Na tempestade
Quando minhas pequenas mãos ainda não podiam alcançar o armário superior da cozinha, e meus sonhos eram recheados de doces ilusões pueris, minha mãe costumava ler para mim antes de me por para dormir em minha cama de retalhos coloridos.
Na luz pálida e reduzida de um abajur, ela se sentava na beira da cama com um livro de capa dourada no colo e tecia sonhos com sua voz de fada, enquanto eu, de barriga para cima, observava as estrelas a resplandecerem em meu céu particular.
Eu nunca adormecia antes do fim da história, as cortinas de minha alma permaneciam abertas até o belo e sonoro “felizes para sempre” escapar como uma sinfonia angelical dos lábios de minha mãe.
Mas, em uma dessas noites - e essa é a lembrança mais marcante que tenho daquele tempo - decidi questiona-la.
No momento em que ela disse seu típico: “Durma bem, querida”, sorrindo cansada, e com os olhos verdes pequenos de sono. Ao invés de responder com: “Boa noite, mamãe” e virar para o lado e dormir, eu perguntei:
- Mamãe, será que um dia eu encontrarei um príncipe e viverei feliz para sempre? Ou ao menos um amor, tão forte quanto o deles...
Ela parou por um instante, surpreendida, uma ruga formando-se entre suas sobrancelhas arqueadas.
- Talvez - respondeu ela, seus olhos verdes brilhantes eram como esmeraldas a reluzir pela semi-escuridão do quarto.
- Eh?! Talvez?! - respondi decepcionada.
Seu riso divertido preencheu o quarto, as pequenas rugas sob seus olhos acentuavam o divertimento daquele rosto habituado aos risos simples.
- Ah querida, o amor é como uma espécie de milagre.
- Milagre? - perguntei assustada.
Aquela palavra que eu ainda não compreendia - e que o pastor vivia repetindo na igreja - ressoando em minhas pequenas orelhas rodeadas de fios negros como o cetim dos véus da morte.
- Isso, a chance de encontrar alguém a quem se ama e ser correspondido em meio a tantas pessoas pode ser considerado um grande milagre.
- Hum...
- Mas, tenho certeza que você vai encontrar, talvez não como você espera que seja, nem como você desejaria, mas um dia, tenho certeza, você vai encontrar o seu próprio milagre.
- Também posso ter um final feliz? - perguntei, os grandes olhos castanhos como os de meu pai, arregalados em espectativa.
Ela sorriu e disse: “Claro, agora durma meu amor.”
Naquele momento, no alto de minha sabedoria de 5 invernos, eu não pude perceber o significado daquele brilho que, por um ínfimo instante, refulgiu nos olhos dela. E aquela é a última lembrança que tenho de minha mãe.
***
No horizonte a aurora pálida estendia seus róseos dedos sobre o mundo úmido. A luz do sol que incidia sobre as planícies coloria belamente as estruturas mundanas, era um espetáculo de cores que a palheta de pintor algum no mundo poderia reproduzir.
Olhando a magnificência daquela manhã de céu límpido, ninguém imaginaria o horror que fora a noite anterior, com aquela tempestade aparentemente pré-apocaliptica a assolar grande parte do interior paulista.
Apesar da noite anterior ser para mim, em grande parte, um borrão difuso, acordei essa manhã próxima a uma velha casa de madeira no meio da mata na qual eu estava fazendo caminhada quando a chuva torrencial começou a castigar a terra.
“Ainda bem que é domingo” - pensei enquanto me encaminhava para a velha trilha, minha cabeça latejava e tudo o que eu desejava era uma cama quente e um bom e velho remédio, além de dormir por horas seguidas, claro.
Após alguns minutos de caminhada, escutei o barulho de passos que vinham em minha direção e era trazido pela brisa calma da manhã. Rapidamente me escondi atrás da primeira árvore - suficientemente grossa para ocultar uma pessoa - que encontrei.
- Olá? - perguntou uma voz masculina a minha direita - eu sei que tem alguém ai. Pegadas na lama, esse tipo de coisa.
- Droga! - resmunguei saindo de meu precário esconderijo.
Quando olhei para ele seus olhos refletiam um brilho divertido e seus lábios traçavam uma linha fina, fortemente comprimida. Ele obviamente estava se divertindo. Imediatamente fechei a cara. Verificando se meu canivete ainda estava no bolso traseiro de minha calça, sai em direção a trilha.
- Desculpe, meu nome é Daniel.
- Larissa - respondi de forma altiva.
- Bom Larissa, se você pretendia ir em direção a cidade pela ponte, sinto lhe informar que será impossível, aparentemente, o temporal da noite anterior derrubou sobre ela um enorme carvalho velho.
- Fala sério!
- Eu estou - respondeu ele rindo.
- Hum, acho que vou checar por mim mesma.
- A vontade.
Passei por ele e caminhei mais uns 20 minutos até chegar a ponte, que, de fato, já não existia.
Irritada, voltei pelo mesmo caminho do qual havia vindo e encontrei com Daniel sentado em uma pedra no local onde eu o havia deixado antes.
- E então?
- É só ir pelo caminho mais longo, que cruza uma grande parte da mata, dando a volta no rio. Não há segredo, só levará mais tempo.
- Se você diz.
- Claro que o caminho é muito mais longo e por isso evitado, então a trilha não é tão boa quanto essa, pois demora mais ou menos 1 dia para chegar a trilha principal.
- Ainda bem que hoje é sábado então.
- Sim... Mas isso é um verdadeiro incômodo. Não que eu tivesse algo melhor para fazer...
