Casarão abandonado
- Tem certeza que consegue fazer isso? - perguntou Edgar, a dúvida estampada em sua face.
- Claro. Vocês duvidam de mim? Vou mostrar a vocês do que sou capaz.
Flávio tinha dessas coisas. Era só alguém pôr em dúvida sua coragem, ele já ficava todo eufórico. Para ele, cada oportunidade de demonstrar sua coragem era como uma chance de debochar de todos. Sua fama de valentão era conhecida. Ele a merecia, depois dos três assaltantes que enfrentou sozinho e dos dois gatos do mato que havia matado só com uma faca.
- Isso é diferente, rapaz. Não pense que vai ser fácil. Se eu fosse você, nem tentava. - Edgar tentou persuadi-lo.
- São um bando de frouxos. Todos vocês. Vou lá, mato o bicho e trago a cabeça pra provar.
Era domingo à tardinha. O sol caía no horizonte, puxando o crepúsculo pelo outro lado. Flávio estava acompanhado de Edgar, que trouxe os dois filhos, Caio e André, e ficaram alguns minutos parados à frente do grande portão do casarão abandonado. O casarão ficava no fim da rua principal. Os velhos da cidade dizem que o último morador foi um médico vindo da cidade grande, há mais de vinte anos. Mesmo assim, morou só por alguns meses e desapareceu. Deve ter voltado pra cidade.
- Me contem de novo como foi. - questionou Flávio aos três à sua frente, aparentemente nervosos.
- Flávio, nem gosto de lembrar disso. É melhor irmos pra casa e aproveitar o resto do fim de semana. - falou André, sem muito entusiasmo. - Hoje tem jogo da seleção, e o que tem escondido aí pode esperar até amanhã, quando poderemos chamar a polícia. Tenho certeza que eles darão conta disso.
- Olha... não estou obrigando ninguém a ficar aqui. Se quiserem, podem ir todos assistir ao jogo. Depois que eu matar o bicho, vou até a casa de vocês pra mostrar a cabeça. Agora quero apenas que alguém me conte tudo o que aconteceu. Você, Caio... parece ser o menos frouxo... me conta como foi. - exclamou Flávio, irritado.
- Meu amigo, eu fui o único que não viu nada. Fiquei na porta esperando enquanto esses dois entravam. Maldita a hora que tivemos essa ideia. Só sei que chegamos por volta do meio dia, meu pai e o André entraram e eu fiquei na porta. Depois de uns vinte minutos, saíram quase me atropelando, gritando feito uns loucos.- a voz de Caio estava trêmula.
- Está no segundo andar. Primeira porta à esquerda, logo quando sobe a escada. - Edgar iniciou a explicação. - Não está trancada, ou pelo menos não estava. Não deu pra ver muita coisa, mas ouvimos um rosnar como se fosse um lobo grande. Pelo rosnado parecia que o bicho tava sentindo dor, e foi bastante alto. E teve um vulto. Grande como um cachorro daqueles dos filmes de terror. Aí saímos correndo. - E concluiu, bastante nervoso. - Só digo uma coisa: posso até ficar aqui fora esperando, mas não entro mais aí nem que me paguem. Aposto como o que está escondido aí é o responsável pelo sumiço dos animais.
Ao todo já haviam sido computados mais de sessenta animais desaparecidos misteriosamente. Entre gatos, cachorros, galinhas, cabras, ovelhas e até porcos. Sumiam sempre de quinze em quinze dias, mais ou menos, cada um. Alguns moradores da cidade falavam em ladrões, ou lobos, ou até mesmo um chupa-cabras. Há uns três anos havia sumido uma criança de sete anos, mas não foi associada aos animais desaparecidos, pois pelo que todos lembram, foi antes do primeiro animal sumir.
- Ok. Segundo andar, primeira porta à esquerda. Acho que não vou demorar muito. - Flávio parecia bastante calmo. Puxou uma faca de uns vinte centímetros que estava presa à calça, escondida pela camisa – Se tivermos sorte, ainda poderemos assistir ao segundo tempo do jogo.
Percorreram devagar a distância do portão da frente até a porta principal do casarão. Os três desejaram boa sorte e Flávio entrou sorrateiramente. Lá fora, o sol já havia praticamente sumido. Alguns fachos de luz insistiam em entrar na casa, pelos vidros de algumas janelas quebradas e por outras frestas na madeira apodrecida das paredes. A escada ficava há poucos metros da porta de entrada. Iniciou a subida apertando fortemente o cabo da faca. Os degraus rangiam como portas velhas se abrindo. Limpou o suor da testa com a camisa. Não poderia demorar muito, pois logo tudo ficaria escuro. A primeira porta à esquerda estava entreaberta. Empurrou devagar e praguejou em pensamento pelo barulho do ranger. O quarto estava quase totalmente escuro. Conseguiu identificar uma cômoda no canto direito e uma cama do lado esquerdo. A única iluminação vinha da janela que ficava à frente da porta de entrada do quarto, e mesmo assim era de um sol quase todo escondido. Procurou por algo estranho, mas nada encontrou. Abaixou-se e buscou debaixo da cama, mas nada havia lá. Foi quando avistou. Num dos cantos do quarto, mais ou menos há uns dois metros de altura, havia um rosto muito pálido, quase brilhando no escuro e, por mais estranho que fosse, parecia estar de cabeça para baixo. Os olhos arregalados, encarando o infinito, e a boca entreaberta. O coração de Flávio disparou. Não sabia bem o que fazer. Esperava encontrar um animal, e não aquilo. Nem sabia bem o que era. Tomou coragem, acalmou-se e começou a se aproximar. Quando estava a uns dois passos, aquilo inclinou e esticou os braços pra frente vigorosamente. Flávio sentiu quando as fortes garras atravessaram seu peito e o puxaram. Dentes pontiagudos como adagas rasgaram seu pescoço. Por alguns instantes, gritou e golpeou o ar com a faca, em espasmos desesperados. Estava suspenso no ar, as roupas encharcadas de sangue. O quarto estaria em silêncio, não fosse o barulho da carne sendo mastigada e dilacerada.
- Eu sabia que ia dar certo.- Falou André, entrando calmamente no quarto, segurando um lampião aceso.
- Esse cabeça dura era realmente corajoso. Tão corajoso que chegava a ser burro. Agora teremos um descanso de uns dois meses. - Caio completou, aproximando-se do corpo de Flávio quase todo devorado.
- Pois é, pelo menos essa coragem toda serviu pra alguma coisa. E agora poderemos passar uns dias sem trazer animais para seu irmão. Só espero que ninguém sinta falta do Flávio... seria complicado ter que explicar isso. - finalizou Edgar, afagando a cabeça da criatura.
E os três sentaram perto do monstrinho, que tinha a aparência de uma criança de uns dez anos, e que se banqueteava com a carne de Flávio.