Cristo crucificado. Ordenou-me que o renegasse três vezes e que cuspisse nela. De mau grado pronunciei a renegação mas não cuspi sobre a cruz, mas no chão.
– E quanto aos vossos votos de castidade. Vós o quebraste alguma vez, unindo-se carnalmente aos vossos Irmãos?
– Não, nunca o fiz.
– Recebestes muitos Irmãos dessa maneira?
– Presidi a poucas recepções, mas o cerimonial nunca foi muito diferente desse que vos relatei. Depois do beijo protocolar, que era ás vezes no umbigo, ás vezes nos lábios, os recipiendários eram encaminhados aos seus respectivos instrutores, os quais continuavam as práticas que deviam fazer. Eu nunca me inteirei delas por completo.
Então o Inquisidor faz a pergunta usual, feita a todos os inquiridos, para salvaguarda do devido processo,legal:
– Proferistes qualquer falsidade, ou declarastes inverdades em vosso depoimento, em razão de tortura, ou por outro meio coercitivo?
– Não – responde De Molay, com um fio de voz.
Gulherme de Paris insiste.
– Foste torturado, ou por qualquer meio coagido, para dizer o que dissestes?
– Não – foi de novo a resposta.
– O que dissestes é, pois, a verdade, dita de forma expontânea, em nome de Deus?
– Tudo que disse é a verdade,para a salvação da minha!
Hugo de Pairaud, Visitador da Ordem para todo o território da França, também não se fez de rogado.
– Fui recepcionado, há quarenta e quatro anos atrás, na preceptoria de Lyon por meu tio, o preceptor, Irmão Humberto de Pairaud – testemunhou o alquebrado Templário.
– Fiz todas as promessas de praxe, de observar os estatutos da Ordem, e de não revelar os seus segredos. Depois impuseram-me o manto e recebi um beijo nos lábios e beijei os Irmãos prsentes, também nos lábios.
– Depois – continuou o Visitador– fui levado para trás do altar e um Irmão, chamado João, preceptor de Lamusse, mostrou-me uma cruz de estanho, onde havia uma imagem do Cristo crucificado. – Renegue-o, disse ele. Eu o fiz, e ele então me pediu que eu cuspusse sobre aquela cruz
– Vós o fizestes? Perguntou o Inquisidor.
– Não, não o fiz. E quanto a renegar o Cristo, foi pedido para que eu o fizesse três vezes, mas eu fiz apenas uma vez.
– Fez recepções semelhantes a outros Irmãos – perguntou Guilherme de Paris.
– Sim. Recepcionei vários Irmãos.
– Aplicastes o mesmo ritual?
– Sim. Invariavelmente era sempre o mesmo ritual. As promessas de cumprir os estatutos da Ordem, a promessa de segredo, a imposição do manto, os beijos na boca, no umbigo e na base da espinha dorsal, e a renegação, três vezes, de Cristo e e cuspir sobre a cruz.
– Essas ordens eram dadas com gosto?
– Não. Havia sempre um constrangimento em quem as dava e em quem as recebia. Mas faziam parte do ritual e era preciso obedecer.
– E havia quem se recusasse a cumpri-las?
– Sim. No início todos eram reticentes, mas depois a vontade de entrar para a Ordem acabava por vencer a resistência deles.
– E quanto ao ato carnal com os Irmãos, o que tendes a dize?
– Eu lhes dizia que se tivessem qualquer ardência que não conseguissem controlar, eles estavam autorizados a se aliviar com outros Irmãos. Era com muita contrariedade que lhe dizia isso.
– Então porque o fazias?
– Assim mandava a prática das nossas tradições.
– São todos recebidos assim em vossa Ordem?
– Nãos si dizer-vos, porque o que se passa nos capítulos não deve ser revelado aos que dele não participam, mas apenas aos de mesmo grau e posição. Por isso ignoro se todos fazem o mesmo.
– Acredita que todos os Irmãos da Ordem sejam recebidos da mesma forma?
– Pelo que sei, cada capítulo tem suas usanças. Não creio que todos sejam recebidos dessa forma.
