A Diabólica Máquina Desintegradora do Doutor Miserábilis
Por Ramon Bacelar
Ultimamente nada dava mais prazer a Júlio que consultar seu ninho de ácaros, espreguiçar no sofá e abrir um batido livro de bolso.
— Atchim!
Tosses, ácaros, espirros, refluxos: Venham crianças, venham! Cadê a enxaqueca? O reumatismo?!…Cresçam e apareçam covardões! Bradava silenciosamente seu eufórico inconsciente em desafiante ousadia, pois agora, agora, nada mais importava além da (nas palavras do seu avô) Sagrada Hora da Leitura: “A Hora das Horas, netinho!”.
— Atchôôô!
Entre espasmos e espirros, olhava incredulamente a capa laranja-púrpura com saliências em prata do recém-descoberto opúsculo. Uma face pálida de sorriso maléfico, ferida por uma cicatriz rosada da boca à orelha, encarando o leitor com olhos espirais em alto relevo e um ridículo balãozinho: Vocês não são páreo para o Doutor Miserábilis, HAHAHA!
— Não mesmo, hôhôhô!
Gritou entusiasticamente. Não era para menos; depois de anos perdido, eis que surge por encanto, entre um Poe e Lovecraft, o capítulo final, a derradeira aventura.
— ‘A Diabólica Máquina Desintegradora do Doutor Miserábilis, Ralar Bacemon…’ —deixou a sonoridade das palavras ocupar o silêncio matinal. — ‘…mais uma inusitada e maquiavélica aventura do Semeador de Miséria!’ — degustou o subtítulo como um Chateau Margeaux. Finalmente o mistério do elusivo invento seria revelado.
— Júlio… Por que não vem me dar uma mãozinha na cozinha? — questionou a esposa.
— Não quero amor… Não! Não posso — respondeu impulsivamente, pois agora o que importava… “O mistério, por fim…”, sorriu aos quatro ventos.
***
Acomodou-se no sofá e abriu o livro. Por alguma razão, não conseguiu finalizar o parágrafo; tentou identificar o motivo, mas a estranha sensação parecia se esconder em uma densa bruma de incerteza. Coçou a cabeça impulsivamente; se sentiu impelido a olhar a capa, examiná-la.
Sim… O mesmo formato excêntrico e design dos outros volumes. Os mesmos mosaicos de cores sobrepostas, laminações desconexas e relevos irregulares; incongruências elaboradas para instigar a imaginação, induzir o leitor a absurdas associações sinestésicas.
Correu os dedos pela lombada e simulou movimentos espiralados quando a luz refletiu as espirais. Piscou os olhos e focou-os no fundo escuro, onde o doutor surgia como um efeito 3D: Um facho de luz ferindo a escuridão… Fio de laminação? Reflexo solar? Ou um mero efeito ótico como um Trompe L’oeil, cruamente executado? Examinou: sim, um brilho ao lado do cientista; um reflexo metálico de algo perdido na escuridão; possivelmente mais uma pista visual, ou distração proposital, para o enigma da elusiva máquina. Provavelmente angular, possivelmente vertical, mas, certamente metálica; reflexiva e metálica. E o seu propósito? O real propósito por trás das criativas e estilosas pirotecnias desintegradoras? Não, não queria acreditar em um desfecho concordante com uma interpretação literal, rasa e simplória; muito menos em uma fábula solipsista e egocêntrica. Depois de incontáveis páginas ao longo dos anos, o autor não reduziria sua obra a um vulgar exercício niilista de desespero e destruição… “Não mesmo!”, refletiu com cenhos franzidos.
— Júlio, por favor…
As flutuações de estilo e variações tonais certamente abriam margens, é verdade, mas mesmo que sua vívida imaginação preenchesse os espaços em branco, outros pareciam sugerir, nas palavras de um verboso professor ‘…não um horrendo rasgo no tecido narrativo, mas um essencial elemento, a somatória de tudo que deveria ser apreciado à distância…Na verdade, o Big Canvas, rapazinho!’
‘O canvas, a consolidação de uma arquitetura… uma…’, Júlio foi incapaz de concluir o raciocínio. Estaria viajando na maionese? Enxergando “chifre em cabeça de cavalo” no que deveria ser entendido como mero entretenimento?
Uma onda de incerteza intensificou a sensação. Massageou as têmporas e largou o livro quando o colorido traduziu-se em uma incômoda náusea; abriu a janela e tomou fôlego. Contemplou a brumosa paisagem matinal imaginando-a como uma impressão paisagística inacabada; tão vaga e nebulosa como um sonho Pré-Rafaelita ou uma linha do De Nerval.
