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Capítulo IX

  Era a ultima porta, e lá estavam os dois números, e juntos formavam um só. O quarto treze era proibido. Colocou a mão na maçaneta. A tensão e o clímax tomaram o corpo e sentiu-se abrindo a porta do inferno. O choque que aquilo causou em seu cérebro, foi simplesmente nostálgico e resfolegante, foi quando Glória chegou.

 - Não da para abrir sem uma chave menina – advertiu.

 - Preciso entrar – disse a moça – como ele ainda pode achar que ela está viva? – indagou.

 - Estive com ele por anos, lembro-me de quando Manuela morreu, e do dia que trancamos essa sala – falava a mulher com voz suave, diferente de quando a recebera – sei que você acha que deve fechar esse manicômio menina, sei que pensa que quando fizer vinte e um anos saberá de tudo da vida, acha que seu avô devia ter feito isso, mas aí ele não pôde e ela o seduziu – a mulher deu uma pausa – sei o que pensa.

 - Ela era uma criança – disse Karol.

 - Sim – uma criança ruim, com problemas mentais seriíssimos – a mulher levou a mão até o bolso do jaleco e apanhou uma chave – sabe, o diretor não se esqueceu de sua filha – disse.

 - Esqueceu sim – respondeu, a voz quase não saiu, estava abafada, entalada, não podia acreditar naquilo tudo.

 - Não sei por que quer fazer aquilo que sabe que não é certo – A mulher ergueu a mão e abriu-a – lembro-me da primeira vez que sua mãe veio aqui, ela nunca quis ver Manuela, nunca. Sempre a repugnou, você sempre foi a criança normal, sempre teria de tudo, seria a princesinha dela – a voz da mulher chegava a penetrar dolorosamente na cabeça da jovem – seu pai precisou ser mais que um diretor aqui.

 - Mas ele parou simplesmente de me visitar, nem respondia minhas cartas – a menina já chorava, as lágrimas desenhando a tristeza em sua face.

 - Ele aceitou a pedido do seu avô trazê-la para cá, com o tempo tornou-se diretor, substituindo a seu avô. Assim poderia cuidar da filha e sabia que você estava bem – a mulher disse.

 - Eu nunca estive bem, nunca – a garota mal podia se segurar.

 - Sei que deve ter sido dolorido para você – a mulher parecia saber tanto de seu pai, afinal teriam eles tido um caso? As perguntas surgiam enquanto Karol pensava em toda vida que levara, sozinha, em quando tentou se matar ao saber que a mãe morrera ao ter uma súbita parada cardíaca. E depois, quando, quando tudo aquilo aconteceu. Ainda se lembrava das batidas, ocas e fortes, lembrava-se de ver o rosto da irmã no espelho, e de ouvir a canção que o pai cantava para as duas, quando ainda tinha dois anos.


Help me if you can I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please, help me?

 
 Um dia a irmã simplesmente tentou matá-la na pequena banheira enquanto a mãe pegava uma toalha. Manuela afundou a cabeça de Karol, e segurou por alguns segundos, e então a mãe chegou, deu um tapa no rosto de Manuela, puxou a menina má pelos braços e jogou-a no chão, assustada e confusa pegou Karol, molhada e sem ar, quase afogada pela própria irmã, viu que a menina estava bem, olhou na direção da filha que sorria com o sangue escorrendo no canto da boca.

  Raul, o pai, ao saber do ocorrido não acreditou na mãe, afinal Manuela era a filha. Para ele Manuela tinha transtornos mentais, já para Rita a filha era má, ela simplesmente era má.

 - Pense no que vai fazer menina. Seu avô não era ruim, nem seu pai nunca foi. Ambos foram seduzidos por aquela menina. A princípio confesso que quando chegou pensei que seria como ela – a mulher balançou a cabeça negativamente – mas não creio que seja, não mais, e não me pergunte por que – ela colocou as mãos sobre as da moça – seu pai te ama, ele apenas esteve confuso esse tempo todo, trancado em um mundo de recordações e tristezas – a depressão faz coisas terríveis com as pessoas, você sabe disso melhor do que eu, não sabe?

 - Sim – concordou e sentiu a chave entre os dedos, “talvez essa seja a porta do inferno”, pensou – vocês não mexeram mesmo nesse quarto não é – perguntou.

