Lua de mel

I

O mais novo casal da família Rodrigues chegou finalmente à suíte do hotel de luxo no Caribe que custou dois meses de economias. Ele arfava de cansaço, mas disfarçava com um sorriso, não foi fácil trazê-la da limusine até a cobertura nos braços.

"Creio que ainda dê para ver o pôr-do-sol, querida" disse, deixando-a no sofá. Ela logo correu até a janela para ver ao vivo o espetáculo desenhado no cartão-postal.

O vestido branco era a roupa mais bonita que já vestira na vida, mas seus ombros já doíam de tanto tempo com aquele peso todo, o maxilar adormecido de tanto sorrir para os convidados, como se tivesse que provar que estava feliz. Como se alguém se importasse com alguma coisa que não fosse os docinhos e um pedaço bem suculento de bolo.

"Infelizmente já anoiteceu..." ela avisou, seu marido estava no banheiro, provavelmente desabotoando aquelas mangas que lhe vinham alfinetando os pulsos pelo dia todo. "Mas o luar visto daqui é esplêndido..."

"Aproveite bem essa noite. Afinal, quando é que teremos outra assim?"

Ela sorriu, tirou aquela grinalda e véu da cabeça, o tecido fino já estava deixando sua pele avermelhada, mas para despir o vestido demoraria mais, não gostaria de rasgar nem uma fibra sequer, queria guardar muito bem qualquer lembrança do dia mais feliz de sua vida.

As estrelas, aos poucos, começavam a pipocar no céu cada vez mais negro. Uma fresta do mar se tornou branca refletindo o brilho cálido da lua cheia.

Ela suspirou. O dia já estava acabando. Não queria acordar amanhã e ver que isso tudo já era passado.

"Quer ouvir uma história engraçada que eu soube hoje?" ele perguntou pondo a cabeça para fora do banheiro, as mangas do paletó já estavam na altura dos cotovelos.

"O quê?"

"Parece que a cidade que escolhemos para passar a lua de mel está apavorada graças a um maníaco..."

"Pelo amor de Deus, querido, o que isso tem de engraçado?"

"Ao que parece, o tal assassino invade os hotéis, rouba os hóspedes e depois os mata...".

No começo ela sentiu um súbito susto, mas logo viu que os detalhes que ele estava contando eram convenientes demais e conhecia o tom de voz do marido quando ele só estava brincando. Respirou aliviada.

"Nessa você quase me pegou!" disse sorrindo. "Quase me assustei..."

Os dois voltaram a ficar em silêncio, ela virou-se outra vez para a praia quase deserta e o espetáculo que era o luar no Caribe.

Ouviu alguns ruídos no banheiro, depois alguma coisa caiu no chão e se espatifou em milhões de pedacinhos.

"Você está bem, querido?"

"Não se preocupe, foi o espelho que quebrou. Esses hoteizinhos vagabundos..."

Ele não perde a mania de falar mal de tudo, ela pensou.

"Sete anos de azar começando a contar na lua de mel" comentou. "Isso não é nada bom, sabia?"

Seu marido saiu do banheiro finalmente, as mangas ainda arregaçadas e a mão esquerda nas costas.

"Você acredita em superstições?"

"Prevenir não custa nada, não acha?"

Ele se aproximava com aquele sorriso que a havia conquistado há três meses. Agora ela conseguiu calar a boca de todos que diziam que esse casamento estava sendo rápido demais para que pudessem ser felizes. Sentia-se muito feliz.

"O que você está escondendo aí atrás, hein?"

"Uma surpresinha para a minha querida esposa..."

"Hum, adoro surpresas...".

Ele agora estava frente a frente com ela, com a mão direita que estava livre ajeitou o seu cabelo para que pudesse ver melhor o rosto da esposa. Fitaram-se profundamente.

"Não precisa se preocupar com o azar" ele disse. De repente ela sentiu uma pontada forte nas costas, uma coisa gelada que a invadiu e dilacerou sua pele; ainda teve tempo de se curvar e ver que o que ele tinha atrás de si era um caco pontudo de vidro, o caco que ele enfiou nela e que agora estava sujo de seu sangue. "Não precisa se preocupar, pois seremos felizes para sempre..."

