Olhos Vermelhos

Jacó observava a velha cabana abandonada no meio da densa vegetação. As paredes podres de madeira barata davam sinais claros da idade. No seu interior, escuridão e mofo intensos, teias de aranha nos poucos móveis: uma cadeira rudemente fabricada a mão e uma mesa. Um barril se escondia no canto escuro do pequeno cômodo de onde provinha a maior umidade do local. Tinha água em generosa quantidade, porém não potável. Havia indícios de que um animal de pequeno porte, ou seu cadáver, repousava no fundo. Jacó deu de ombros e mergulhou suas mãos lamacentas, esfregando-as. Aos poucos a sujeira diluía-se na água suja, mudando a sua cor.

Dia ruim de caça. Embrenhou-se na mata com o intuito de capturar um robusto javali, típico dos que vivem no norte: prolongados caninos, pelagem uniforme e muita carne. Foi para o mais ermo recanto dos porcos selvagens carregando uma espingarda e boa quantidade de munição. Era bom atirador, bem verdade, mas naquele dia parecia que o cano estava torto; mirava para a esquerda, mas o tiro se perdia à direita. Suava menos que suas presas. Algumas quedas na vegetação densa, imprevistos na localização, corridas longas sem resultados, assim a noite caia, e a mata mostrava seu real perigo. Sorte ter encontrado a cabana. Ignorou as teias de aranha e deixou seu corpo desabar sobre a cadeira. Percebeu que a madeira rangera, como se reagisse ao seu peso com raiva. Observou pela janela os vaga-lumes em suas rotinas noturnas. Javalis gostam da noite, pois não precisam se camuflar na mata. Seguem para campo aberto em busca de mais comida. Os vaga-lumes não são diferentes, gostam da noite, pois os torna vistosos, admirados. Queria ser como eles, mas não se pode questionar a natureza. Escolhe quem será agraciado com brilho, ou com a sina de peçonhento. Jacó estava feliz por ser apenas um homem de cinqüenta anos que gostava de caçar. Era solteiro por opção. Não gostaria de dividir responsabilidades com uma mulher. Teve suas aventuras, fora desejado por algumas mulheres, mas fugia de compromissos mais longos.

Deixou sua espingarda sobre a mesa. Uma cabana abandonada no meio do nada é um tesouro para um caçador perdido. Não gostaria de receber uma visita repentina, e estaria preparado para um confronto para defender seu território. Seus olhos estavam pesados, e seu corpo não reagia mais a estímulos. Estava mesmo cansado. Ali mesmo, naquela velha cadeira descansaria até o dia amanhecer. Deixou uma mão segurando a espingarda e o sono a envolvê-lo como um manto. Mergulhou em sonhos extravagantes, perdendo-se em seguida em pesadelos intermináveis. Reviveu o dia em que encontrou um javali devorando os restos mortais de um caçador. Os olhos vidrados, de um vermelho intenso de fúria contida. O porco selvagem, com restos de carne nos caninos longos, olhou para Jacó. Deixou gotas de sangue escorrerem da boca. Moveu-se lentamente, afastando-se da ossada, passos firmes, pesados, decididos. Cambaleava por causa do peso de seu banquete. Olhava fixamente para ele, mostrando aquelas presas enormes, caninos prolongados até a altura dos olhos. Nunca vira tão grandes e vistosos, brancos como leite, fortes como aço. Era capaz de partir um fêmur com a menor pressão possível. Jacó recuou, com repulsa, repugnância. A pelagem era cinzenta, mas não era um cinza comum. Parecia secular. O animal deveria ter pelo menos uns trezentos anos. Caminhar firme, olhar fixo de caçador. Seguiu num trajeto linear em direção a Jacó, salivando fervorosamente. Estático, ele sentia seu sangue parar, criar enormes bolhas nos braços e pernas, numa pressão insuportável. Sentia que iria explodir, que seu sangue seria espirrado do corpo como um balão estourando. Tentava gritar, mas não conseguia. Suas cordas vocais estavam congeladas.

O javali se aproximava, emitindo aquele grunhido gutural. Suas patas deixavam marcas bem definidas, como se pesassem toneladas. Jacó segurou a espingarda, tremendo copiosamente. Apontou para o animal, mas não conseguia mirá-lo. Parecia desaparecer no meio da mata. Os roncos ficavam mais graves, o bafo se aproximava como neblina, mas era uma neblina escura, fúnebre. O dedo no gatilho parecia uma imagem estática. O sangue se acumulava nas veias; a cabeça estava pesada. Não podia fugir àqueles olhos vermelhos, aos caninos gigantescos. O animal o havia dominado, brincava com seu medo, com sua morte iminente. De repente correu em sua direção, como num raio. Aquele corpo cinzento cortava o ar como uma flecha. Saltou sobre o seu corpo, mas antes de cravar-lhe as prezas, Jacó caiu da cadeira.

As costas doíam bastante. A queda lhe rendeu um galo na parte posterior da cabeça. Apesar de tudo estava satisfeito. Era apenas mais um pesadelo. Estava a salvo naquela cabana. Molhou o rosto com a água suja e usou a blusa para enxugar. Conferiu a espingarda. Vira que faltava uma bala. Carregou-a prontamente e apontou para um ponto definido além da janela. Logo iria amanhecer. Voltaria a caça, sabendo que seria um sucesso, pois nunca ouvira falar de dois dias seguidos de fracasso nesse ramo. Mataria um belo javali para matar sua fome, que era demais intensa. Teria carne para pelo menos uma semana. Estabelecer-se-ia naquela cabana. Seria sua base particular. Continuaria caçando durante o inverno. Era a melhor época. Dava para conservar melhor a carne. No final voltaria para sua casa, na capital.

Sentou-se defronte a janela, olhando os vaga-lumes. Os pirilampos eram realmente belos, apreciáveis ao extremo. Se pudesse ficaria ali para sempre, contemplando a mágica da natureza. Em meio às luzes piscantes, Jacó pode identificar, sem sombra de dúvida, dois pontos vermelhos bem próximos. Tentou dizer a si mesmo que era mentira, que era apenas uma ilusão, mas ao ver aqueles longos caninos prolongando-se acima dos pontos vermelhos, teve a certeza de que daquela vez não sairia vivo.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 03/10/2013
Código do texto: T4509870
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