Crimes de Guerra

Assim que entrou na casa padre Klotz o viu, estava sentado sobre uma poltrona de couro. O padre se aproximou e o cumprimentou:
- Bom dia, incomoda-se se eu me sentar um pouco?
- Não – respondeu o homem – puxe uma cadeira padre, só sinto dizer não ter nada para oferecer-lhe, como bem sabe não tenho necessidade de comida ou bebida.
O padre puxou uma cadeira, se sentou de frente ao homem e falou:
- Sim, eu sei. Mas o que venho lhe oferecer é mais que comida, é pão, e também mais que bebida, é vinho.
O homem levantou o rosto e olhou para ele.  Padre Klotz pôde perceber então seu semblante de cansaço do mundo e o brilho apagado em seus olhos, aquele homem tinha chegado ao fundo do poço, mas ele estava ali para ajudar e nunca abandonava uma alma necessitada.
- Poupe seu tempo padre. Nem o pão nem o vinho podem me salvar. Mereço tudo pelo que tenho passado.
- Pois eu digo que sua pena já foi cumprida, basta se arrepender do que fez e deixará este lugar.
- Arrependimento? – bradou o homem de repente, fazendo o padre pular da cadeira – Acha que não me arrependo? Não passa um dia sequer sem que eu não me arrependa padre! Não, ainda não paguei tudo, tenho que sofrer mais, sofrer por toda eternidade!
O padre olhou pensativo para o homem, era difícil um caso como aquele, mas ainda podia apelar para uma alternativa:
- Filho, sabe que enquanto estiver aqui elas também estarão não sabe?
- Sim, e as vejo a cada noite, a cada dia, a cada hora.
- Então sabe pelo quê elas tem passado.
O homem levou as mãos ao rosto e de um minuto para outro começou a chorar como um menino.
- Padre, eu posso vê-las! Ouço seus gritos, seus pedidos de misericórdia, vejo seus olhos vermelhos, suas carinhas de medo.
- Diga-me então filho, elas merecem passar por tudo isso de novo? Merecem repetir este tormento por toda a eternidade?
- Não padre... apenas eu... apenas eu mereço.
O padre pareceu chegar ao ponto pretendido:
- Então filho, as liberte.
- Mas como padre? Como farei isso?
- Se arrependendo, pedindo perdão, aceitando o pão e o vinho. A sina dessas crianças, cujo sangue mancha suas mãos e sua alma, está presa a sua própria sina. Só você tem o poder de liberta-las.
- Tem certeza que posso ser perdoado?
O padre se levantou e disse:
- Sim, mas para isso deve perdoar a si mesmo antes. Venha comigo, vamos sair por aquela porta, abandonar essa casa e o passado, deixar os mortos descansarem e os vivos viverem. Libertar as almas dos inocentes e parar de assombrar este lar.
O homem então se levantou também e caminhou junto ao padre até a porta onde parou e disse:
- Já faz muito tempo que não saio dessa casa.
- Pois agora sairá e não voltará mais. – disse o padre.
A passos curtos ele cruzou a linha que separava a casa do mundo exterior e sentiu a luz do dia sobre si.
- Havia me esquecido como é bom – falou o homem.
- Agora é preciso mostrar a luz aos outros cativos, leve-me até eles. Leve-me até onde os escondeu.
O homem então guiou o padre até uma pequena mata nos fundos da casa e lá mostrou a ele um cemitério clandestino com várias covas.
- Estão todas aí? – perguntou o padre Klotz.
- Sim, algumas das covas são coletivas. Há mais de mil crianças, eu mesmo matei ou dei a ordem. Já faz mais de sessenta anos, naquele tempo achava estar fazendo o certo, queria ser apenas um bom germânico.
- Todos queríamos Sr. Schlesinger, todos nós estávamos cegos. Achávamos que dominaríamos o mundo. Mas foi tudo o pesadelo de um louco que se intitulava Fürer, e nós o seguimos Sr. Schlesinger. Estávamos todos iludidos, iludidos pelo poder e pelo ódio.
- O que faremos agora padre? – perguntou o homem.
- Vamos desenterra-las Sr. Schlesinger, desenterra-las e rezar por elas, pois elas são e sempre foram inocentes e não merecem o castigo eterno. Estão libertas.
- E quanto a nós? – perguntou o Sr. Schlesinger mais uma vez.
- Vamos rezar por nós também, nós já nos perdoamos, Deus nos perdoou. Agora o mundo, talvez o mundo nunca nos perdoará.
Naquele dia um cemitério clandestino foi misteriosamente revelado em uma floresta da antiga Alemanha oriental. Uma investigação concluiu que ali foram enterradas crianças judias, eslavas, ciganas ou mesmo portadoras de deficiência física ou mental, todas vitimas do nazismo. Ali perto ficava uma velha casa, que, reza a lenda, era assombrada, propriedade do antigo oficial nazista Herbert Schlesinger. Descobriu-se que todas as vitimas vieram do orfanato São Thomas, dirigido na época da Segunda Guerra pelo padre Wagner Klotz, um conhecido simpatizante das ideias de Adolf Hitler. Ambos, Schlesinger e Klotz, morreram durante a guerra.
 
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 23/09/2013
Reeditado em 23/09/2013
Código do texto: T4494116
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