Caminhamos em meio a mata com cheiro de chuva durante alguns minutos em completo silêncio, eu sentia seus olhos perfurando minhas costas, o que me deixava aflita.
- Então, você mora aqui? - perguntou ele.
- Sim, a vida toda.
- Ah, isso explica porque você conhece as trilhas tão bem.
- E você, o que faz aqui?
- Como sabe que não sou daqui?
- Cidade pequena...
- Ah, é verdade - respondeu ele sorrindo.
- Mas você não me respondeu - afirmei virando-me para encará-lo.
- Acho que não, eu vim acampar, pode-se dizer que sou um amante da natureza.
- Sozinho? - perguntei espantada.
- Não - seu sorriso alargou-se e um brilho faceiro cruzou-lhe os olhos - até ontem a tarde, pouco antes da tempestade estava acompanhado, talvez devesse ter partido com o resto do pessoal, mas eu queria ver como seria enfrentar uma tempestade em meio as árvores.
- E como foi?
Ele gargalhou e seu riso retumbou por sobre as árvores, como uma sinfonia de Bach deveria fazer pelas orquestras.
- Assustador, acho que nunca passei tanto medo na vida. Achei que fosse morrer.
Gargalhando, voltei-me para frente e continuei caminhando. A idéia daquele homem de aproximadamente 1,80 de altura, morrendo de medo, por algum motivo me parecia verdadeiramente cômica.
- Finalmente sorriu.
Espantada virei-me para olhá-lo.
- Você estava muito séria, de alguma forma queria ver outras faces suas - justificou-se ele.
- Sou uma pessoa séria - respondi revirando os olhos.
- Acho que não.
Daquele momento em diante conversamos boa parte do caminho, era incrível como tínhamos tanto - e ao mesmo tempo nada - em comum, e a forma como ele falava articulando de forma clara as palavras me encantava de alguma forma.
Quando o sol encontrava-se no centro do céu, nossos cantis estavam em estado crítico, minhas pernas doíam e minha cabeça ainda latejava mais do que nunca. Sentando-me em uma pedra próxima ao riacho onde paramos para abastecer nossos cantis, coloquei minhas mãos nas têmporas pressionando-as.
Quando abri os olhos encontrei-o agachado próximo a mim a observar-me . Seus olhos de Jaboticaba brilhavam a luz da tarde. Uma ruga de preocupação surgiu entre suas sobrancelhas no momento em que ele tirou o cabelo do meu rosto. Seus dedos quentes descreveram um arco sobre minha testa.
Meu coração batia forte em expectativa, mas quando suas mãos surgiram diante de meus olhos, meu coração parecia ter parado de bater, uma mancha de sangue rubro conspurcava seus alvos dedos longos, meu sangue.
- Quando você se machucou? - perguntou ele espantado.
- Eu não sei, não me lembro de ter me machucado - respondi confusa.
Naquele momento o que eu mais queria era um remédio bem forte, eu não suportava mais de dor quando eu tentava me lembrar da noite anterior, a dor perfurava de forma intensa meu cérebro e minha mente nublava-se ainda mais.
- Talvez devêssemos parar um pouco - sua face refletia genuína preocupação e minha vontade era abraçá-lo.
- Melhor não, devemos aproveitar para caminhar durante o dia e descansar a noite.
- Tem certeza?
- Tenho sim. Encheu os cantis?
- Sim.
Levantei-me de forma trêmula e comecei a caminhar.
- Quer ajuda?
- Não precisa. Obrigada.
Por volta do fim da tarde encontramos uma casa velha abandonada. Apesar de estar caindo aos pedaços, serviria de abrigo para a noite.
- É engraçado, agora me veio a cabeça uma conversa que tive com a minha mãe a tantos anos, eu pensava que já havia esquecido tudo sobre ela.
- O que aconteceu com ela?
- Sumiu no mundo. A ultima lembrança que tenho dela é de ela me dizendo que o amor era um milagre.
Ele parou por um momento, seus olhos brilhando a luz da fogueira que havia feito com gravetos e um isqueiro.
- Você concorda?
- Talvez.
- Eu concordo.
- Porque?
-Porque se não tivéssemos enfrentado a tempestade de ontem talvez nunca nos conheceríamos.
Arregalei os olhos.
- Como?
Ele levantou-se e veio em minha direção.
- Não sei, quando eu olho você sinto que quero permanecer ao seu lado. Proteger você. É estranho.
- Você mal me conhece - respondi sorrindo amargamente.
- Claro que conheço. Depois que sairmos daqui quero continuar me encontrando com você, se você quiser, é claro.
Segurando em seu rosto, beijei aquela boca e afoguei-me na sensação daqueles lábios de encontro aos meus. A essa altura minha cabeça doía de forma tão intensa que eu já não conseguia mais pensar direito, minha vista turvava-se ao menor movimento.
Afastei-me sentindo dor. E pressionando a mão as têmporas.
Ao retirar a mão elas estavam cobertas de sangue. Daniel me fitava assustado.
Então, tudo ficou claro...
- Eu só queria ter te conhecido antes - sorri amargamente - talvez tudo fosse diferente, agora eu sei qual a sensação. Pena ser tarde demais. Agora eu me lembro... A chuva...A escuridão...Os raios que cortavam a noite...O desespero...Eu chorei tanto enquanto corria através das árvores... Tive tanto... Tanto medo... - soluçando as memórias iam surgindo em minha mente como flashes, meus olhos observavam meu próprio espanto refletido nos olhos dele - Eu estou morta!
Chocada, estendi minhas mãos e não pude mais vê-las, eu havia sumido. E então, restara somente o nada.