Noite Bizarra (Pesadelos Reais)

Era noite de terça-feira, vermelha e anunciadora de um calor sufocante. Havia me mudado para um residencial afastado do centro, longe das multidões e delírios dos mais afortunados. Fugi da loucura que crescia à custa do progresso, afastei-me da poluição pútrida desses egos inflados. Certamente também me escondia de possíveis paixões contaminadoras que certamente me levariam para o caixão ou arrancariam parte considerável de meu ser acabando com minha essência. Queria proteção contra essa humanidade perdida e afogada no terror de suas próprias mentes. Olhava pela janela e percebia a calmaria de uma avenida morta por onde poucos automóveis trafegavam. Era a lúgubre paz que tanto desejava, se não fosse a aterradora inquietação que me acometera.

Tinha registrado, durante minha curta existência, consideráveis situações que fugiam à compreensão humana. Eram de nenhuma credibilidade, mas essencialmente vívidas e carregadas de detalhes. Inicialmente me excitavam, faziam-me crer em mundos fantásticos de acontecimentos incrivelmente bizarros, instigadores, curiosos com um fundo fantasmagórico e ao mesmo tempo melancólico. Situações imprevisíveis que me chocavam de tal forma que dificultava qualquer descrição sóbria e realista. Ficavam fantasiados em minha mente esperando o próximo fato. Por vezes percebia que estava criando um monstro na minha imaginação, e a qualquer momento escaparia espalhando o caos por essa terra. Nem preciso dizer que já vi mortos levantando de seus túmulos para reivindicar o que de direito lhes pertenciam. Situações triviais, apenas citadas como exemplo para ilustrar o que quero dizer. Numa escala de pavor e aversão havia uma centena de outros acontecimentos de graus diversos que a literatura por enquanto ainda não registrou – se o fez, não foi com tamanho realismo inerente aos que presenciei. Também não preciso dizer que minha vida mudou completamente depois que fui amaldiçoado com a capacidade de atrair o estranho e surreal. Três casamentos desfeitos e alguns relacionamentos fracassados completam a lista. Era sufocante conviver com um homem contaminado pelo sobrenatural. Olhava para as minhas ex-esposas, mas ao invés de ver seus belos rostos, contemplava apenas os monstros que viviam sob suas sombras. Minha casa era a terra de estranhos fantasmas que desfilavam pelos cômodos em busca de um fio de luz. Com o passar do tempo ficou cansativo ser diferente. Mesmo vivenciando o ineditismo de horrores, minhas experiências ficaram monótonas. Isso foi apenas mais um motivo para me mudar.

Olhava para aquele céu negro de cortinas vermelhas esperando a chuva que há dias não chegava. A terra estava tão seca que mal se podia pisar nela sem rachá-la. Vislumbrei aquele imenso terreno vazio onde provavelmente seriam construídas novas casas. De lá vinha aquele vento úmido que nasce dos pântanos que cercavam o cemitério da cidade. Somente eu sabia que era a noite da lamentação dos mortos, o momento de arrependimento dos fantasmas. Era dia de vingança para aqueles que foram mortos de forma covarde. Sabia que dentro de algumas horas uma fila de espectros cruzaria aquela faixa verde para ocupar o vazio deixado pelos vivos. Em noites assim sempre tinha um suicida, mas não era a minha preocupação tentar adivinhar quem era. O que me preocupava naquele momento era a estranha inquietação. Geralmente estamos nesse estado por conta de demasiada ansiedade em decorrência de um acontecimento imprevisto. Mas que acontecimento era esse? Que mistério nascia ao meu redor esperando o melhor momento para me atormentar? O que de tão extraordinário e inédito poderia me provocar um temor ainda não sentido, mesmo depois de tudo que já vi?

Estava sozinho. Não conseguia dormir por causa daquela incerteza. Escutava o som dos ponteiros do relógio que soavam como machadadas no meu corpo. Até os fantasmas me deixaram. Certamente encontraram outra companhia. De repente fiquei tão desinteressante que nem os mortos queriam a minha presença. Seria essa a explicação? A normalidade fria e sem graça que me inquietava naquela noite? De fato vivi momentos de sobriedade debaixo daquele novo teto. Confesso que não foram dias felizes, talvez, por causa da solidão que parecia mais acentuada. Até mesmo o frio, o companheiro de muitas horas, não me causava qualquer sensação. Perdeu lugar para as batidas descompassadas deste coração que teima em bater. Estava tudo em seu lugar. Os quadros dispostos de forma sensata, os poucos objetos sobre a cômoda, minha sandália ao pé da cama. Sentia falta do rio de almas que corria pelo asfalto no mês de abril, em ondas melancólicas e ao som de músicas fúnebres, dos monstros que visitavam as virgens em julho e da batalha de mortos que lutaram nas duas grandes guerras, num combate interminável e sangrento. Com o passar do tempo participava menos das loucuras da noite, das bizarrices insanas dos vivos. Já observava traços de um homem politicamente correto, um cético burocrata que seguia a corrente dos autômatos. Talvez seja esse o motivo da minha estupefação. Estaria me rendendo, ou me prendendo, ao mundo real, deixando de lado o que de mágico e verdadeiro existia atrás das sombras.

