POSSESSÃO - Parte I

Segunda-feira, 16 de agosto de 1965

Prezado amigo Adalberto,

Espero que esta carta o encontre em plena saúde. Soube, através de sua irmã Bertina, que tens sido acometido por febres reumáticas. Já presenciei pessoas com esse mal, e posso atestar que o sofrimento é deveras perturbador.

Adalberto, meu amigo. O motivo de estar-lhe escrevendo é, conforme sua solicitação, para deixá-lo a par dos últimos acontecimentos na casa de sua mãe. Reconheço que quando me fez esse pedido me indaguei qual seria sua intenção, porém cheguei à conclusão que, pelos favores que lhe devo, é natural que o poupe de minhas dúvidas. Adianto que não há nada com o que se preocupar, a não ser com um pequeno fato que, por não ter tido testemunhas, ainda nos atormenta o juízo em busca de uma explicação lógica. Passarei a narrá-lo:

Ocorreu por volta da meia noite do último dia 13, por sinal uma sexta-feira. Apresento este detalhe não para assustá-lo, pois tenho certeza que não compartilha das ideias dos lunáticos supersticiosos, mas para lembrá-lo das vigílias realizadas por sua mãe na igreja de São Sebastião, quando ela passa a noite rezando com as outras beatas enquanto seu pai fica sozinho em casa. Deveria ter sido só mais uma sexta-feira comum, não fosse a situação em que seu pai foi encontrado.

Dona Gertrudes, vizinha de frente da sua família, relatou ter ouvido gritos horripilantes advindos da casa. Chamou o marido e outro vizinho, com o intuito de arrombar a porta da frente. Seu pai foi encontrado deitado no chão da sala de estar, completamente despido, braços e pernas abertos e olhar fixo para o teto. Na mão esquerda havia uma vela acesa, única iluminação do ambiente, e parafina derretida entre os dedos. Segundo a vizinha, balbuciava algumas palavras sem nexo. No chão da sala onde seu pai foi encontrado havia algumas queimaduras, formando um caminho, semelhantes a pegadas em formato de fendas do casco de algum animal. As ditas “pegadas” seguiam do centro da sala até serem interrompidas pela parede que separa a sala da cozinha, aquela onde está afixado um retrato seu de quando era criança. Foram chamados os enfermeiros do posto de saúde, que diagnosticaram ter seu pai sofrido um “ataque de nervosismo”, e o conduziram à unidade de atendimento.

Meu amigo, o que a união infeliz de acontecimentos inexplicáveis e a imaginação humana não são capazes de criar ? Diante dos fatos foram formadas várias teorias pela vizinhança. Devido ao caráter absurdo de tais teorias, prefiro manifestar minha humilde opinião sobre o ocorrido. Suspeito ter sido tão somente mais um dos pequenos porres de seu pai. Devido à solidão e à hora avançada, o pobre velho deve ter bebido uma garrafa daquele tão saboroso vinho que ele guarda a sete chaves. Por estar ébrio, deve ter caído na sala quando ia à cozinha pegar algo. As palavras balbuciadas se devem ao torpor provocado pela bebida e pela queda. A vela provavelmente estava sendo usada para iluminar o caminho. Só não encontrei explicação lógica para as queimaduras no chão e para o fato dele estar sem roupas, mas quem será capaz de entender todos os hábitos das pessoas idosas ?

Espero não tê-lo deixado aflito. Minha intenção não era preocupá-lo. Seu pai já está em casa, aos cuidados de sua mãe. Ficarei atento aos próximos acontecimentos, como prometido. Espero que os motivos que o levaram a me pedir esse procedimento sejam nobres.

Do seu eterno amigo

JACQUES

Continua...

J A RODRIGUES
Enviado por J A RODRIGUES em 17/09/2013
Reeditado em 17/09/2013
Código do texto: T4485317
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