A Última Visita - DTRL 11

“ - Você não precisa ter medo. Disse mamãe. Mas ela não entendia, não mesmo.

Eu não queria ir. Tinha outras coisas para fazer.

Os tempos modernos servem de prova: Nas quatro últimas décadas, a rotina de um garoto de treze anos pode ser muito movimentada. Carregada de atividades para se realizar.

Sim, eu tinha apenas treze anos quando aconteceu pela última vez. Mas ainda lembro. Lembro.

Deve ser por que foi a última. Afinal todas as outras vezes, caíram no esquecimento. Mas a última eu ainda lembro. Lembro.

- Eu não tenho medo mãe... Apenas não quero ir.

- Mas essa pode ser a última vez! Você vai ir mocinho, vamos, se apronte!

De mal gosto, vesti-me. Escolhi uma roupa qualquer.

Depois, lembro-me de ter sentado na cama e ficado por alguns minutos encarando a parede.

Fitava o azul de meu quarto. E as lembranças da última vez que havia ido visitar meu avô explodiam em minha cabeça.

Horrível...

O lugar velho, assim como seus moradores. Mas a velhice espalhada por todos os cantos não era o pior. O que realmente me incomodava era o cheiro. Um cheiro tão forte que eu não entendia como as pessoas conseguiam viver ali.

Nas vezes que fui lá, já não lembro quantas, cheguei a ter a impressão de que estava louco, que o cheiro não existia.

O cheiro... Sim, o cheiro. Uma lembrança não visual, mas tão viva quanto os filmes que assisti em toda minha vida.

Hoje quando lembro, meu estomago dói.

Urina, fezes, remédio...

Um azedo ácido, putrefação da carne.

Era horrível, sim, como era.

- Tá pronto?

- Sim.

Levantei e fui até o carro.

Durante a viagem, sonhei acordado. Pesadelo horrível. Uma sequência de lembranças que eu só tomava conta da existência dela, quando chegava o dia de ir visitar meu avô. Em outros momentos, essa memória ficava escondida.

Meu avô. Ainda não falei de meu avô. Mas também preciso comentar das macabras memórias, certo?

Ah... Minha cabeça já não é como antes. Às vezes eu simplesmente esqueço. Ou então fico repetindo as coisas.

Meu avô, certo... Não falei de meu avô.

Na época ele estava em um asilo. O único asilo de minha cidade. O local ainda está de pé. Seu nome é São Camilo, um dos prédios mais antigos de região.

Meu avô foi pra lá, por que segundo meio pai “O véio estava muito louco.” Mas minha mãe falou que o que havia acontecido com seu pai, era que ele precisava de um cuidado maior, pois como minha mãe trabalhava e minha avó já falecida; meu avô acabou ficando sozinho.

Nossa! Escrever isso soou tão confuso quanto minha própria situação nesse momento.

Hoje tenho cinquenta e sete anos. Mas as vezes sinto que tenho cem.

Bom, deixe eu continuar...

Às vezes eu me esqueço das coisas, já outras vezes, fico apenas repetindo. É muito chato, na verdade isso dói. Sempre que lembro, que noto que não estou dominando minhas ações, eu choro.

Choro, sempre que lembro que esqueci.

Por sorte meu médico encontrou uma solução para esse problema. Disse que eu poderia escrever. Escrever e nunca esquecer, assim fiz.

Devo ter escrito pelo menos umas 800 páginas desde então. E hoje cedo, antes de pegar o caderno para escrever, vi no calendário uma data que travou meus pensamentos.

Isso sempre acontece, ano após anos. Datas que costumamos esquecer.

Dia treze de agosto. O dia da última visita.

O problema é que sou bom com datas. Sempre sofro por isso.

Lembro de todos os dias que tiveram algum tipo de peso em minha vida. Os tristes e os alegres, mas principalmente os tristes.

Dia quinze de Novembro eu entrei para universidade. Quatro de Janeiro, casei. Vinte e seis de Junho nasceu meu filho. Dez de Abril morreu minha mãe e trinta de Dezembro meu pai.

Encarei o calendário e lembrei de tudo.

Lembrei e reconheci que ainda não havia escrito sobre aquilo. E assim propus a mim mesmo um desafio.

"Vou escrever sobre a última visita."