No 15 de novembro foi a vez de Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia e Poitou, se apresentar perante Guilherme de Paris para dar seu depoimento.
– Fui iniciado há vinte e oito anos no Templo de Londres, pelo Irmão Roberto de Torteville, Grão-Mestre da Inglaterra. Jurei observar os estatutos da Ordem e seus costumes. Depois de receber o manto da Ordem, o Irmão Roberto me apresentou uma cruz com a imagem de Cristo e ordenou que eu a renegasse três vezes. Apavorado, perguntei-lhe porque devia fazer isso e ele respondeu-me que esse costume foi introduzido na Ordem quando um Grão-Mestre da Ordem, tendo caído prisioneiro dos sarracenos, conseguiu obter a liberdade após ter negado Cristo e cuspido na cruz, e jurado que doravante, imporia a todos os Templários essa obrigação. Assim, dessa data em diante, tornou-se costume da Ordem renegar Jesus Cristo e cuspir na cruz. Todos têm que o fazer.
– Então renegaste a Cristo e cuspistes na cruz– perguntou Guilherme.
– Não – respondeu Gonneville. – O Irmão Roberto, vendo a minha resistência, me pediu que jurasse pelos Santos Evangelhos que diria aos Irmãos que eu havia feito o que ele me pedira. Pois que se eu recusava e eles soubessem que eu declinara, ele teria que mandar matar-me, pois eu agora tinha compartilhado dos segredos da Ordem.
– Assim, os que se recusavam a cumprir esse ritual eram mortos? – perguntou o Inquisidor.
– É o que se ouvia dizer– respondeu Gonneville.
– E porque fostes poupados, se não cumpristes o que vos foi exigido?– inquiriu Gulilherme.
– Creio que por causa da minha posição. Meu tio Roberto era par do rei. Ele e também eu havíamos prestado grandes serviços ao rei da Inglaterra. Tinhamos intimidade com o rei e tratamos de assuntos de grande importância com ele. Assim, como eu jurei não revelar aos Irmãos a minha discordância com aquelas exigências, eu fui poupado.
– Porque nunca confessastes essas coisas á Igreja. Não tinhas obrigação de dizer a verdade?
– Confessei-o ao capelão da minha Ordem e ele me absolvera desse pecado. Sempre me disseram que nossos capelães são autorizados pela Santa Sé para absolver os Irmãos de seus pecados. E também porque sempre acreditei que tais práticas não eram gerais em toda a Ordem, mas apenas particularidades de algumas preceptorias que haviam se desviado do caminho certo.
– Recebestes pessoalmente muitos Irmãos?
– Alguns. Mas nunca apliquei neles esses ritos. Apenas os recepcionava, aplicava-lhes o manto e depois os deixava a cargo dos seus preceptores para a continuação dos ritos e as instruções de praxe.
– Nunca os mandou renegar o Cristo, nem cuspir na cruz?
– Não. Eu os poupei disso, da mesma forma como haviam feito comigo. Por causa disso fui, inclusive, denunciado, por por escrito, ao Grão-Mestre, por alguns Irmãos que não se conformavam que eu não cumprisse os rituais exigidos na iniciação.
Gulherme de Paris percebera a boa disposição de Gonneville para falar e tentar livrar a própria cabeça. Então insistiu.
– Se vos desagradava tanto essas disposições da vossa Ordem, porque não a abandonastes?
– Porque eu temia o poder da Ordem. Cheguei a pensar em falar com o rei de França a respeito e denunciar essas práticas abomináveis. Mas eu possuía um alto cargo dentro do Templo e era responsável por muitos bens e dinheiro. Se fizesse o que pensava, ou seja, denunciar ao rei as práticas da Ordem e deixá-la, eu seri o responsável por uma grande tragédia. Com certeza os Templários se vingariam, como era promessa e ameaça que se fazia a todos que denunciassem os segredos da Ordem, e que segundo se sabe, sempre foram cumpridas.
– Como se iniciou esse rito perverso de renegar Cristo e cuspir na cruz – insistiu Guilherme de Paris.
