Fragmento Absurdo de um Existência Futura n°4 – A Cabeça no Meio da Rua
Mais um maldito ano insuportável. 2047. Secas, furacões, enchentes e terremotos pela frente. E o diabo! E, não sei por que, venho me irritando demais com essa alteração na cor dos céus. Não é mais aquele azul celeste reconfortante, mas uma tonalidade modificada, algo opaco, desbotado, amarelecido. Não sei se alguém mais percebe. Mas eu poderia jurar que, há alguns meses, além da opacidade, os céus passaram a apresentar, uma tonalidade avermelhada que tem me inquietado profundamente.
Será mesmo que somente eu percebo essa merda? Talvez eu esteja com alguma doença nervosa, psíquica. Sim, eu devo estar doente da cabeça. E talvez seja melhor assim, para sobreviver neste caos fodido. Tenho certeza, aliás. Também não me importo com qual doença pode estar me afetando. Que diferença faria? Nunca me senti bem mesmo. Em nenhum sentido. É possível que se trate de uma nova enfermidade, afinal, nos últimos anos, surgiram tantas moléstias desconhecidas, pestes incontroláveis, algumas de uma fatalidade brutal. Eu seria só mais um entre milhões de desgraçados. Grande bosta! Mutações de vírus e bactérias. O homem virou especialista em criar pragas. Tudo isso fruto da grandiosidade da ciência e da destruição da biodiversidade. Mas o pior é que ainda há imbecis que acham a ciência o máximo. E que estamos evoluindo. Ah, que se fodam, essa gente nunca terá jeito mesmo.
O que sei é que há alguns meses, percebi, ou julguei perceber, uma sutil alteração na coloração do céu, que estaria sendo “invadido” por uma espécie de “avermelhamento”. Talvez sejam alucinações. O sintoma de alguma enfermidade? Não sei, sei que essa quase imperceptível tonalidade rubra, seja ela real ou fictícia, atrai-me de um modo insano, irresistível.
Todos os dias, sem variações, sinto-me “obrigado” a sair durante o momento do ápice do sol, ou seja, ao meio-dia, não importando as condições climáticas. Saio até abaixo de chuva. Caminho em direção a um campo aberto e desabitado, sento-me sobre a grama, olho para o céu, e fico contemplando, não sei por qual merda de motivo, durante quase uma hora, aquilo que julgo ser uma invasão lenta, insidiosa, do céu azul por uma tonalidade vermelha estranha, muito estranha. Nos primeiros dias, sentia-me bem após o fim da minha contemplação imbecil, embora continuasse melancólico. Porém, com o passar do tempo, essa melancolia foi se transformando em depressão, em um desalento total, em um desânimo tão profundo que havia dias que eu não conseguia nem mesmo erguer a cabeça ao retornar para casa. Perambulava como um idiota deprimido pelas ruas, eu não passava de um estúpido zumbi. Olhava para as outras pessoas, todas infelizes, desesperadas, imersas em problemas sem solução. Ou então, estavam ali escancarando um sorriso abestalhado entre a inexpressão e a perversidade. Enquanto eu ficava ainda mais deprimido.
Ao chegar em casa, eu me atirava sem forças na cama, sem comer, sem tomar banho, um verdadeiro palerma. Enfim, sem fazer porra de merda nenhuma, dormia até a manhã do outro dia, sendo torturado durante todo o período de sono por pesadelos com os seres mais absurdos. Sonhava com monstros de aparência indescritível e de uma maldade extrema. Os cenários de meus pesadelos eram os piores possíveis, e eu até os descreveria se tivesse um pouco da genialidade de Dante.
Ao me acordar, quase sempre por volta das 9h, a depressão parecia ter passado, e eu me levantava, comia alguma coisa malfeita, quase sempre horrível, dava uma cagada, realizava uma higiene pessoal ridícula e pensava em ir para a merda do meu trabalho. Mas não tinha forças. Então, sentava-me, aguardando ansioso, angustiado, o momento de sair para a contemplação absurda dos céus que se avermelhavam, conforme meu julgamento de louco. Quando chegava o meio-dia, eu ia pra aquele campo e lá permanecia, por períodos de tempo cada vez maiores. Até que deixava apalermado o local, às vezes debaixo de chuva ácida. Era como se eu arrastasse um maldito manto de chumbo, tamanho era meu desânimo. Chegava em casa e jogava-me demolido em meu sono fodido e atormentado. O calor era tão desgraçado que eu às vezes acordava banhado em suor e tapado de mosquitos, mesmo mantendo o ventilador ligado toda a noite.