 - Desde o ocorrido seu pai não permitiu que ninguém entrasse aí – Glória virou-se de costas – e acredito que não queira mais vê-lo, tenho lembranças vivas menina, e isso me dói muito, afinal eu e seu pai éramos muito amigos, foi o que sempre fomos – disse e aquele tom de voz revelou tudo a Karol, sim, provavelmente o amava, um amor platônico – vi a conversa que teve com seu pai, pedi a um amigo para deixá-lo sair.

 Virou-se para porta enquanto a enfermeira caminhava na direção oposta, enfiou a chave no orifício e abriu-a.

 

Capítulo X

 
  O diretor descia as escadas assustado, há tanto tempo não descia aquelas escadas, há tanto tempo. Chegou até o hall, olhou na direção da porta principal, uma porta rústica, enorme, só de se aproximar daquela sala as lembranças trancafiadas no lado mais obscuro de sua mente voltaram à tona.

 - Não faça isso Manu – implorava enquanto a menina o olhava com ódio, um sentimento que cada vez mais se instalara nela, ou quiçá sua mulher tinha razão, a menina de certo era má – olhou nas mãos da menina e depois a encarou nos olhos, e ela sorria.

 - Viu o que fiz com ele papai? – perguntou enquanto abria a porta de saída – você tinha razão, ele era perigoso, muito perigoso – a menina ainda tinha o sangue do avô nas mãos e não somente isso.

  Raul olhava sem acreditar no que a menina fizera, o pai havia enlouquecido há um tempo atrás, dizia que a menina era ruim, era satânica, “uma menina do capeta” era o que ele dizia. Mas Raul não podia acreditar.

 “Não caia na conversa de Rita, papai”

  Era isso que ele sempre dizia a seu pai. Essas palavras repetiam-se na cabeça do diretor. Sempre foi o cego ali, sempre ele. Chegou um dia no quarto do pai e a menina estava nua, o pai já dormia, ambos deitados na cama, ah, e ela tinha apenas quatorze anos – Manuela acordou e abriu os olhos.

  - Papai?! – mas ela não parecia envergonhada, Raul via ela agora com o pênis decepado do avô na mão, e enfim tinha certeza que ela não poderia ser apenas louca. O pai estava morto, o mesmo pai que tentou o matar, mas ele era pai e ainda precisava acreditar que a filha poderia ser salva.

 

Capítulo XI


  Olhou ao redor, aquilo era tão nostálgico. Lembrava-se das cartas do avô, e da última carta quando o avô disse que não podia mais escrevê-la. Que Joaquim estaria postando essa derradeira carta pelo seu amigo, afinal, agora nem ele mesmo tinha certeza de sua sanidade, não depois do que estava disposto a fazer.

  Tudo ainda estava ali, mesmo depois de anos. O quarto havia sido trancado, as manchas de sangue ainda podiam ser vistas naqueles lençóis empoeirados, a desordem era total, o piso havia sido manchado de vermelho, as marcas dos dedos do avô arranhando-o.

 Outras manchas de respingos se destacavam pelo assoalho, fazendo uma trilha até a porta. De certo o sangue que fugira do pênis decepado do avô ou seria o sangue de Manuela? Toda aquele cenário grotesco trazia lembranças de um trecho da ultima carta.

  “Sei que não vai acreditar em mim, e não quero que acredite, pequena, mas quando seu pai disser que fiz algo com sua irmã, não é verdade, quando somos pais ás vezes acreditamos no que queremos, é um instinto, ainda é muito nova para compreender isso, eu sei, mas o mal deve ser cortado pela raiz. Adeus Karol”

  Ela poderia ser muito nova, mas tanto ela como a mãe sabiam do que Manuela era capaz. Acreditava em seu avô, mandou várias cartas tentando dizer isso para ele, mas ele não tinha forças para respondê-la, não, pois já tinha decidido matar a própria neta, antes que ela matasse o filho.

 
 
No quarto do avô

  Manuela entrou no quarto, tinha uma faca em mãos, uma faca que roubara da cozinha. Lembrou-se de quando fizera aquilo pela primeira vez, quando entrara ali clandestinamente, se despiu enquanto pobre velhinho jazia roncando na cama, deitou-se ao lado dele e fechou os olhos, não dormiu, pois a ansiedade do pai encontrar-lhe ali era muito grande.