– Dizem que esse costume foi introduzido na Ordem por esse Mestre a quem me referi, que esteve prisioneiro do Sultão do Egito, e para se livrar renegou Cristo e prometeu introduzir o costume na Ordem. Mas há também quem diga que o introdutor desse costume foi o Mestre Rocelin de Forz, de Provença, que o incluiu em nossos estatutos, depois de os ter aprendido com os Irmãos do Langedoc. Outros dizem que foi o Mestre Tomás Bérard, que dirigiu a Ordem até o ano de 1272. E até há quem diga que esse costume é uma homenagem á São Pedro, que negou Cristo três vezes.
Guilherme de Paris estava perplexo com a mixórdia doutrinária que encontrara naquele inquérito. Jamais esperava que a Ordem do Templo estivesse tão contaminada de idéias estranhas como aquelas que Gonneville estava lhe contando. Aquilo era sopa no mel. As suspeitas de que os Templários haviam se contaminado com as heresias cátaras já lhe passara pela cabeça, e ele já havia decidido que esse seria um bom lado para explorar. Mas nunca imaginara que um grande dignatário do Templo, exercendo uma alta posição na hierarquia da Ordem, lhe fornecesse tanta munição assim para que ele pudesse detonar de vez, o Templo de Paris.
O melhor ainda estaria por vir. No dia 25 de outubro, Jacques de Molay repetiria, ante uma perplexa platéia, formada por membros da faculdade de Teologia da Universidade de Paris, todas essas confissões. Ele fora confrontado com as declarações dos outros dignatários da Ordem. Nem um deles havia negado. Foi- lhe diro que seria inútil, para ele, negar perante os doutores, aquilo que ele confessara aos Inquisidores. Talvez, pensou o idoso cavaleiro que comandava a poderosa Ordem do Templo na França, uma confissão espontânea e uma mostra de arrrependimento sincero pudesse influenciar os julgadores a um veredicto suave. Por isso , quendp lhe perguntaram se tais confissões não haviam sido extraídas sob tortura, ele disse que não. Confiava que a Igreja, a quem servira tão bem, na sua opinião, viesse a julgar esse assunto com muito critério.
Mas, nem bem terminara as suas respostas, já o coro dos irados monges exclamava em alto e bom som:
– Heresia, heresia! Á fogueira com eles
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Da obra "Filhos da Viúva", Conspiração dos Templários", título provisório, no prelo.
O Papa Clemente sabia das acusações que estavam sendo feitas aos Templários. Desde o dia primeiro de novembro de 1306, quando ele se encontrou com os Grãos-Mestres do Templo e do Hospital para uma conferência, em Poitiers, esse assunto estava sendo tratado. Embora a reunião tivesse sido adiada por causa de uma crise de gastropatia, mal que o Papa sofria já ha algum tempo, Jacques de Molay conversara, dias depois com o Santo Padre, onde expôs sua preocupação sobre os rumores que eram levantados em relação ao comportamento de alguns Irmãos da Ordem do Templo. O Papa, acamado, prometeu estudar o problema e dar uma resposta o mais breve possível. Fá-lo-ia em fins de agosto de 1306, num encontro em Poitiers, do qual também participou o Grão-Mestre do Hospital, Fouques de Vilaret. Nessa ocasião discutiram a realização de uma nova cruzada e a fusão das duas Ordens, o que foi, como já sabido, desanconselhado pelo Grão-Mestre do Hospital e firmemente combatido por Jacques de Molay.
O Grão-Mestre do Templo suscitou então a questão das acusações que estavam sendo feitas contra o Templo. Pediu ao Papa que abrisse uma investigação a respeito, para que não, pairasse nenhuma dúvida sobre a virtude dos membros da Ordem. Que fossem condenados os que assim se provassem ter cometidos delitos, e inocentados os demais, que ele, Jacques de Molay acreditava ser a grande maioria dos Irmãos, “homens virtuosos, tementes a Deus e firmes na fé católica”, como ele os definiu.
Clemente V, sem dúvida, tinha o desejo de apurar tais acusações, até porque ficaria numa situação complicada se não o fizesse. Não acreditava, realmente, que os Templários fossem culpados de tais vilanias. Creditava tais acusações aos progan-distas de Filipe IV, especialmente Nogaret, que já decidira levar a cabo sua campanha para destruir a Ordem do Templo.