Seria bom treinar minha memória e de certa forma reviver algo que ocorreu a mais de 40 anos atrás.

E assim faço:

- Chegamos. Disse minha mamãe. E nesse momento os pesadelos que dominavam meu consciente se desmancharam. A realidade entrou em choque.

Eu estava ali, em frente ao velho prédio e ao descer do carro tive a impressão de que não demoraria muito para sentir o cheiro.

Caminhamos juntos. Eu, minha mãe e papai.

Meu pai estava sério. Ele também não queria estar ali. Mas era preciso, era destino. Pois aquela foi a última visita.

Subimos as escadas, percorremos a recepção. Eu passei a respirar pela boca. Meu coração disparou.

Dentro do asilo algo estranho acontecia comigo. Como se o mundo ficasse em câmera lenta.

Eu não avançava com minhas próprias forças. Apenas seguia, lentamente de forma inconsciente, como se fizesse parte de algo maior.

E então meus pais se distanciavam. Ficavam passos a frentes. E eu, sozinho no corredor, com passos lerdos e uma curiosidade que não era minha. Assim era o pesadelo.

Meu avô ficava no quarto dezenove e até chegar lá eu via muita coisa. Mergulhava em um mundo onde a vida e a morte são tão próximas que já não existe mais o medo.

Mas eu não fazia parte daquele lugar. e não devia sentir aqueles sentimentos.

Treze anos!

Não mesmo! Aquele não era um lugar para mim.

Lembro, sim eu lembro! A última visita foi a pior! A mais medonha! Cruel!

Eu deveria ter ficado triste... ter chorado. Mas o que senti foi apenas medo, nada mais que isso. É claro que depois, quando realmente entendi, quando deixei de ser apenas uma criança. Eu fiquei triste. Mas não me culpo, e hoje quando lembro, entendo minha situação.

Treze anos! Apenas treze anos.

Olhei para um dos lados. Uma porta aberta chamou minha atenção.

Vi lá dentro uma senhora. Tinha por volta dos 80. Estava sentada em um cadeira branca, enferrujada. Sentada.

Seus olhos fechados e braços cruzados em cima das pernas. A pele branca, enrugada, carregada de pequenos buracos que disputavam espaço entre alguns pelos.

Enquanto isso, uma enfermeira a qual eu não conseguia ver seu rosto, banhava a velha. A cena, que é comum em lugares como esse, despertou em mim uma sensação de nojo. Era horrível demais. Os movimentos fúnebres.

A enfermeira molhava a pequena esponja no balde e depois a levava até acima da cabeça da idosa. Lá, ela apertava a esponja e aguá começava a escorrer pelo frágil corpo castigado pela ação do tempo.

Em minha memória a aguá é amarela e parece invadir todos os poros da velha senhora. Como se ela estivesse vazia e aos poucos, a enfermeira lhe enchesse. Achando que a aguá lhe traria de volta. Isso mesmo, eu não lembro de ter visto a velha respirando. Sei que a ideia dela estar morta durante o banho é ridícula. Mas me parece que foi exatamente isso que aconteceu.

Avancei mais três passos e bum! A visão sumiu e lá estava eu encarando as paredes do corredor. Mas ainda assim conseguia ouvir o barulho da enfermeira molhando a esponja no balde, e da água podre escorrendo pelo corpo da velha.

Calafrio e mais passos lerdos. Eu não parava, seguia a caminho do quarto dezenove.

Olhei para frente para encontrar meu pais, mas antes deles, um homem andava em minha direção. Um velho.

Era tão lento quanto eu. Vinha apoiado em um cumprido ferro, que no seu topo tinha ligado um bomba cheia de um estranho liquido. Esse foi meu entendimento na época. Sim, eu era apenas uma criança.

Passou por mim e sorrindo sussurrou:

- Hey...

Não respondi a saudação. O velho também estava morto.

Quando ele já havia ficado para trás. Fitei o chão e ali vi um estranho rastro. O rastro do apodrecimento. Urina da libertação.

Virei minha cabeça e confirmei a terrível suposição. Pelas pernas do idoso um liquido escuro escorria e reforçava ainda mais o cheiro do corredor.

Respirar com a boca já não adiantava, era como comer tudo aquilo.