Sentiu-se sonolento e enjoado; piscou os olhos, mas só enxergou uma cortina de névoa pontuada por formas disformes e cores opacas. O vermelho de uma rosa sem espinhos, a palidez de um gramado mal cuidado, o cinza quebradiço de uma folha outonal, e na periferia da visão, ao lado da sugestão de uma vassoura, um brilho opaco: a radiância de alguma parte do cortador de grama; tão elusivo e perdido na incerteza quanto o invento. Não fosse sua agorafobia, saltaria a janela e agarraria as certezas, mas um simples movimento já seria suficiente para uma súbita palpitação. Contemplou a sala em busca de definição e solidez: o conforto do sofá, a rigidez do assoalho, a segurança das paredes… Sua segurança.
— Vai ficar plantado aí como uma samambaia chorona? — disse a esposa às suas costas.
— Vou… — virou-se — …não! Marta, aquilo é nosso cortador de grama?
— Não, é o clone do Faustão.
— Parece… — olhou o livro e foi à janela. —…Vou, vou…
— O que… Epa! — agarrou-o. — Ficou louco?
— D-desculpe — fechou os olhos e tocou as têmporas. — Um súbito impulso para… — “…correr, fugir?” – para…Marta, preciso averiguar…e mal posso abrir a janela para respirar… Nem saber o fim da história, como tudo acaba: o mistério revelado em transparência de cristal ou adensado com preto nanquim em papel de polpa? — contemplou a paisagem como uma metáfora visual — Fine, ende…Fim.
— O que está falando? Está bem?! Sua… — suspirou pensativamente. — Desculpe querido. Sua agorafobia…
— Sim, intensificou — pressionou a lombada e sentiu as espirais. — Não tem problema, amor.
— Vou pegar os remédios.
— Acabaram.
— Você… — mordeu os lábios e pegou-o pelo braço. — Vamos para o quarto.
Acompanhou-o pensativamente.
— Assim… Sem travesseiro mesmo — beijou-a. — Você é um anjo.
— Anjos não tem sexo, querido — disse carinhosamente. — Vou à farmácia. Procure ficar longe das portas e ja….
— Pegue um guarda-chuvas; está enevoado.
— Como? — questionou-o antes de trancar a janela. — Sim, claro; está muito… enevoado.
***
Júlio despertou disposto e renovado; sentiu a falta da esposa e pegou o celular.
— Amor, está ouvindo?
<Fiquei presa no trânsito. Já estou…>
— Estou bem. Acho que você esqueceu a bomba d’água ligada. Um barulho horrível…
<Desligue-a atrás da geladeira, mas não saia. Estou chegando.>
Foi à cozinha e localizou o jogo de chaves… click. O ruído persistiu.
— E agora José? — olhou ao redor e não viu nada. A escuridão vinha de fora pra dentro. — Droga — religou a energia e pegou uma palavra cruzada.
Enquanto passava o tempo, o tempo passava…
— Comida baiana feita com feijão branco — mordeu o lápis, irritado. — Bomba de merda, cala-te ou te devoro! Che-gou! Preciso… Deus…
Trêmulo, abriu a porta do quintal.
— O que está fazendo? De novo!
— Marta… Não te vi chegar.
— Com um barulho desses — tapou os ouvidos. — Entrei pela frente. Não encontrei os genéricos, ficaram mais caros.
— Tudo bem — disse apático.
— Que som irritante.
— Desligue a maldita.
— Mas… está fora da tomada. Verifiquei antes de entrar.
— Então… — silêncio.
— Está aumentando? Acho que estou zonza – cambaleou para a sala.
— Eu também, parece…
— Júlio!
— Que foi! — correu.
— Não estamos tontos. O aquário está vibrando!
— O chão também… Que estranho. Me parece… Não é possível, o cortador de grama… reflexivo, angular e metálico. A máquina!
— Que está falando!
— O cortador está vibrando! É ela, escondida…
— Deixei-o desligado. Além do mais… Está enevoado — “Dentro e fora”, pensou.
— O som… — pausou bruscamente — …como uma espiral sonora; não está notando como os ecos vem e vão?
— E daí?! — disse irritada.
— Uma aflição auditiva, vertiginosa e abismal como os olhos de Miserábilis. O enigma! — foi ao quarto.
— Não me deixe!
— O opúsculo. Espere!
Marta apoiou-se na janela; ao seu redor, uma antes sólida arquitetura agora ondulava como uma miragem fugaz. Viu o lustre balançar como um pêndulo desconexo, quadros e talheres envoltos em ecos circulares.
