O Conto Maldito ( Parte I - A Maldição)
Desde minha infância tenho sido fascinado, e perseguido, por aquilo que todos denominam de estranho, de insólito, de arcanos misteriosos do universo. Jamais pude me livrar das absurdas sensações que, sem nenhuma explicação plausível, de um momento para o outro, a qualquer instante, situação ou circunstância, invadem-me e inflamam meus sentimentos. Disse que jamais me pude libertar de tais sensações e, na verdade, nunca o desejei fazer, visto que as emoções que elas em mim insuflam são tão intensas e deleitosas que as renunciar seria voltar ao tédio de uma existência comum.
No entanto, sei que pago alto preço por esse dom... ou maldição... Dom ou maldição que prefiro não defini-la, conceituá-la, mas apenas viver tais comoções anímicas que, como qualquer sensibilidade exacerbada, acarretam um involuntário sofrimento martirizante.
Exemplificar ao leitor as bizarras sensações não seria tarefa fácil, todavia, creio ser possível mencionar uma delas... Quando eu contemplo, ainda que rapidamente, de passagem, um local arborizado de qualquer rua, automaticamente vêm-me à mente todas as pessoas que em probabilidade tenham passado pelo local, a combinação, a relação do mesmo com determinadas mulheres, ou seja, que tipo de beleza e de caráter femininos estariam esteticamente de acordo com as árvores, com o céu, com as flores, com a temperatura do preciso instante, como se o lugar referido fosse e significasse muito mais do que somente uma visão física, como se houvesse nele uma alma vibrando latente, plena de sentimentos do além-mundo. E então, uma série de melodias sublima meu coração, poemas surgem em minha tela mental, sinto-me transportado para lugares e épocas indefiníveis, imagino ver pelos campos animais selvagens ou seres mitológicos, fantasmas e espíritos. Aromas metafísicos invadem minhas narinas, e meu coração palpita exaltado, carregado de anseios e terríveis romantismos dilacerantes, tudo isso em questão de poucos minutos.
Talvez esse preâmbulo pouco interesse ao leitor, contudo, considero-o indispensável para que fique bem claro o porquê de aquelas mortes enigmáticas terem me perturbado tanto, posto que todo mistério provoca-me uma atração irresistível, da qual me é impossível despender qualquer resistência.
Bem, o mistério que no caso em questão dominou totalmente meus interesses, que atormentou minha mente e coração a ponto de não conseguir pensar e sentir outra coisa que não estivesse a ele relacionado foi as mortes absurdas que ocorreram em minha cidade, e que absolutamente ninguém engendrou qualquer tipo de explicação convincente. Sem mais delongas, vamos ao caso. Há pouco mais de três meses, principiaram-se em minha cidade uma série de mortes que aparentemente não apresentavam causa alguma em termos fisiológicos. Pelo que sei, 13 jovens foram vitimados. Todos as cadáveres foram encontrados em lugares relativamente afastados da cidade, como campos e matas próximos a sangas das imediações. Obviamente, todas as mortes foram exaustivamente investigadas, os cadáveres analisados nas mais radicais minúcias, mas absolutamente nada, nenhum sinal, sequer o mínimo indício apontou o motivo do falecimento dos jovens. Os corpos encontravam-se sempre intactos, sem nenhum vestígio de violência, enfermidade, tanto externa quanto interna. Todos os exames realizados não indicaram a presença de qualquer substância tóxica, agente patogênico ou anomalia genética, e nenhum problema se identificou em qualquer órgão. Os pais e parentes dos jovens, ao serem questionados, afirmavam que seus familiares mortos aparentavam estar em perfeito estado de saúde nos dias que antecederam a tragédia. Enfim, os corpos estavam fisicamente perfeitos, a não ser pelo fato de não apresentarem sinais vitais, qualquer reação a estímulos. Todos foram sepultados sem se saber a causa mortis, apesar de todas as fatigantes autópsias.