Pensei que era uma ilusão aquela sombra que cruzou a janela de meu quarto. Levantei-me tão depressa que acabei tropeçando nas próprias pernas. Minha garganta estava terrivelmente seca, talvez, por causa do ar-condicionado. De fato não estava acostumado. Queria mais frio, mas o que ganhei de verdade foram problemas respiratórios. Fui à cozinha para tomar um copo d’água. Fitei as paredes em busca de buracos negros de onde saiam criaturas macabras, mas o que via era apenas uma superfície sólida e coberta de tinta. As sombras vinham dos poucos móveis de minha casa: uma escrivaninha, a velha cômoda e duas cadeiras. A mesa estava na parte mais escura da cozinha. Odiava-a por não produzir sombra alguma. Se fosse um ser vivo, seria desprezado incondicionalmente. Não havia vermes rastejando pelo chão e nem restos de espectros flutuando pelo ar. Assustei-me com aquele som, terrível e agudo que veio da porta. Tropecei mais uma vez na cadeira antes de tombar. Parecia que alguém, ou alguma coisa, estava arranhando-a. Fiquei aturdido, pois sabia que nenhuma criatura tinha esse hábito. Havia monstros vivendo nos telhados, outras criaturas que gostavam de cômodos vazios, porém nenhum deles gostava de pregar peças, se era essa a intenção. Justamente esse fato novo me deixava ainda mais aterrorizado. Aproximei-me lentamente e toquei a maçaneta, sentindo o gelo a paralisar a minha mão. O ruído que vinha do outro lado se assemelhava a uma unha roçando o metal, aumentando de intensidade de forma gradativa. Meu coração estava terrivelmente acelerado. Queria fugir do peito. De repente ouvi um grito abrupto, de mulher, tão desesperador que me fez recuar. A maçaneta estava tremendo, como se tivesse vida, e a porta estava sendo forçada pelo lado de fora. Ela tentava derruba-la. Tinha força sobre-humana. Era apenas uma questão de tempo até ver aquela porta cair sobre mim. Queria me matar? Por quê?

Corri para a porta da frente. Fiquei com medo de abri-la e dar de cara com a assassina. As pancadas eram fortes. A madeira já rachara a ponto de partir-se ao meio. Estava sozinho nessa. Se saísse vivo, seria apenas mais uma estória absurda para contar. Os gritos dela ecoavam por toda a casa. Havia um misto de desespero e medo. Lentamente puxei a cortina. Pelo vidro pude ver a avenida infestada de fantasmas sem rumo, cambaleantes e inexpressivos. Antes me exaltavam. Era como um deus para eles, mas agora me ignoravam com um furor indescritível. Os barulhos pararam. Fez-se silêncio por alguns segundos. Fiquei olhando aquele cortejo de almas vacilantes seguir sua dança fúnebre. Contemplava, com certo brilho nos olhos, as criaturas do telhado sugando a vitalidade dos vivos que repousavam tranquilamente em suas camas. Ninguém mais poderia ver, a não ser eu, o estranho morador de uma pequena cidade no meio do nada. Aquela cena me hipnotizava de tão extraordinária e vívida. Escutava o som emitido pelos monstros que se deliciavam com as virgens. O vento úmido penetrava a minha casa preenchendo cada cômodo. De alguma forma a minha verdadeira realidade havia voltado para um último espetáculo, porém os meus companheiros mantinham-se afastados em sinal de repulsa. E onde estava a mulher? Não ouvia mais os seus gritos. De repente escutei passos se aproximando da janela. Estava tão paralisado que mal pude mexer o braço para fechar a cortina. Novamente a mulher começou a gritar, mas desta vez pude entender o que ela dizia. Pedia socorro!

A mulher estava cruzando o corredor formado entre o muro e a parede da casa. São os lugares preferidos dos espectros deformados que viviam da umidade e da escuridão. São como parasitas que se alojam nas paredes e no piso, formando verdadeiras teias horrendas. É a pior visão possível para um ser humano, ver as castas disformes e pegajosas rastejando em busca de lugar úmido. Para a sorte dos mortais, não podiam ser vistos por qualquer um. A sombra dela surgiu a minha frente, em seguida se aproximou de mim com os olhos marejados. Tinha longos cabelos ruivos e estava incrivelmente pálida, como se tivesse visto um fantasma.

- Ajude-me, por favor. Tenho medo que ele volte e...

- De quem está falando? – perguntei, ainda assustado, tentando assimilar o que estava acontecendo.

- Um bandido invadiu a minha casa e me violentou antes de levar as minhas economias. Moro sozinha. Tenho medo que ele volte e faça aquilo de novo – a moça começou a chorar, e aos soluços, continuou – Deixe-me ficar em sua casa, pelo menos esta noite.

