O Sol da Meia-Noite - um conto experimental

I

O sol da meia-noite ilumina o que deseja e o resto deixa afundar na escuridão dos cantos sujos que ele não quer encontrar.

II

O sol da meia-noite brilha numa preguiçosa despedida que ilumina com raios campestres e melancólicos o que bem deseja aclarar.

III

O sol da meia-noite, com seus raios que enrubescem as nuvens cândidas, realça o céu cerúleo das cores mais belas a seu bel-prazer.

IV

O sol da meia-noite é cruel. Mas da sua maneira de crueldade, que erradia mas não esquenta, que esconde mas descobre...

V

O sol da meia-noite obriga-me a ver o que eu tanto gostaria de esquecer e me esconde do que inutilmente tento lembrar.

VI

O sol da meia-noite é tão vermelho, cálido e quente quanto seu sangue esparramado e correndo no asfalto negro e gelado daquela escuridão.

VII

O sol da meia-noite brilha tanto quanto a lâmina da faca que insiste em não se desatar de minhas mãos, assim como seu cheiro insiste em não se desprender da minha pele.

VIII

O sol da meia-noite trás o vento do ocidente que joga sobre mim o perfume das pétalas mais macias dos jardins em que você costumava passear.

IX

O sol da meia-noite deixa seus raios plasmados na janela entrarem em nosso quarto agora vazio e brilharem nos lençóis tão brancos que você arrumou quando saiu.

X

O sol da meia-noite ilumina o meu rosto envergonhado e arrependido, confuso e desnorteado, e me faz sentir o mundo girar e o presente fundir-se ao passado, onde ouço seu último grito.

XI

O sol da meia-noite curva os girassóis que finalmente podem descansar e preparar-se para a escuridão que virá em breve.

XII

O sol da meia-noite pode agora expor minha dor, mas antes não iluminou a sua hipocrisia nem a sua falsidade ou a podridão dos seus sentimentos.

XIII

O sol da meia-noite pode iluminar minha maldade e rancor, mas não fez o mesmo à sua insanidade, preferindo mantê-la na penumbra.

XIV

O sol da meia-noite escondeu sua sujeira, mas destacou os meus defeitos, fazendo de ti uma santa falsa e de mim um anjo maculado.

XV

O sol da meia-noite fez brilhar a gota cristalina que por sua causa rolou, assim como brilhava seu meio sorriso dissimulado enquanto o abraçava.

XVI

O sol da meia-noite me faz sentir a vertigem do remorso e o atrito de meus dentes na raiva que você fez chegar num limite tal que só o frenesi poderia extravasar.

XVII

O sol da meia-noite é testemunha de meus crimes, mas também de todas as minhas tentativas de evitar que o fim fosse esse, de todos os meus inúteis pedidos para que você parasse antes que o sol da meia-noite fosse testemunha de algo muito pior.

XVIII

O sol da meia-noite deixa tudo gélido e sufocante a ponto do vapor que dentre meus lábios sai condensado em fumaça branca se torne rubra como a chama da nossa antiga paixão.

XIX

O sol da meia-noite alumiou seu rosto sorrindo na nossa cama com ele e iluminou seus olhos perversos fixados nos meus enquanto eu, sem reação, sentia o vulcão a tanto adormecido explodir sem precedentes numa erupção que parecia capaz de queimar-me todas as artérias e músculos e ossos e alma com aquela raiva que crescia tão desvairadamente chegando às beiras de irromper por meus poros.

XX

O sol da meia-noite iluminou para meus olhos a imagem da sua Infidelidade, tão infame que chorava como um inseto pedindo para se esconder mais uma vez na escuridão, mas os raios do sol da meia-noite são impiedosos e gargalhavam da sua nudez e da sua desonra e da sua imundice que não existia antes da minha presença.

XXI

Mas agora, o sol da meia-noite não mostra seu corpo naquele beco jogado como você merecia ser mostrada, não mostra seu sangue esparramado pelo asfalto assim como está espirrado na faca que insiste em não se desatar das minhas mãos, assim como seu cheiro insiste em não se desprender da minha pele.

XXII

O sol da meia-noite abafou os seus pedidos de misericórdia não me deixando ouvi-los assim como você não prestou atenção quando antes eu apelava pela sua clemência.

XXIII

Porque o sol da meia-noite, minha querida, ilumina o que deseja e o resto deixa afundar na escuridão dos cantos sujos que ele não quer encontrar.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 20/09/2013
Código do texto: T4490470
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