Essa era minha merda de vida, somente isso, durante vários meses. Mas minha depressão foi diminuindo, diminuindo, até que em seu lugar surgiu aos poucos uma absoluta indiferença por tudo e por todos. Em nenhum momento, no entanto, eu deixava, sempre por volta do meio dia, de ir contemplar as colorações avermelhadas do céu, sempre no mesmo campo fedorento. Não que fosse somente naquele campo que eu percebia a invasão vermelha nas atmosferas, isso ocorria em todo o céu, de acordo, e insisto nisso, com meu julgamento perturbado. Porém, e realmente não sei o motivo, eu tinha que observar a maldição daquele fenômeno unicamente de lá.
Mas agora eu saía do campo sentindo uma cruel indiferença que me fazia vagar o dia inteiro pelo chiqueiro da minha cidade, naquele degradante calor dos infernos, alimentando um desejo doentio de desprezar e rir de todas as merdas de pessoas que cruzavam o meu caminho. Eu olhava pra aqueles miseráveis fodidos, aqueles babacas mergulhados na lama com uma frieza total e com e uma ironia maligna. Aqueles debilóides, homens e mulheres que não valiam nem o que cagavam, imundícias, todos inúteis, degenerados e perdidos.
Não sentia nenhuma porra de piedade, nenhuma. Só sentia, por exemplo, vontade de rir quando via aqueles refugiados ambientais bebendo as águas podres, onde boiavam bostas, de um rio imundo, ou vendo que disputavam com urubus e cachorros pesteados os restos apodrecidos de comida dos montes de lixo. Nem mesmo as crianças que eram espancadas com violência por outras crianças, ou as mulheres que eram estupradas nos canteiros das praças fedendo a esperma despertavam em mim algum tipo de clemência. Que sangrassem todos no inferno, para mim não faria a menor diferença.
Dessa forma degenerada e estúpida vivi por mais alguns meses. Ia para casa, comia como um porco, às vezes nem tomava banho, e voltava para as ruas escaldantes, com o único propósito de debochar, de escarnecer com crueldade, e de sacanear todos os malditos que via diante de mim. E claro, quando se aproximava do meio-dia, sem me ausentar uma única vez, lá estava eu , naquele campo torrado, contemplando em estado de transe, abobalhado, aqueles nuances avermelhados, enfermiços, que só eu percebia. E parecia que era aquela luz vermelha que me deixava mais enlouquecido, mais monstruoso, mais demoníaco.
Havia algo inexplicável naquelas luminosidades opacas e rubras que me atraía de uma maneira fatal. E fazia ferver no que eu sentia e pensava uma maldade latente, resumo de todo o horror humano, a plenitude do lado negro que se ocultava dentro do meu eu miserável. Assim como a atmosfera da minha cidade acabada fervia de calor eu também fervia de perversidade.
E seja lá o que for que ocasiona toda essa merda, estou certo de que é algo catastrófico. Isso eu afirmo porque, desde ontem, dois de janeiro de 2047, tenho percebido uma alteração, para pior, em meu comportamento. Percebido e comprovado. Estou há mais de 72h sem dormir. Não sinto nenhuma porra de sono. Minhas horas de sono foram se reduzindo aos poucos atei que cessei definitivamente de dormir.
Mas jamais deixo de ir ao campo contemplar em estado de êxtase maligno aquela agourenta luz avermelhada. Hoje, após sair do campo, fui tomado de um acesso de loucura. Peguei uma pedra enorme que encontrei na rua e esmaguei sem dó os crânios de uma criança e de sua mãe, só porque escutei que a mãe falava para a menina em “manter a esperança” enquanto comiam as tripas de um gato.
Após ter esmagado a cabeça das duas, voltei para casa e tornei-me consciente do que fiz. Compreendi que fora um horror sem limite e sem perdão. Mas não consegui sentir nenhuma merda de arrependimento. Minha vida é mesmo um desastre, a vida de todos é um desastre, a civilização é um desastre, que diferença fará ou deixará de fazer o que fiz?
E agora, não faz nem 10 minutos que, lá fora, na frente da minha casa, um idiota raquítico, estava vomitando. Senti um ódio diabólico esquentando, subindo e fervendo dentro de mim e não pude, e nem quis, controlá-lo. Muito pelo contrário, gosto de ser um doente, um louco e de matar humanos que pensam que estão vivos. Matar é um favor que faço às suas almas fodidas. Saí de casa e gritei:
- Seu cusco imundo, sarnento filha de uma puta, imundiciando minha calçada com o fedor do teu vômito azedo. Este machado vai te ensinar uma coisa pra nunca mais esquecer. Vou cortar em pedacinhos e fazer guisado da tua carne aidética.
A cabeça dele ainda está pingando sangue no meio da rua.
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