Recusei o pedido prontamente. Não aceitava estranhos em minha casa, muito menos uma mulher que quase derrubou a minha porta. Ofereci-me para deixá-la em casa e certificar de que estava segura. A moça morava a dois conjuntos da minha residência, cerca de cento e cinqüenta metros. Ela chorou durante todo o percurso, relatando o que o bandido havia feito. Não me surpreendi com a estória que contou. Já tinha visto coisas infinitamente piores, como orgias entre criaturas e humanos, carnificinas e estupros de todos os tipos. Certa vez vi uma moça sendo arrastada para um buraco negro e violentada por quatro criaturas de garras afiadas. A pele dela fora arrancada e os monstros ainda sugaram seus ossos. Os restos ainda serviram de alimento para os vermes que habitavam os terrenos baldios. Foi assim que descobri o que acontecia com as pessoas desaparecidas.

Ao chegar à casa da mulher, percebi que havia um cão enorme preso à coleira. Achei estranho um bandido entrar na residência sem chamar a atenção do animal. Quando apontei no portão, ele começou a latir ferozmente, tentando se desvencilhar da corrente. Girei a maçaneta e percebi que a porta estava trancada. Olhei para ela, esperando que me desse a chave, porém a moça ficou me fitando como se não estivesse entendendo nada.

- A chave? – perguntei.

- Devo ter perdido no caminho. Corri desesperada em busca de ajuda...

Dei a volta na residência e tentei abrir a porta dos fundos. Também estava trancada. A janela da cozinha, porém, estava entreaberta. Penetrei no cômodo escuro e procurei o interruptor. A mulher, estranhamente, esperava passivamente do lado de fora. Acendi a luz, localizei a chave e destranquei a porta. Havia dois espíritos perambulando pela sala. Isso era um mau sinal. Significava que alguém iria morrer na residência. Temi pela vida da moça. Pedi para que ela entrasse e trancasse a porta. Quando ela entrou, ouvi um barulho vindo do quarto. Apaguei a luz da cozinha e nos escondemos debaixo da mesa.

- Ele voltou para me matar – sussurrou a moça.

- Fique calma. Se ele tentar acender a luz, avançaremos sobre ele.

Vimos as pernas de alguém se dirigindo para a sala de estar. Aparentemente era um homem. Esperamos pacientemente ele cruzar o corredor e encontrar o interruptor que depois de acionado clareou todo o cômodo. Voltou lentamente e olhou para a mesa. Varreu os olhos por toda a casa, como se desconfiasse de algo. Para o nosso espanto, outra pessoa saiu do quarto. Desta vez parecia uma mulher. Encontrou-se com o homem na sala e sussurrou algo. Achei estranho, pois a moça havia dito que era apenas um bandido. Foi nesse momento que ela saiu debaixo da mesa e abriu a gaveta onde estavam os talheres.

- O que você está fazendo?

A mulher gritou, e o homem tentou tapar a boca dela. Sai debaixo da mesa e peguei uma faca. A moça correu em direção a sala e desferiu alguns golpes na mulher que não parava de gritar. O homem tentou socorrê-la. Ambos se atracaram ferozmente. Na luta corpo a corpo ele estava em vantagem, até o momento que fora golpeado. Corri para ver o que havia acontecido, e para meu espanto encontrei dois corpos ensangüentados sobre o sofá. Escutei mais gritos vindos do quarto. Fiquei estupefato ao ver que se tratava de uma menina.

- Mas o que está acontecendo aqui? Você disse que morava sozinha!

A moça, inexpressivamente, respondeu:

- Eu menti. Essa casa não é minha. Esses corpos são do casal que morava aqui. Essa menina era a filha deles.

Fiquei aturdido. Recuei alguns metros e segurei bem a faca. A moça me olhava com aqueles olhos assassinos, vermelhos e profundos. Vários espectros invadiram a sala e me rodearam de mãos dadas. Mandei-a afastar, mas ela continuava se aproximando, com a faca apontada para o meu peito, com uma fúria diabólica difícil de conter. Um buraco se abriu na parede, tão negro como a noite, e diversos braços e garras tremeluziam no seu interior. Tentei negar, dizer que era um sonho, um engano, mais uma fantasia da minha mente; porém ela continuava se aproximando, me encostando contra a parede. Sentia o gelo do metal na minha pele, o calor do atrito com a minha carne. Os gritos enlouquecidos dos mortos eram ensurdecedores. Eles sabiam o que estava para acontecer, e pareciam extasiados. Também sabia, lamentando profundamente. Sentia as garras me puxando para o buraco. Um bafo terrivelmente quente queimava-me as costas. A visão ficara escura. Sonhos e pesadelos macabros se misturavam em minha mente. Estava de passagem para o outro lado da parede.

Hoje me juntei a eles. Fico a vagar por essa terra esperando que algo de extraordinário aconteça, afinal, já vi de tudo quando estava vivo.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 01/09/2013
Código do texto: T4461560
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