Mas antes que ele tomasse qualquer providência a respeito, Filipe tinha tomado a sua frente. Com sua ação da sexta-feira treze, dia 13 de outrubro de 1307, ele havia sido colocado diante de um fato consumado, um feit accompli, cujas conse-qüências ele precisava agora, saber administrar.
Clemente sabia que os Templários seriam torturados e a ma-ioria logo confessaria o que quer que fosse para evitar a dor dos terríveis suplícios que causavam o cavalete, a roda, a estrapada, e todos os meios de tortura física e moral, nos quais os carrascos da Inquisição haviam se tornado mestres.
Ele não estava preocupado toa. Pois já no segundo interro-gatório, um Geoffroy de Charney alquebrado, abatido e frágil, se apresentou frente á Guilherme de Paris em um estado físico e moral totalmente diferente da primeira vez que esteve ali. Nem parecia o mesmo cavaleiro orgulhoso e varonil que negara, e até desdenhara, alguns dias antes, de todas as acusações que haviam sido feitas aos Templários.
– Quando fostes recebido na Ordem? – perguntou Guilherme de Paris.
– Há trinta sete, ou trinta e oito anos atrás – respondeu Charney.
– Quem vos recepcionou? – perguntou Guilherme.
– Um irmão de nome Amaury de La Roche, juntamente com o Irmão Jean François, na época preceptor de Paris –.responde o preceptor da Normandia.
O interrogatório prossegue. O Inquisidor, sempre no mesmo tom incisivo, e o interrogado, respondendo, como se tivesse dando respostas decoradas.
– Descrevei como foi essa recepção – ordenou o Inquisidor.
– Depois da vigília de praxe, na qual fiquei sozinho na cripta, orando e velando minhas armas, fui levado á presença do dito Irmão Amaury e do preceptor de Paris, Jean François. Presentes também vários outros Irmãos, já falecidos. Fui recebido com um beijo nos lábios, e o Irmão Amaury vestiu-me com o manto.
Geoffroy de Charney suspirou fundo como se alguma dúvida se passasse na sua cabeça. Guilherme de Paris prosseguiu, inclemente.
– Continuai.
– Trouxeram-me uma cruz com a imagem de Cristo – disse ele, finalmente, como se aquela revelação lhe pesasse na alma.
– E o que fizestes?
– O Irrmão Amaury disse que Cristo era um falso profeta e que eu não devia acreditar nele. Não se tratava de um Deus.
– Continuai – ordenou Guilherme de Paris, cuja face, naquele momento, revelava uma alegria que não conseguia esconder.
– O Irmão Amaury me disse para renegar Cristo três vezes.
– E vós o fizestes?
– Sim. Mas apenas com os lábios e não com o coração.
– Cuspistes também na imagem de Cristo?
– Não me lembro de tê-lo feito.
– E quanto aos beijos obscenos que vós sois acusados de trocar em vossos rituais de iniciação, o que tendes a dizer?
– Beijei o meu receptor no umbigo, por que assim foi mandado que o fizesse.
– Não praticastes conjunção carnal com vossos Irmãos?
– Nunca o fiz, nem me foi pedido que o fizesse. Mas ouvi o Irmão Gérard de Sauzet dizer aos Irmãos do Capitulo que era melhor unir-se carnalmente com os Irmãos da Ordem, do que ter relações com mulheres. Que isso não era considerado uma quebra do nosso voto de castidade.
– Como preceptor da Normandia recepcionastes pessoalmente a muitos Irmãos?
– Sim.
– E procedestes a essas recepções da mesma forma como fostes recebidos?
– Nas primeiras vezes sim, mas depois percebi que cada preceptoria fazia o seu próprio ritual e então voltei a fazer nossas recepções de acordo com os Estatutos da Ordem.
– Porque fizestes assim?
– Porque percebi que a forma como fui recepcionado era uma profanação ímpia e contrária a fé católica.
