A Presença

Fili corria desesperadamente. Seu corpo dividia-se entre a ânsia de fugir do perigo e a falta de força nos membros devido ao pânico extremo. Mas, ao que parecia, a ânsia era maior, e aos tropeços afastou-se da presença agonizante.

Quem presença era essa? Complicado de explicar, mas vejamos os fatos anteriores.

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Chovia forte, não uma chuva comum,parecia viva, com vontade própria, como se quisesse causar estragos a todo custo. O vento era forte e suas rajadas mudavam constantemente a violenta torrente de água de direção. As famílias de Searship aconchegavam-se em volta de suas lareiras, o medo dissipava-se ao se estar perto de entes queridos que confortavam-se mutuamente. Mas não para Fili, não para o menino morador de rua. Para ele aquele era um dos piores cenários possíveis. Estava com frio, com fome e com medo. Seu único abrigo, uma simples tábua de madeira encostada em uma parede, destroçou-se devido as fortes rajadas de vento. Desolado, andava aos tropeços pelas ruas e becos em busca de um lugar para se abrigar.

Não tinha a opção de pedir ajuda, o povo daquela cidade tinha uma forte aversão a mendigos, caso tentasse seria mais provável levar uma surra ou ir para o orfanato. Não, não queria ir pro orfanato, preferia passar frio a isso. Depois de muito perambular e cair várias vezes derrubado pelo vento, encontrou uma velha casa que aparentemente estava abandonada. Apesar de velha, seu telhado era uma ótima proteção contra a chuva, e Fili julgou seguro entrar. Quem diria que essa seria a pior decisão de sua vida.

A velha porta de madeira rangeu alto ao ser aberta, os relâmpagos constantes e a lua crescente delineavam os poucos móveis do lugar, a maioria quebrados. Ao encostar a porta para impedir a chuva de entrar, um silêncio aterrador preencheu o cômodo, como se não houvesse chuva ou mesmo um mundo lá fora. Os músculos de Fili retesaram-se, mas forçou-se a afastar esse mau pressentimento, até porque, aquilo era só sua imaginação (era mesmo?).

Decidiu explorar o imóvel para certificar-se de estar mesmo sozinho, apesar de seus esforços, a sensação estranha de quando entrou na casa continuava a atormentá-lo. Vasculhou o térreo e o primeiro andar, olhando todos os cômodos. Quando descia as escadas percebeu em sua lateral uma porta, provavelmente levando ao porão. Forçou para abri-la mas parecia estar emperrada. Tomou distância e partiu em velocidade para arromba-la mas usou força demais: a porta abriu facilmente ao receber o impacto, como se fosse destrancada, e ele desceu escadaria a baixo aos trambolhões.

A escuridão era densa e pesada, como se fosse um liquido pegajoso dificultando os movimentos. Fili levantou-se devagar sentindo dores por todo o corpo. Mas não dava atenção a elas pois a estranha sensação de antes transformou-se em terror puro. Sentia uma respiração em suas costas, bem onde estava a escada, e o som de metal afiado quebrou o silêncio. Sem pensar em mais nada, o instinto de sobrevivência tomou conta de Fili e ele saiu correndo para dentro da escuridão. A estranha presença continuava em seu encalço, até que sentiu uma fisgada na perna direita, e caiu batendo com força a cabeça.

Acordou amarrado com os braços para trás em uma velha cadeira de madeira, no que parecia ser um cômodo do sótão, seus tornozelos estavam presos por correntes a pesos de metal que limitavam seus movimentos. Lentamente seus olhos acostumaram-se com a escuridão do lugar e imediatamente deparou-se com uma figura de ombros largos, com um avental de açougueiro manchado de sangue. Porém, o mais assustador de tudo era sua face: não se assimilava em nada com uma face humana, era um abismo de sombra e mistério. Fili passou um longo momento aterrorizado perdido na profundidade das trevas daquele "rosto", suando frio e tendo espasmos que espalhavam-se por todo seu corpo. Sua mente só desanuviou-se quando a figura se afastou e saiu do cômodo, deixando Fili sozinho com seus espasmos.

Afastou o terror e ordenou seus pensamentos, raciocinando uma maneira de escapar. Por sorte já havia escapado várias vezes de situações complicadas, produto de furtos passados mal sucedidos. Esticou suas mãos e alcançou um pequeno canivete no bolso de trás de sua calça. Com dificuldade, cortou as amarras que prendiam suas mãos. Achou um arame jogado no chão e destravou as trancas de seus tornozelos, bem a tempo de ouvir passos pesados: a figura retornava para terminar o serviço.

Fili descobriu uma bancada com diversos equipamentos afiados, dos quais escolheu um largo facão. Escondeu-se atrás da bancada e espiava por uma fresta em sua base os movimentos da figura. A criatura observou as cordas partidas e os pesos de metal e virou-se para a porta pela qual havia entrado. Fili aproveitou o momento e aproximou-se furtivamente, quando ficou perto o suficiente, desferiu um forte golpe no raptor com o facão, enterrando-o em suas costas. Ao invés de um urro de dor, a figura estacou, sem emitir nenhum ruído. Fili saia pela porta contornando a criatura quando ela caiu em si novamente e disparou em sua direção.

Felizmente podia avistar pela porta uma fresta de luz proveniente da escada que havia descido bem ao fundo do largo cômodo, e arrancou em sua direção. A figura parecia estar atordoada com o golpe de Fili e ele conseguiu chegar primeiro a base da escada; subiu desesperadamente os degraus e fechou a porta na esperança de deter o agressor. Agora que seus olhos estavam acostumados com a escuridão total, Fili percebeu a desenho de uma cruz com vários outras símbolos em volta rabiscados na velha porta. Quando a criatura arremeteu contra ela os símbolos brilharam em vermelho vivo, e um urro de dor reverberou por toda a casa, eriçando os pelos da nuca de Fili. Percebeu que a criatura não podia passar pela porta, havia algum tipo de magia que a prendia e pela primeira vez sentia-se seguro naquela noite.

Ao sentar-se para acalmar os nervos porém percebeu algo terrível: sua perna direita tinha um lanho vertical, e o pior, em vez de uma cicatriz de sangue e pus havia um corte feito de sombra, como se não houvesse nada ali. Agora a criatura dava risadas guturais, e mais uma vez os símbolos da velha porta brilhavam em rubro. O terror tomou novamente conta de Fili pois o corte estava aumentando, o garoto desaparecia aos poucos, misturando-se a penumbra da casa.

Então a chuva cessou, sumindo junto com o corpo de um pobre garoto mendicante de quem ninguém em Searship sentiu falta.

Gabriel Freitas
Enviado por Gabriel Freitas em 29/09/2013
Reeditado em 08/03/2014
Código do texto: T4504004
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