A Fome do Fogo - DTRL

Vírus, desconhecido até o momento, espalha-se rapidamente e mata milhares de pessoas em todo o mundo. (Jornal da Tarde, Curitiba, p. 1E, Quarta-feira, 11 jun. 2014).

Como um palito de fósforo, a chama começa pela cabeça, num chiado explosivo do clorato de potássio incinerando, a bola de fogo se forma, tomando as trevas para si, engolindo a escuridão e transformando o gelo em água, limpa, escorrendo por entre os dedos. O calor toma conta do espaço enquanto a chama desce a haste do palito, forte, vigorosa, suave estala a madeira e a consome, a possuí, a devora. E quando o fogo se apaga, tudo volta a ser trevas, envolto a uma fumaça densa... E o palito, seco, fraco, carbonizado, enverga para seu fim, às vezes a brasa perdura, e incêndios são inevitáveis, mas na maioria das vezes... O carvão se torna cinzas e é levado pelo vento.

Riscou mais um palito, o calor do fogo pode hipnotizar até mesmo os desatentos. O relógio sobre o móvel marcava as horas erradas há alguns dias... Parava e voltava a trabalhar, seu tic-tac era vez ou outra interrompido por mais uma sentença de morte.

Um passo, um degrau, um segundo, um suspiro, algumas batidas no coração e a certeza absoluta que trazia um gosto azedo do medo em sua boca.

Todos os dias as pessoas se movem seus corpos pelas calçadas de pedras cuidadosamente enfileiradas, pelo asfalto sólido, pelas estradas de terra, desviam dos carros, embarcam e desembarcam dos ônibus, observam os outros fazerem o mesmo... Desistindo de seus SONHOS... Se apagando.

As mãos tremiam, mais um degrau acima, prendendo a respiração, lá fora o dia parece normal. Vento nas folhas, céu azul. Cheiro de algo queimando e um silêncio atormentador. O relógio parou mais uma vez.

Vício em rotina e o pior de todos. A vida nos arrebata e leva consigo os sabores de viver. E o que resta? Olhos sem fulgor. Voltando para o horizonte limitado que nos é apresentado, não se vê nada além de grades e medo. Sobreviver já não satisfaz.

Não. Hoje não vou acordar.

Mais um degrau, garganta seca, a torneira pinga incessantemente, derrama sobre uma esponja encharcada. Um vírus, disseram. Sabia que a natureza ia achar uma forma de se livrar da doença em que nos transformamos. Ponto final ao sonho da humanidade, como pode o homem ser tão vulnerável? LIMITADO. Somos mesmo uma doença. O último palito riscado.

As 11h30min o tempo parou pela primeira vez no mundo. Podia ser um dia como qualquer outro, mas não era! Digam oi ao vírus.

O homem de terno e gravata portando uma pasta preta olhava no relógio de pulso - provavelmente muito caro - e apertava o passo para alcançar os ponteiros miúdos. A criança corria sorridente ao ver os pombos no calçadão da rua XV. O mendigo desenganado permanecia com as mãos estendidas na esperança que lhe caíssem moedas - mesmo que de baixo valor - o cachorro comia as sobras deixadas sob o banco de madeira. A mulher procurava cuidadosamente onde pisar com seu salto agulha. Todos distantes, absortos em seus pensamentos, afazeres, horários... Suas vidas. São zumbis, escravos, arrastando suas correntes pelas calçadas todos os dias... Por seus salários... Míseras ESMOLAS.

Um filete de fumaça branca saiu pela sua boca aberta, seguido de um grito agonizante, seus olhos estalados expressava o desespero, imóvel, punhos cerrados... Caiu ao chão como se estivesse tendo um ataque.

As primeiras labaredas azuladas rompiam seu abdômen, e antes que alguém esboçasse alguma reação, uma explosão forte, vigorosa, liberou uma bola de fogo de um azul intenso que permaneceu dançando ao vento suave, ganhando a proporção de metros de altura, consumindo o corpo inerte. A gordura corporal chiava fritando a carne escura e... Ainda estava vivo. Pessoas atônitas apenas observavam boquiabertas, sem entender ou sem terem o direito de se manifestarem.

O fogo tem o poder de destruir quase tudo que toca, não é diferente com a carne humana. Em alguns segundos o homem era apenas CINZAS levadas pelo vento. Restando somente os sapatos caros ainda calçados nos pés intactos e uma fumaça rala que exalava dos restos mortais imóveis.

Sorriu. Mais um degrau. Realmente tinha achado a cena linda, o fogo é tão atraente que mal podia respirar. Levantando os braços agora podia alcançar a corda pendurada. Estava demasiadamente perto que a incerteza batia em sua face, podia ouvir o tic-tac. Estava a salvo... AINDA.

Cinzas rolavam pelas pedras, sob o corpo um papel enegrecido carregava letras disformes pelo chão sujo. Era tão absurdo que nem parecia real, as pessoas ali presentes permaneceram estagnadas por algum tempo sorvendo a imundice da situação e as respostas para a própria existência quando ocorreu pela segunda vez... E a criança nos braços da mãe tornou-se uma bola incandescente.

Mais um passo. Último degrau, a escada rangia. Pernas vacilavam. Alcançou a corda pendurada, era áspera. A friccionou na palma da mão macia até sangrar. Sorriu, nunca mais sentiria dor.

Depois do ocorrido naquele dia o pânico se espalhou como faíscas na pólvora, então percebeu que era o começo do fim, em todos os cantos do mundo pessoas entravam em combustão e em menos de um minuto eram transformadas em cinzas e às vezes membros descontextualizados.

Não havia respostas para tantas perguntas, disseram que se tratava de um vírus desconhecido que se disseminava no ar, ainda sem cura... Pior, NÃO disseram nada.

Talvez ganhasse uma promoção esse mês, compraria uma casa longe daquele bairro perigoso, casaria, teria um filho... Estava decidido! Colocaria um fim nisso tudo antes que esse mal lhe abatesse. O medo falava mais alto e as esperanças se foram depois da comida e da água. A torneira não pingava há mais de um mês. Garganta seca.

Envolta no pescoço certificou-se de que a corda estava firme. A hora É essa. O relógio. A sede. O emprego. O fogo. As pessoas. O silêncio. A dor. O cachorro. Faculdade, casa, filhos, mãe, pai, irmãos, vizinhos, amor... Um rio em curso... calmo, a imensidão do mar e as folhas caindo no inverno.

Pulou em direção ao seu FIM.

Os olhos fixados no relógio, ponteiros parados e a sensação de ter engolido o sol. Teria alguns segundos antes da corda lhe sufocar, segundos suficientes para que as chamas consumissem seu corpo.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 05/09/2013
Reeditado em 06/09/2013
Código do texto: T4468883
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