"arrependimento tardio"

Começa assim: Uma família humilde, trabalhadeira, dentro dos padrões normais das famílias pobres do norte de minas. O pai, Sr. Cândido, uns quarenta e poucos anos, negro, alto, muito magro. Ponta de osso pelo rosto a fora; alcóolotra; pai e irmão também. Trabalhava na lida nas fazendas fazendo trabalhos de enxada, foice e outros serviços oriundos da roça. A mãe, D. Rosa; esposa, estatura mediana, morena, uns trinta e poucos anos, lenço na cabeça, roupas simples, caprichosa nos afazeres domésticos; era doméstica e diarista, quando achava.

Tinham duas filhas: Maria com sete anos – primogênita e Ana de cinco anos. Moravam n´um comércio pacato ( lugarejo próximo da cidade ), uns quinhentos habitantes às margens da BR 135; distante uns vinte minutos da cidade referência.

As coisas caminhavam dentro da normalidade das vidas comuns de um povo brejeiro e humilde. Na sua maioria, não conheciam sequer um shopping center, internet e outras benéficies da vida moderna e ao alcance de todos.

A vida dura e implacável fazia valer até mesmo com essa família desprovida de toda a sorte do mundo. Sem recursos e vivendo n´uma situação quase precária, muito difícil; já que o Sr. Cândido gastava quase tudo que ganhava no trabalho com o vício (alcolismo); ficando toda a responsabilidade da casa para D. Rosa. Ainda assim não queixava-se, ía tocando, havia acostumado com a labuta.

Apaixonada pelas filhas, não existia nada nesse mundo mais importante que as meninas. Fazia de tudo para as garotas – dentro das suas condições. Levava-as após o almoço para a escola, cuidava direitinho delas com muito carinho e amor. Sempre arrumadinhas, cabelos bem cuidados, uniformes sempre bem limpos e passados; calçados limpos e conservados – vindos da casa da D. Antônia; sua filha crescera e os calçados já não lhe servia mais. D. Antônia contratava sempre os serviços da D. Rosa para faxinar e lavar a roupa da casa. Como conhecia a realidade dessa família, ajuda no que era possível. E a vida transcorria...

Sr. Cândido continuava na labuta e virando o copo todos os dias após o término do serviço. Parava de boteco em boteco, dose em dose da “canjimbrina”, nacionalmente conhecida como cachaça. O vício que o acompanhava desse bem cedo, moço, corroía-lhe o bolso, a moral e a saúde; mas para ele, nada disso importava. Estava anestesiado e não tinha forças para sair do vício terrível do alcoolismo; que aquela altura, trazia-lhe problemas graves na convivência familiar e por diversas vezes, D. Rosa, confidenciou à patroa, que não estava aguentando ver o marido naquela situação. “Uma bebedeira sem fim... Chegava tarde da noite todos os dias bêbado e não tinha tempo nem para conversar com as filhas”.

Os dias passavam...

Depois de alguns anos nessa vida, de sofrimento e angústia; D. Rosa cria coragem e n´uma conversa longa e sofrida com o marido, expõe toda sua indignação e preocupação com o que estava acontecendo.

Sr. Cândido, homem sem estudo algum e despreparado para entender um diálogo, não entendeu as reclamações da esposa e achou aquilo “demais” para ele. Confidenciou a um colega de copo: “minha mulher reclamando de mim! Não dá certa! Vou embora!” Essas foram suas palavras finais. Depois de alguns dias partiu sem destino deixando a mulher e as filhas para trás e até hoje não se tem notícias dele.

D. Rosa fazia o que podia na criação das crianças que aquela altura sentiam falta do pai. Não reclamava jamais e sempre sorridente e bem disposta, passava horas madrugada à fora pensando no marido que a deixara e com todos os defeitos que tinha, ainda assim, gostava muito dele. A saudade e a responsabilidade aumentavam e D. Rosa que combatia a “bebida”, àquela altura refugiava no copo para esquecer os problemas e a saudade que lhe corroía o coração. Começa a “bebericar” umas e outras nos fins de semana; depois diariamente. Primeiro escondido, depois não se importava mais com o que lhe falavam. Nem ouvia conselhos...

Certa vez, encontraram D. Rosa caída n´uma pracinha, bêbada e falando “coisa com coisa”. Levaram-na para casa e ao chegar, as meninas ficaram assustadas com a cena. Isso virou rotina na vida dela. Apareceram famílias interessadas em ficar com as crianças, mas D. Rosa não aceitava se separar das filhas. Os problemas só aumentavam...

O vício do alcoolismo tomou conta do corpo e mente. Passou a ser orgânico e implacável – rapidamente se tornara uma alcóolotra e como todos, sem força, tornara-se irresponsável; contava com a caridade dos vizinhos no cuidado com as meninas: alimentação, cuidados pessoais, escola e etc...

Muito revoltada com a vida, agora sempre de cara amarrada, sem perspectiva ; o amor pelas filhas ía aos poucos perdendo os sentidos para ela e o apetite de viver também. Aquela mulher sempre sorridente, bem disposta, trabalhadeira, contida nos seus atos e falas, agora sempre queixosa e conversas desagradáveis.

Certo dia, após o trabalho, passou n´um boteco, um quarteirão da casa da patroa, entrou e tomou um quarto de cachaça; saiu em direção à sua casa. Parou por mais três vezes até alcançar a esquina de casa. Em uma das paradas, comprou dois potinhos de iogurte para as filhas que adoravam. Ao chegar, foi até a humilde cozinha e ficou lá por alguns minutos.