Isso é o que queriam Guilherme de Paris, Guilherme de Nogaret. Filipe o Belo, e todos aqueles que buscavam a perdição dos Templários: uma confissão feita por um grande dignatário da Ordem. Não importava que ela tivesse sido extraída a´custa de tortura. Pois, nos dois dias que antecederam esse interrogatório, Geoffroy de Charney, Jacques de Molay, Hugo de Pairaud e Geoffroy de Gonneville, os quatro mais importantes diganatários da Ordem, em território francês, haviam sido cruelmente torturados. Foram submetidos ao suplício da roda, postos no cavalete, onde seus membros foram esticados até o limite do rompimento, suspensos na estrapada, para que seus membros e ossos fossem deslocados, e tiveram os pés untados com gordura de porco, e amarrados próximos a um archote, para que a gordura, ao esquentar, lhes queimasse a pele. E em todos esses suplícios, era o próprio Guilherme de Paris que os assistia e comandava, sempre dizendo: – Confessai, para que esse suplício possa acabar. Salvai vossa alma e poupai dessas dores o vosso corpo.
Foi dessa forma, triturados, alquebrados, com os braços e pernas deslocados, os pés em carne viva, que esses bravos e altivos cavaleiros se apresentaram, pela segunda vez, perante o terrível Inquisidor. E desta vez disseram o que seus algozes queriam ouvir.
– Há quarenta e dois anos – disse Jacques de Molay – fui recepcionado na Ordem pelo irmão Humberto de Pairaud, na preceptoria de Beaunne. Estava presente o Irmão Amaury de La Roche e muitos outros dos quais já não me lembro o nome. Fiz a promessa de observância dos estatutos da Ordem, depois recebi o manto. O Irmão Humberto pediu-me mandou trazer uma cruz de estanho, com a imagem do Cristo crucificado. Ordenou-me que o renegasse três vezes e que cuspisse nela. De mau grado pronunciei a renegação mas não cuspi sobre a cruz, mas no chão.
– E quanto aos vossos votos de castidade. Vós o quebraste alguma vez, unindo-se carnalmente aos vossos Irmãos?
– Não, nunca o fiz.
– Recebestes muitos Irmãos dessa maneira?
– Presidi a poucas recepções, mas o cerimonial nunca foi muito diferente desse que vos relatei. Depois do beijo protocolar, que era ás vezes no umbigo, ás vezes nos lábios, os recipiendários eram encaminhados aos seus respectivos instrutores, os quais continuavam as práticas que deviam fazer. Eu nunca me inteirei delas por completo.
Então o Inquisidor faz a pergunta usual, feita a todos os inquiridos, para salvaguarda do devido processo,legal:
– Proferistes qualquer falsidade, ou declarastes inverdades em vosso depoimento, em razão de tortura, ou por outro meio coercitivo?
– Não – responde De Molay, com um fio de voz.
Gulherme de Paris insiste.
– Foste torturado, ou por qualquer meio coagido, para dizer o que dissestes?
– Não – foi de novo a resposta.
– O que dissestes é, pois, a verdade, dita de forma expontânea, em nome de Deus?
– Tudo que disse é a verdade,para a salvação da minha!
Hugo de Pairaud, Visitador da Ordem para todo o território da França, também não se fez de rogado.
– Fui recepcionado, há quarenta e quatro anos atrás, na preceptoria de Lyon por meu tio, o preceptor, Irmão Humberto de Pairaud – testemunhou o alquebrado Templário.
– Fiz todas as promessas de praxe, de observar os estatutos da Ordem, e de não revelar os seus segredos. Depois impuseram-me o manto e recebi um beijo nos lábios e beijei os Irmãos prsentes, também nos lábios.
– Depois – continuou o Visitador– fui levado para trás do altar e um Irmão, chamado João, preceptor de Lamusse, mostrou-me uma cruz de estanho, onde havia uma imagem do Cristo crucificado. – Renegue-o, disse ele. Eu o fiz, e ele então me pediu que eu cuspusse sobre aquela cruz
– Vós o fizestes? Perguntou o Inquisidor.