— O aquário espatifou! As paredes estão… Socorro!
— Os sinais, a desintegração! Marta, as rachaduras… – apontou -… irregulares, mas espiraladas como os olhos do Doutor. Estilhaços do aquário idênticos às laminações; protuberâncias e altos relevos no reboco…
— Nonsense de merda! Largue a porra deste livro e vamos, vamos… Meu Deus, não posso te deixar – agarrou-o. – Estou com… O que é aquilo no teto!
Olhou incrédulo.
— Outra manifestação de sua personalidade: uma cicatriz de cimento rosado, ao lado de um, um… abismo de riso!
<HAHAHA!>
— Quem está gritando!
— Olhe a capa, aqui! Ele gritou… A mesma gargalhada espiral! Lembro-me das alusões sobre a maleabilidade do tempo e Sementes do Caos perdidas no trevo interdimensional no capítulo IV do Vol. 6.
— Você…
— Marta — disse aflito — a hora da colheita do Semeador de Miséria… chegou!
—É tudo tão… — disse a si mesma.
— Contracapa… – pressionou o livro como se sua vida dependesse disso –…aqui, abaixo da sinopse… essa onomatopeia…
— Que barulho irritante, feito um trator rouco abrindo sulcos.
— Isso mesmo. Por isso o som me era familiar, mas como onomatopeia — gesticulou freneticamente. — E vem de lá! O invento de Miserábilis mascarado como um cortador de grama. Ele, o ceifador e nós…as sementes ruins!
— Querido…
— O mistério da Encruzilhada das Realidades, do diabólico invento e reais intenções do autor. As lendas e boatos em torno de sua vida e criações. As pistas metaficcionais deixadas ao longo da série. Tudo, desembocando… aqui!— bateu os pés no soalho.
— Júlio, por favor.
— Um serial folhetinesco aparentemente inocente, escrito em prosa direta, mas, também, paradoxalmente, sinestésica e obscura. Quem iria imaginar que a invasão silenciosa mencionada no quarto volume iria bifurcar em nossa realidade? O poder, querida; o misterioso, mas maléfico e diabólico, ‘poder da arte da palavra’ — encarou o cortador. — Só mesmo uma imaginação maquiavélica seria capaz de manejar a suspensão da incredulidade…
— De novo!
— …a ponto de incutir na mente do leitor a ideia de que um mero aparato doméstico…
— Chegou! Nosso cortador de grama não passa de um maldito cortador de grama, e está tão silencioso quanto…
<Vocês não são páreo…>
— Que foi isso?!
— Ele!
— Não seja…
— Sua face…Nas rachaduras e angulações do teto… está, está…
— As paredes estão mudando de cor!
— Como os efeitos da capa. Aquela área abaixo dos olhos está…vermelha? Marta, ele está furioso!
<Quão frutíferas foram minhas sementes!Agora…>
— Deus! O teto… — tapou os ouvidos e cambaleou. — O piso está cedendo!
— Desintegrando… em espiral! Está ouvindo?! A mesma risada… na fenda! – sentiu uma sucção. — Uma manifestação onipresente, onipotente e, e… Fuja!
— Sem você não!
— As paredes estão esfacelando! O abismo, alargando… – sentia a vibração como a soma de mil pesadelos.
— Segure em mim, vamos sair!
— Não posso!
— Pode!
— Não! Prefiro ir para baixo que fora dela. Minha segurança!
— Calma! Então vou buscar ajuda. Fique…
— Não percebe?! — abraçou-a tremulamente. — O desfecho do drama, nossa história; porque no fim tudo, tudo… — tremeu quando viu seu reflexo no espelho virar pó. — Minha face: FIM! — largou o livro quando um calor emanou do epílogo. — Quem sou eu?!
— O fim. Não pode ser…
— Sim! E ela está… — tremia convulsivamente.
— Quem!
— Ela! Escondida sim, lá! Destrua a máquina… O cortador! Nãoooo…
Júlio engoliu em seco quando sentiu a esperança desintegrar como realidades conflitantes; agarrou-se às últimas saliências dos tacos enquanto espirais de risos e abismos o sugava para o seio escaldante de sua morada.
Em um gesto de adeus, contemplou as lágrimas nascentes de Marta; viu-as exalarem nas imensuráveis profundidades do abismo de fogo, sem saber que a diabólica máquina se escondia em um amarelado, ruidoso e (enganadoramente) frágil livro de bolso.
FIM