O estomago embrulhou, senti a ânsia. Mas não vomitei. Eu estava vazio.

Mais passos e a luz foi se enfraquecendo. De repente minha mãe estava segurando minha mão e juntos entramos no quarto com o nº 19 talhado na porta.

Foi meu pai quem abriu a porta, mas a princípio ele ficou do lado de fora.

Meu avô estava deitado em um cama. Todo o quarto parecia ser verde, até mesmo meu avô parecia ser verde.

Lembro-me que minha mãe seguiu em direção à ele e lhe beijou. O velho nem se mexeu. Dormia. Naquele momento ele dormia.

Depois, empurrado pelo meu pai que agora já estava do lado de dentro. Fui levado até a cama e obrigado a beijar a bochecha murcha daquele velho que diziam ser meu avô. Obrigado e pegar em sua esquelética mão, sentir o seu cheiro.

- Diga que lhe ama Augusto. Falou minha mãe enquanto lágrimas escorriam de seus olhos.

Eu amava meu avô. Mas não aquele. Aquele não era ele, não mesmo.

Fiquei quieto, não conseguia abrir a boca.

O quarto ficou silencioso, exceto por um bip, insistente, mas calmo.

Bip... Bip... Bip...

- Diga que lhe ama... Ele gosta tanto de você.

Bip... Bip... Bip...

Meu pai pegou na mão de meu avô e depois saiu do quarto.

Minha mãe continuava chorando.

- Pode ser a qualquer momento Augusto... Você não lembra o que a mãe lhe disse a última vez que viemos aqui?

Eu não lembrava. Aquela era a última vez.

Bip... Bip... Bip...

- O médico disse que ele pode ir a qualquer momento.

Bip... Bip... Bip...

- Vamos embora mamãe. Foi a primeira vez que abri a boca.

Ela continuou chorando. Eu sai do quarto. Sai dali e fiquei encostado na parede do lado de fora.

Meu pai chegou, se agachou e olhou no fundo de meus olhos.

- Não fique triste, está tudo bem.

Atrás de meu pai, no quarto da frente, um estranho velho sorria para mim. Ele não tinham dentes, nenhum.

Sussurrei:

- To com medo pai...

Bip... Bip... Bip...

- Não importa mais filho...

Bip... Bip... Bip...

- Agora já acabou. Ele concluiu enquanto se afastamos do quarto.

Entramos no carro e minha mãe ainda demorou pelo menos uns dez minutos.

Nunca mais voltei aquele lugar. Nunca mais vi aquele que diziam ser o avô feliz e divertido que tive por alguns anos. Nunca mais ouvi o Bip.

O mais engraçado nessa estória toda. Foi que ontem tive um sonho. Um sonho que a princípio não parece ter relação nenhuma com minha narrativa. Mas fundo entendo, que a vida é um enorme quebra-cabeças.

No sonho, lá estava eu sentado em frente à TV. E então meu filho Renato chegava. Renato que a anos não me visita.

Ele entrava em minha casa acompanhado de mais dois homens. Homens grandes, sem rostos.

Renato me encarava e dizia:

- Você não precisa ter medo.

Então ficava branco e graças a Deus, eu acordava.

Mas foi só um sonho, só isso.”

Renato chorou ao terminar de ler. O texto, escrito a lápis e com uma letra torta e desajeitada, era o último escrito de seu pai. A narrativa tinha título de “A Última Visita”.

"Ninguém escapa disso tudo, desse maldito fim! Não mesmo!" Pensou Renato, enquanto guardava todos os textos de Augusto. Textos que estavam espalhados por todos os lugares do quarto.

Terminou seu trabalho e saiu do Asilo. Não acreditava que durante os oito anos que seu pai vivera ali; devido aos problemas de perca de memória e coordenação motora; ele o visitara apenas seis vezes.

Seis vezes, sendo a última visita, a mais difícil de todas.

Entrou no carro e aos poucos se afastou de São Camilo.

Mas a roda não para e no fim, todos somos iguais.

***

Texto simples que escrevi para participar dessa edição. Espero que tenham gostado. Um abraço e obrigado.

Mr Belzebu
Enviado por Mr Belzebu em 05/09/2013
Reeditado em 30/06/2016
Código do texto: T4467460
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