– Não, não o fiz. E quanto a renegar o Cristo, foi pedido para que eu o fizesse três vezes, mas eu fiz apenas uma vez.
– Fez recepções semelhantes a outros Irmãos – perguntou Guilherme de Paris.
– Sim. Recepcionei vários Irmãos.
– Aplicastes o mesmo ritual?
– Sim. Invariavelmente era sempre o mesmo ritual. As promessas de cumprir os estatutos da Ordem, a promessa de segredo, a imposição do manto, os beijos na boca, no umbigo e na base da espinha dorsal, e a renegação, três vezes, de Cristo e e cuspir sobre a cruz.
– Essas ordens eram dadas com gosto?
– Não. Havia sempre um constrangimento em quem as dava e em quem as recebia. Mas faziam parte do ritual e era preciso obedecer.
– E havia quem se recusasse a cumpri-las?
– Sim. No início todos eram reticentes, mas depois a vontade de entrar para a Ordem acabava por vencer a resistência deles.
– E quanto ao ato carnal com os Irmãos, o que tendes a dize?
– Eu lhes dizia que se tivessem qualquer ardência que não conseguissem controlar, eles estavam autorizados a se aliviar com outros Irmãos. Era com muita contrariedade que lhe dizia isso.
– Então porque o fazias?
– Assim mandava a prática das nossas tradições.
– São todos recebidos assim em vossa Ordem?
– Nãos si dizer-vos, porque o que se passa nos capítulos não deve ser revelado aos que dele não participam, mas apenas aos de mesmo grau e posição. Por isso ignoro se todos fazem o mesmo.
– Acredita que todos os Irmãos da Ordem sejam recebidos da mesma forma?
– Pelo que sei, cada capítulo tem suas usanças. Não creio que todos sejam recebidos dessa forma.
No 15 de novembro foi a vez de Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia e Poitou, se apresentar perante Guilherme de Paris para dar seu depoimento.
– Fui iniciado há vinte e oito anos no Templo de Londres, pelo Irmão Roberto de Torteville, Grão-Mestre da Inglaterra. Jurei observar os estatutos da Ordem e seus costumes. Depois de receber o manto da Ordem, o Irmão Roberto me apresentou uma cruz com a imagem de Cristo e ordenou que eu a renegasse três vezes. Apavorado, perguntei-lhe porque devia fazer isso e ele respondeu-me que esse costume foi introduzido na Ordem quando um Grão-Mestre da Ordem, tendo caído prisioneiro dos sarracenos, conseguiu obter a liberdade após ter negado Cristo e cuspido na cruz, e jurado que doravante, imporia a todos os Templários essa obrigação. Assim, dessa data em diante, tornou-se costume da Ordem renegar Jesus Cristo e cuspir na cruz. Todos têm que o fazer.
– Então renegaste a Cristo e cuspistes na cruz– perguntou Guilherme.
– Não – respondeu Gonneville. – O Irmão Roberto, vendo a minha resistência, me pediu que jurasse pelos Santos Evangelhos que diria aos Irmãos que eu havia feito o que ele me pedira. Pois que se eu recusava e eles soubessem que eu declinara, ele teria que mandar matar-me, pois eu agora tinha compartilhado dos segredos da Ordem.
– Assim, os que se recusavam a cumprir esse ritual eram mortos? – perguntou o Inquisidor.
– É o que se ouvia dizer– respondeu Gonneville.
– E porque fostes poupados, se não cumpristes o que vos foi exigido?– inquiriu Gulilherme.
– Creio que por causa da minha posição. Meu tio Roberto era par do rei. Ele e também eu havíamos prestado grandes serviços ao rei da Inglaterra. Tinhamos intimidade com o rei e tratamos de assuntos de grande importância com ele. Assim, como eu jurei não revelar aos Irmãos a minha discordância com aquelas exigências, eu fui poupado.
– Porque nunca confessastes essas coisas á Igreja. Não tinhas obrigação de dizer a verdade?