Ela estava confusa, milhares de perguntas vinham à mente, completamente desnorteada, perdia o controle das pernas, sentia as forças esgotarem-se, seus olhos devagar foram se fechando, até que por fim, como num daqueles filmes da década de trinta, caiu docemente nos braços do marido.

"Seremos muito felizes..."

II

Ela não sabia direito quanto tempo passara inconsciente, mas agora que seus olhos se abriam devagar trazendo as imagens distorcidas e foscas do quarto bem-decorado, vinham também as lembranças do que havia acontecido.

A primeira coisa que conseguiu distinguir foi a figura do marido sentado numa cadeira ao lado dela passando um pano molhado na lâmina de uma faca de carne. Olhou então para si própria e viu que estava caída no chão, deitada e amarrada com uma corda que parecia ser um imenso fio de telefone. Já era difícil de se mexer graças ao vestido que agora estava insuportavelmente apertado. Ademais, aquela corda não a dava chances de escapar.

"Querido, que brincadeira é essa?"

"Ah, acordou, amor" ele deu uma olhadela para ela, depois voltou a polir seu reflexo na faca. "Não vejo brincadeira nenhuma."

"Por que você está fazendo isso?"

Ele se levantou e foi até as costas dela, a esposa quis se revirar, quis tirá-lo dali, mas não conseguia mover um músculo.

Ele analisou o ferimento feito nas costas dela.

"Hum... não pegou em nenhum órgão vital, vou ter que terminar o serviço..."

"Querido, por favor, pare com isso. Está me assustando...".

"Quer saber de uma coisa muito interessante?" ele perguntou. "Na verdade, você já deveria estar sabendo, mas duvido que tenha lido o contrato nupcial; ele dizia, numa clausula muito específica, que caso um de nós venha acidentalmente a falecer, o dinheiro da conta bancária do casal não precisa ser dividido entre familiares. Fascinante, não acha?"

"É por dinheiro? Você está fazendo isso por dinheiro?"

Ela queria chorar, mas a raiva não deixava que as lágrimas rolassem.

"E não é tudo nessa vida por causa do dinheiro? O mundo não gira em torno de um bendito papel verde?"

As lágrimas queriam escapar, mas ela não deixaria.

"Você não precisava fazer isso... Você teria tudo enquanto estivesse casado comigo..."

"E ter que te aturar pelo resto da minha vida? Agüentar aquela vaca da sua mãe e aquela sua irmã ridícula dar em cima de mim sempre que você sai de perto? Acho que te matar é uma opção menos tortuosa..."

Ela conhecia agora quem era o homem com o qual se casou, e sua família tinha toda razão em não gostar dele.

"Você não sairá impune, é claro que todos logo desconfiarão..."

"Quer saber de mais uma coisa interessante?" ele parou de limpar a faca, ajeitou o cabelo e sorriu para o reflexo perfeito. "Aquela historinha que eu te contei, sobre o assassino dos hotéis, não era de tudo mentira, ou você acha que uma praia caribenha estaria deserta numa noite estrelada? E a genialidade do plano está justamente aí, eu estudei o tal assassino, e sei como ele age... você será só mais uma vítima do cruel psicopata dos hotéis. Quem desconfiaria do pobre maridinho, viúvo tão cedo, pobrezinho...?"

Ela sabia que, ao contrário dele, a sua aparência devia estar terrível a uma hora dessas, a grossa camada de maquiagem que pusera já não devia agora de um amontoado de manchas borradas ao longo do rosto, e lembrou-se então de todo o trabalho que tivera para se maquiar, das horas arrumando o cabelo e ajeitando o vestido, dos meses tentando ficar mais bonita com exercícios que não foram feitos para o seu biótipo, e tudo por ele, todo esse esforço em troca de um pouquinho do amor dele.

"Você nunca me amou?" a pergunta saiu involuntária, meio humilhante.

"Isso é uma típica pergunta sua" ele respondeu amargamente, passou a andar em volta dela escolhendo o melhor lugar para enfiar a lâmina "uma gorda sentimentalóide tão insegura que precisa arranjar um homem pobre para fingir acreditar que é amada. Simplesmente patética."

