Meia-noite

A primeira coisa que meus ouvidos perceberam aquela manhã ao acordar não foi o barulho dos carros na rua, nem o murmúrio habitual das pessoas começando o dia e tampouco o canto dos pássaros. Nada disso. Naquela manhã meus ouvidos não se incomodaram com os estridentes ruídos matinais, o que o incomodava não era o som, era a falta dele.
Somente silêncio.
De início aquilo me intrigou um pouco, depois toda aquela calmaria me fez bem, pelo menos um dia em minha vida acordava tranquilo.
Decidido a me levantar olhei meu relógio: marcava meia-noite. Pela luz do Sol entrando pela janela era fácil constatar que ele havia parado há muito tempo. Sem aquele marcador do tempo para me guiar levantei apressado, era óbvio que estava atrasado. Rapidamente me despi e tomei um breve banho frio, aparei minha barba com cuidado, escolhi uma boa roupa e um par de sapatos limpos e engraxados. Era hora de ir, o mundo mais uma vez me aguardava.
Sai à rua. Ali o silêncio era ainda mais marcante. Não se via automóveis, não se via pessoas. O próprio céu permanecia em silêncio sem o gorjear costumeiro de suas aves. Por instantes me mantive como o próprio mundo a minha volta, quieto e silencioso, como que para absorver toda aquela atmosfera estática.
“O que acontece?” – me perguntei.
Sem esperar resposta caminhei. Dirigi-me até o ponto de ônibus próximo a minha casa, que àquelas horas deveria estar lotado, mas que agora exibia apenas um par de bancos vazios. Fui até eles e me sentei, a minha volta nada novo, nem o vento parecia sobrar, talvez esperasse um sinal, mesmo as nuvens salpicantes do azul celestial não se moviam.
“Eu acordei, o mundo não” – falava para mim mesmo como querendo ouvir algum som que não o da minha respiração ou das batidas de meu coração, coração que aquela hora já era invadido pela angústia, angústia por se descobrir só.
E o ônibus não aparecia. A rua permanecia vazia dos dois lados, nem as sombras deixavam suas posições. E o silêncio continuava, reinava sozinho onde até ontem imperava o caos.
Já um pouco impaciente olhei mais uma vez o relógio: meia-noite.
Foi quando ouvi o ronco de um motor forte e nervoso. Aproximava-se rápido, vindo de onde deveria vir: do fim da rua. Então ele apareceu finalmente, o ônibus.
Levantei-me do banco e fiz sinal, nem precisaria, o ônibus já encostava.
Posicionei-me frente a porta e ela se abriu. Não vi ninguém, o banco do motorista permanecia vazio, indo contra toda a racionalidade e tomado por um instinto e por um habito cultivado por anos de trabalho eu entrei. Subi a pequena escada e olhei para dentro, apenas um homem estava no ônibus, lia um jornal amarelado. Assim que entrei as portas se fecharam e o ônibus arrancou sem motorista.
Aquilo não era lógico, entretanto eu me sentei dois bancos a frente do outro passageiro e apreciei a viagem. Lá fora o mundo era uma estátua, nenhum dinamismo era visto.
- Tudo muito quieto hoje não – disse de repente o homem atrás de mim.
Olhei para trás, seu rosto ainda permanecia escondido pelo jornal. Mas por educação eu respondi:
- Está tudo quieto por que ainda estou dormindo.
- Como assim? – ele quis saber.
- Isto é um sonho, o meu sonho. Nada do que vejo é real.
- Como pode ter certeza? – questionou o homem novamente.
- Veja essas ruas – disse olhando pela janela – Elas nunca estão vazias, nunca mesmo. E ouça, melhor dizendo, não ouça, este silêncio é impossível, como também é impossível um ônibus andar sem motorista.
- Pois eu digo que isto não é um sonho – ele disse, sempre com o rosto atrás do jornal – tudo aqui é real.
Intrigado com aquilo perguntei:
- Quer dizer que já acordei?
- Não, você não acordou – ele disse.
- Espere aí, você disse que nada disso era um sonho...
- Não significa que esteja acordado, você foi dormir ontem. E não acordará mais.
Olhei mais uma vez para fora, o ônibus seguia devagar, bem mais devagar do que o habitual, passava por ruas estranhas. Ruas que há muito não via, perdidas que estavam nas sombras de meu passado.
- Não entendo – falei.
- Não se preocupe – disse o estranho – vai entender. Agora, você poderia me informar as horas?
Olhei o relógio e disse:
- Meia-noite.
- Então já é hora de ir.
O homem baixou o jornal e vi seu rosto, um rosto velho e enrugado, mas incrivelmente familiar. Aquele era eu.
- A meia-noite seu coração parou, agora já é hora de ir.
Ele se levantou, puxou uma corda no teto do ônibus e o ressoar de um sino foi ouvido.
O ônibus parou, a porta se abriu, o estranho que era eu me guiou para fora. Mas antes de descer eu fiz uma última pergunta:
- Você e eu somos realmente a mesma pessoa?
- Eu sou seu futuro, nada mais.
- Meu futuro?
- Sim, pois sou a Morte. E a Morte é o único futuro de todos aqueles que vivem.
Olhei mais uma vez o relógio, hora de descer.
Era meia-noite, meus dias chegavam ao fim.
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 07/10/2013
Reeditado em 09/10/2013
Código do texto: T4515785
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