Nota: A vizinha que limita nos fundos da casa, observou bem esses minutos, haja vista que não tinha o muro dos fundos e uma família avistava a outra perfeitamente.

As crianças estavam no quarto e a mãe ao chegar na sala chama-as. Em seguida, os dois anjinhos aparecem e correm na direção da mãe, que abraçando-as por alguns instantes, chora e entrega os potes de iogurtes para elas. Imediatamente, retiram as tampas de proteção, dão uma “lambidinha” e vão até a cozinha apanhar uma colher e voltam para a sala para deliciarem a gostosura. Não demorou muito e começa a fazer efeito... Deixam cair ao chão os potinhos, amolecem os corpos e caem lentamente no cimento vermelho e bem encerado. D. Rosa ainda chorando muito, vai até a cozinha pega um copo, passa pelas filhas – ali caídas – tida da bolsa uma garrafa com umas três ou quatro doses de cachaça pelo menos, põe no copo acima do meio; abre novamente a bolsa e retira um papel enrolado e despeja no copo. Mexe com o dedo mesmo e após misturado, vira e bebe de uma só vez.

Nota: A mesma substância que misturou na cachaça, ela pôs no iogurte para as crianças: “chumbinho”, veneno mortal, terrível e com efeito imediato; quanto não mata, mata! Conseguiu o veneno na casa da patroa quando arrumava um quartinho de bagunças. Seu marido sempre levava para a fazenda, segundo ele, para exterminar ratos.

Mais ou menos um minuto depois, ali estava D. Rosa entre as duas filhas; sem vida.

Deixara propositalmente a porta da cozinha aberta, janelas também; menos a porta da sala que dava acesso à rua.

Mais tarde a vizinha que limitava nos fundos, achou muito estranho; silêncio total; resolveu dá uma espiada. Chamou pela vizinha diversas vezes; sem sucesso. Resolveu entrar pela cozinha e depois de alguns passos, depara com uma cena quase comum; pensou que estivessem dormindo e aproximando, tocou no braço de D. Rosa notando uma certa rigidez e gelada. Naquele momento, só passava uma coisa pela cabeça: ela suicidou e levou as crianças junto. Saiu apressadamente, quase correndo, chamando o marido e o filho rapaz para verem aquela desgraça. O pai manda o filho até o destacamento policial chamar o militar de plantão. O que certamente foi feito.

Ao chegar, o cabo e o soldado confirmaram o envenenamento, já que encontraram a substância utilizada no suicídio. Em seguida, fizeram a ocorrência policial e entraram em contato com o IML (instituto médico legal). A comunidade se encarregou de doar os caixões e tudo que gira em torno de um velório e sepultamento digno.

Após o sepultamento no cemitério local – às margens da BR-135, a uns quatrocentos metros da praça central; muita comoção, mães chorosas, colegas das garotas olhos arregalados, abalados. O marido, não apareceu e não tinha como localizá-lo. A patroa de tão sentida não quis comparecer no velório e sepultamento.

A casa a polícia fechou e ficou aguardando a justiça se pronunciar.

Tempos depois, segundo relatos de muitos motoristas e caminhoneiros que ali trafegam constantemente, em conversa no posto de gasolina ali mesmo juntinho da BR, uns duzentos metros de distância do cemitério; em conversa enquanto abasteciam seus carros e caminhões, a prosa era quente... muito quente! Nas prosas, sempre vêm a tona a aparição da mulher que suicidou-se e sempre a noite. Segundo o que dizem, ao passar pelo local – um pouco antes da entrada do cemitério, que fica na parte superior do barranco – o farol do carro acusa uma pessoa às margens da BR acenando desesperadamente, como se pedindo carona. Ao aproximar notavam se tratar de uma mulher; paravam o veículo achando que poderia ser um socorro pelo estado que a mulher se encontrava – desesperada. Ao baixar o vidro, o motorista era surpreendido e inquirido com uma pergunta: “minhas fias tão aí. Ocês tão levando elas”. O motorista assustado não sabendo do que se tratava, dizia que não. A mulher se afastava chorando e sumia... Ele sem entender nada, continuava sua viagem. Somente aqueles que conheciam a história entendiam perfeitamente o que acontecia.

Nessas conversas no posto de gasolina, chegaram n´uma conclusão – isso depois que vários caminhoneiros terem sidos parados pela “mulher” chorando muito e nervosa, desesperada, procurando pelas filhas – Eh! Sem dúvida a “mulher D. Rosa” ou seu espírito sentindo o erro que cometeu, agora atolada no umbral e arrependida da besteira que fez, fica aí perambulando, vagando, achando que ainda dá tempo consertar a “bagaceira”.

Certamente as crianças, verdadeiros anjinhos, estão em lugar especial junto ao Senhor; sorrindo e correndo pelos campos floridos do céu.

Quanto às aparições, continua aparecendo lá. Já passei várias vezes a noite vindo do meu rancho no intuito de vivenciar essa situação, mas até hoje o máximo que vi foi um “bebum” saindo do mato abotoando a braguilha. Os motoristas, afirmam que ao aproximar a data de aniversário das mortes, as aparições e sempre a noite, são mais intensas. Será que todos os motoristas estariam mentindo? E qual o objetivo disso? Brincar com coisa tão terrível dessas? Seria criação da imaginação ou fato real? Eles afirmam com veemência a existência das aparições naquele lugar e dizem não ter motivos para inventar mentiras.

A nós, resta-nos rezar e orar muito em intenção dessas almas, principalmente da alma aflita; rogando a Deus que lhe perdoe e dê luz, se é que isso é possível.