No entanto, é claro que as intensas investigações policiais obtiveram algumas informações muito interessantes sobre as mortes, ainda que resultassem insuficientes para a resolução de tão intrincado enigma. Uma das informações é a de que todas as vítimas afirmaram, um ou dois dias antes de falecerem, que estavam fervorosamente apaixonadas, comportando-se como tal, conquanto não se soubesse por quem estariam apaixonadas em nenhum dos casos. Outra informação que revelou um inquietante e temeroso ponto em comum entre os mortos, relaciona-se ao fato de que todos, também um ou dois dias antes da morte, terem visitado a biblioteca pública. Não obstante, nenhum indício referente ao mórbido caso foi encontrado no local pelos detetives.
Desnecessário dizer que tal mistério estarrecedor absorveu-me completamente, se o leitor levar em conta a minha exagerada afinidade com tudo o que é estranho. Além disso, um outro motivo muito forte levou-me a mergulhar quase que ensandecido no caso em questão: uma de minhas amigas estava entre as vítimas, e faz apenas 11 dias que ela faleceu. Foi a última, por enquanto, a morrer pela ignota causa, em um total de 13 vítimas. Então, dupla e fortemente impulsionado, concentrei-me em total dedicação para tentar elucidar o labiríntico arcano.
Conversei com a citada amiga, Rúbia era seu nome, um dia antes de ser encontrada morta. Parecia-me perfeitamente bem de saúde, e não teria a mim transmitido nenhuma impressão esquisita, não fosse por seu comportamento típico de uma pessoa perdidamente apaixonada. Conversamos muito pouco, pois a encontrei de passagem em uma avenida. Disse-me que vinha da biblioteca pública e que precisava ainda naquela noite ver “ele”. Questionei-a sobre quem seria esse “ele”, mas ela negou-me resolutamente a responder, tampouco mencionou qualquer informação sobre a suposta pessoa pela qual demonstrava tão febril paixão. Falou-me apenas que nada em sua vida faria sentido se não estivesse com “ele”, que tudo o que os humanos buscam, seja dinheiro, sucesso profissional, poder e fama, bens materiais, momentos de diversão e lazer, saúde física e mental e tudo o mais, não passam de ilusões, de auto-enganos tediosos, de detalhes vazios e sem relevância, se não encontrarmos o verdadeiro amor que “vibre na alma e nos leve à infinitude universal”, segundo suas próprias palavras. Afirmou em continuidade que havia encontrado esse amor e que por nada deixaria de ir ao seu encontro durante a madrugada. Despediu-se ansiosamente sem que eu pudesse dizer uma única palavra em contrapartida. Na manhã seguinte, Rúbia foi encontrada “morta” às margens de uma pequena sanga a 4km da cidade.
Dois dias depois de sua morte, já sendo do meu conhecimento que todas as vítimas possuíam dois decisivos pontos em comum – estavam apaixonadas por supostas pessoas desconhecidas e haviam estado na biblioteca pública um ou dois dias antes – decidi realizar a esta uma visita. Era aproximadamente duas da tarde quando entrei nos amplos aposentos da mencionada biblioteca. Não sabia exatamente o que procurar, verificar no local, contudo, sabia que ali deveria existir algo fundamental para desvelar-se o mistério, se é que isso seria possível.
Comecei, então, a retirar vários livros das estantes, principalmente os de literatura, impulsionado principalmente por minha intuição, e a folheá-los na esperança de encontrar alguma pista. Durante mais de três horas, permaneci manuseando os livros, centenas deles, mas nada encontrei que pudesse me indicar qualquer referência às canhestras mortes. Ia quase desistindo, quando avistei um pequeno livro de capa marrom-dourada, um dos poucos de literatura que ainda não havia folheado. Retirei-o da estante. Seu título era O Conto Maldito, mas não havia o nome do autor, nem indicação de editora. Aliás, nada havia no livro fora o título e o texto, que, absurdamente, somente ocupava as três primeiras páginas, não obstante todo o livro apresentasse quase 200 páginas numeradas e em branco.