Ele se abaixou e segurou o queixo dela, passou a lâmina gelada pelo seu rosto, mas sem cortá-la. Mas não foi pela dor causada pela lâmina que ela causou a chorar naquele instante, e sim pela maior, pela mais intensa, a dor das palavras que ele dissera. E o choro irrompeu trazendo os soluços e os caminhos negros que o lápis de olho úmido criaram no seu rosto.

No começo ele só pode sorrir. Aquilo era o que era não queria: chorar. Havia percebido o esforço que ela vinha fazendo para evitar dar esse gostinho a ele, e fracassara, para o seu grande prazer ela fracassara.

Mas depois de vê-la chorar por um bom tempo ele começou a se entediar com isso, tanto que abaixou-se, tirou o lenço da lapela, e secou-lhe as lágrimas cuidadosamente, para depois dizer:

"Você está tão bonita para morrer hoje... Fez bem em se arrumar tanto..." olhou-a nos olhos, a esposa tentava ainda achar apenas um pouco de piedade naquelas duas esferas brilhantes, procurou pelo homem calmo e amoroso pelo qual se apaixonara, mas não encontrava, não encontrava nem vestígios: aquele homem nunca existiu. "Lembra de quando eu te conheci? O livro que você estava lendo quando trombei em você?"

"E daí?" ela perguntou, agora com o tom de voz raivoso que ele queria que ela tivesse, finalmente havia compreendido que não sairia viva da lua de mel.

"Qual era?"

"Você sabe!"

"Qual era!" ele gritou. Um chute nas costas que desenhou uma pegada no vestido branco, gostara de bater, ansiava por isso há tanto tempo que não resistiu e lhe deferiu um segundo golpe, e um terceiro.

Ela sentia o coração a duzentos por hora, respondeu bem baixinho, amedrontada:

"Cem anos de solidão, Garcia Márquez."

"E aí está a maior das ironias, minha querida", ele se levantou rindo da própria genialidade. "O nome do maníaco dos hotéis é Gabriel Garcia Márquez, não que seja incomum esse nome aqui na América Hispânica, mas não é engraçado?" fez uma pausa para exibir seu verdadeiro sorriso, cheio de um maléfico cinismo. "Claro que seria mais irônico se tivesse sido Crônica de uma morte anunciada, mas nem pra isso, nem para escolher um maldito livro você prestou..."

"Você é louco!"

Ele sorriu. Nem na hora da morte ela deixa de ser sonsa, pensou.

"Todos somos, meu amor, mas somos loucos e loucos..."

Foi a última coisa que ela ouviu. Naquele momento a faca lhe perfurou a carne, interrompendo a sessão de terror psicológico e salpicando o vestido de vermelho enquanto o marido gargalhava da brincadeira.

Levantou-se, enrolou a faca num jornal velho e colocou-a atrás da calça para jogá-la no mar e depois voltar e dizer que encontrou a esposa nesse estado, que se soubesse dessa história de assassino nunca viria passar a lua de mel nesse lugar, que a policia de via proteger mais as pessoas, etc., etc., etc..

Era o plano perfeito.

Saiu da suíte policiando os dois lados do corredor, não havia ninguém. Todos estavam morrendo de medo do serial killer latino-americano.

Apertou o botão do elevador e esperou, não conseguindo refrear o sorriso contente. Estava tudo certo.

A porta do elevador se abriu e a primeira coisa que ele viu foi o cano do revólver 38 mirado na sua cabeça.

"Não estou aqui para brincar" O rosto atrás do revólver esbravejou, em espanhol. "Ponha as mãos na cabeça e volte devagar para o quarto!"

Ele obedeceu, uma faca não podia competir com um revólver. Abriu a porta lentamente e os dois entraram naquela suíte. Não demorou muito para que se ouvisse um disparo, e depois uma longa e insana sessão de risos.

Quem estava ali era Gabriel Garcia Márquez, e não era o escritor.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 02/10/2013
Código do texto: T4507949
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