– Confessei-o ao capelão da minha Ordem e ele me absolvera desse pecado. Sempre me disseram que nossos capelães são autorizados pela Santa Sé para absolver os Irmãos de seus pecados. E também porque sempre acreditei que tais práticas não eram gerais em toda a Ordem, mas apenas particularidades de algumas preceptorias que haviam se desviado do caminho certo.
– Recebestes pessoalmente muitos Irmãos?
– Alguns. Mas nunca apliquei neles esses ritos. Apenas os recepcionava, aplicava-lhes o manto e depois os deixava a cargo dos seus preceptores para a continuação dos ritos e as instruções de praxe.
– Nunca os mandou renegar o Cristo, nem cuspir na cruz?
– Não. Eu os poupei disso, da mesma forma como haviam feito comigo. Por causa disso fui, inclusive, denunciado, por por escrito, ao Grão-Mestre, por alguns Irmãos que não se conformavam que eu não cumprisse os rituais exigidos na iniciação.
Gulherme de Paris percebera a boa disposição de Gonneville para falar e tentar livrar a própria cabeça. Então insistiu.
– Se vos desagradava tanto essas disposições da vossa Ordem, porque não a abandonastes?
– Porque eu temia o poder da Ordem. Cheguei a pensar em falar com o rei de França a respeito e denunciar essas práticas abomináveis. Mas eu possuía um alto cargo dentro do Templo e era responsável por muitos bens e dinheiro. Se fizesse o que pensava, ou seja, denunciar ao rei as práticas da Ordem e deixá-la, eu seri o responsável por uma grande tragédia. Com certeza os Templários se vingariam, como era promessa e ameaça que se fazia a todos que denunciassem os segredos da Ordem, e que segundo se sabe, sempre foram cumpridas.
– Como se iniciou esse rito perverso de renegar Cristo e cuspir na cruz – insistiu Guilherme de Paris.
– Dizem que esse costume foi introduzido na Ordem por esse Mestre a quem me referi, que esteve prisioneiro do Sultão do Egito, e para se livrar renegou Cristo e prometeu introduzir o costume na Ordem. Mas há também quem diga que o introdutor desse costume foi o Mestre Rocelin de Forz, de Provença, que o incluiu em nossos estatutos, depois de os ter aprendido com os Irmãos do Langedoc. Outros dizem que foi o Mestre Tomás Bérard, que dirigiu a Ordem até o ano de 1272. E até há quem diga que esse costume é uma homenagem á São Pedro, que negou Cristo três vezes.
Guilherme de Paris estava perplexo com a mixórdia doutrinária que encontrara naquele inquérito. Jamais esperava que a Ordem do Templo estivesse tão contaminada de idéias estranhas como aquelas que Gonneville estava lhe contando. Aquilo era sopa no mel. As suspeitas de que os Templários haviam se contaminado com as heresias cátaras já lhe passara pela cabeça, e ele já havia decidido que esse seria um bom lado para explorar. Mas nunca imaginara que um grande dignatário do Templo, exercendo uma alta posição na hierarquia da Ordem, lhe fornecesse tanta munição assim para que ele pudesse detonar de vez, o Templo de Paris.
O melhor ainda estaria por vir. No dia 25 de outubro, Jacques de Molay repetiria, ante uma perplexa platéia, formada por membros da faculdade de Teologia da Universidade de Paris, todas essas confissões. Ele fora confrontado com as declarações dos outros dignatários da Ordem. Nem um deles havia negado. Foi- lhe diro que seria inútil, para ele, negar perante os doutores, aquilo que ele confessara aos Inquisidores. Talvez, pensou o idoso cavaleiro que comandava a poderosa Ordem do Templo na França, uma confissão espontânea e uma mostra de arrrependimento sincero pudesse influenciar os julgadores a um veredicto suave. Por isso , quendp lhe perguntaram se tais confissões não haviam sido extraídas sob tortura, ele disse que não. Confiava que a Igreja, a quem servira tão bem, na sua opinião, viesse a julgar esse assunto com muito critério.
Mas, nem bem terminara as suas respostas, já o coro dos irados monges exclamava em alto e bom som:
– Heresia, heresia! Á fogueira com eles
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Da obra "Filhos da Viúva", Conspiração dos Templários", título provisório, no prelo.