Ao contemplar aquele livro bizarro, principiei a sentir aquelas insólitas sensações que defini anteriormente. Eu o fitava, ainda sem ler o texto, e sentia que havia muito mais nele que simples papel quase todo ele em branco. Era uma sensação de extrema antigüidade, de conhecimentos vetustos há muito olvidados pela humanidade, de magias ancestrais. O livro possuía uma aura de febre emocional, de arcanos e segredos perturbadores. Tomado de exacerbadas intuições, imediatamente iniciei a ler seu exíguo conteúdo. O que li não revelo. Não somente seria impossível fazê-lo, como, se o fizesse, seria alguém perversamente irresponsável, visto que há pessoas, a absoluta maioria, acredito, que de forma alguma saberia conviver e suportar a intensidade sobrenatural de suas poucas linhas.
Declaro que solucionei o mistério das mortes sem causa. A paixão avassaladora que possui as vítimas advém da leitura de O Conto Maldito. Afirmo com tal segurança simplesmente pelo fato de que eu fui a última vítima do livro. Sim, instantaneamente, após a leitura da obra, fui vencido por um sentimento de paixão aniquiladora, contra a qual era impossível oferecer qualquer resistência. A diferença, creio, entre mim e os outros infelizes afetados pela leitura, foi que, embora apaixonado, mantive relativa consciência da situação. Sabia o que ocorria comigo, que caíra nas garras de uma insondável maldição, sendo eu um especialista em mistérios. Rapidamente, por minhas capacidades intuitivas, deduzi toda a questão das mortes, e logo a revelarei.
Antes, porém, creio que o leitor deseja saber por quem me apaixonei... Ora, por “ela”. Também devem estar se perguntando por que não estou morto. Simplesmente porque a maldição não mata, ao menos não de forma direta. O que ocorre é que as vítimas, ao sofrer a fatal influência do conto através de sua leitura, são automática e terrivelmente sugestionadas a ir ao encontro de uma grande paixão ignota que realizaria um encontro em determinado local afastado das regiões urbanas. Sei disso porque tudo se passou também comigo. Os indivíduos, cegamente apaixonados, realizam todos os atos inconscientemente, dirigindo-se aos locais sob a forma de alguma hipnose.
Mas agora surge a questão vital? Por que os corpos são encontrados mortos? Na verdade, não estão mortos, mas sofrendo de um extremo e inconcebível caso de catalepsia. Para que se realizem os encontros com suas “paixões”, sem jamais tomarem consciência do fato, os enamorados deixam seu corpo físico, há uma evasão de seus espíritos para dimensões astrais. Tudo o que relato é com absoluto conhecimento de causa, pois o vivenciei. Tal experiência, a ausência do espírito no organismo, pode delongar-se por muitos dias em absurdo estado cataléptico. Passado o tempo, os apaixonados retornariam aos seus corpos, caso estes ainda pudessem recebê-los. Em meu caso, permaneci nada menos que 7 dias no mundo astral, vivendo uma experiência simultaneamente sublime e terrível. Então, retornei ao meu corpo físico. Somente estou vivo pelo motivo de que, mantendo o conhecimento do que comigo ocorria, tive a formidável idéia de dirigir-me a um local muito afastado, em meio à cerrada mata, somente por mim conhecido. Ali, meu corpo permaneceu em segurança, ninguém o descobriu. Caso contrário, ter-me-iam julgado como morto (como já mencionei, os corpos não apresentavam nenhum sinal vital) e teria sido enterrado vivo, ou melhor, devido à ignorância do caso pelos médicos, visto que não era uma catalepsia normal, ter-me-iam assassinado sem saber durante as autópsias... Foi o que fizeram com as outras 13 vítimas...
Essa, portanto, é a maldição da morte sem causa... Devo esclarecer, com certa vergonha, que, fanático por mistérios, furtei o livro O Conto Maldito da biblioteca. Creio que, mesmo praticando um furto, na verdade realizei um ato de utilidade pública ao impedir a leitura de obra tão perigosa, responsável indiretamente pelas mortes daqueles incautos inocentes. Todavia, a história não acaba aqui. Pelo contrário, agora virá o mais extraordinário. Afinal, quererá o leitor, talvez, saber por quem, enfim, apaixonei-me.