  Agora lá estava, novamente, mas nas mãos carregava uma faca. A porta abriu-se silenciosa, entrou, olhou para cama e logo deduziu que o troféu estava lá, como sempre enrolado por sob os lençóis.

  Ergueu a faca e preparou-se para matá-lo, estava disposta a fazer isso com repetidos golpes, acabar com a vida infeliz do velho que depois de ter sido condenado louco pelo próprio filho, agora vivia naquele quarto.

  O filho que antes era um dos doutores do manicômio assumira a diretoria do sanatório há um ano. Raul era o responsável por cuidar dele, não o odiava, depois do episódio, mesmo ainda resistente já entendia que sua menina tinha grande parte da culpa, só não podia acreditar que o pai dormira com a própria neta.

  Quando se preparou para fincar a faca no coração do avô, sorriu e deixou que os braços seguissem suas vontades. A lâmina desceu rasgando o fino lençol e depois atravessando o macio corpo que jazia escondido debaixo dele, freneticamente.

  Era tarde demais, na quarta facada sentiu-se uma tola, ela já sabia que aqueles impactos não podiam ter sido em seu avô, não havia sangue, não havia o contato que esperara.

  Antes de chegar ali, havia imaginado o cheiro do sangue, a lâmina entrando e acariciando os ossos do velho, queria ver o liquido carmesim escorrendo da boca dele, umedecendo a língua e fugindo do imo, mas quando percebeu o velho já a segurava pelas costas.

 - Criança maldita! – esbravejou, enquanto as mãos agarravam a menina, contornando-a e abraçando-se na altura do umbigo dela – eu sabia que mais cedo ou mais tarde viria aqui – o velho tentava segurá-la, Manuela esperneava, ele era homem, tinha sua força, mas era um velho, sessenta e oito anos e uma saúde debilitada – te esperei por noites, não acha mesmo que iria ficar aqui tomando os remédios, sou velho, mas não sou burro – ela tentava se desvencilhar, a faca quase o cortando, mas a menina ainda se via presa.

 - Me solte idiota – ordenou.

 - Eu vou cortar o mau pela raiz, menina – o homem falava sério – que Deus me perdoe, mas irei matar você e mandar de volta para o inferno de onde deve ter vindo – e então a lâmina talhou os dedos dele no mesmo momento que a garota conseguiu desferir-lhe um coice nos testículos.

 - Aaaaah!!! – Ele gritou de dor – caiu de joelhos perante a menina que já se levantava e o fitava com olhos estreitos e mal intencionados. Caminhou carregando a lâmina quando o homem tentava se levantar – e a jovem de apenas quinze anos não hesitou em enfiar a faca rasgando o ar e cravando de cima para baixo, primeiro a ponta, enquanto o jato de sangue esguichou no rosto dela e nas orelhas dele. A lâmina fria cravou-se cerca de seis centímetros adentro do ombro do avô, que urrou de dor.

 - Ta gostando, velhote? – perguntou enquanto tirava-a e brutalmente afundava-a no o outro ombro. O velho não resistiu e o corpo tombou. Ela agachou-se próximo a ele e enfiou a faca na batata da perna do avô. O homem gritava, mas ela estava incontrolável, louca, e já não queria mais esconder nada, criara o próprio inferno e aquela era maneira de exorcizar seus verdadeiros demônios.

  Enfiou a faca na barriga do velho e deixou-o agonizar enquanto decepava o órgão sexual dele, e foi quando os testículos de derramaram pelo chão que o diretor chegou acompanhado de Glória. Ambos a olharam com extremo assombro.

Ela sorriu feito o próprio diabo.

 

Capítulo XII - Final


 O diretor olhou para a porta aberta, as lembranças ainda o incomodavam, mas de alguma forma estavam voltando. A moça que o estava ajudando, ele lembrava-se daquele rosto de algum lugar, estava gravado, familiarizado de alguma forma em seu subconsciente, trancafiado num quarto escuro, tantos anos haviam se passado, tantos.

  A porta se abriu aparentemente sozinha, ele caminhou devagar na direção da saída dos fundos do manicômio, e mal viu a sombra do jardineiro que estava o observando.
 
 Há tempos não fazia aquilo, mas agora precisava, e então começou a ouvir aquela musica que tanto cantou para elas.



And now my life has changed in so many ways
Agora minha vida mudou de muitas maneiras
My independence seems to vanish in the haze
Minha independência parece desaparecer na neblina
But every now and then I feel so insecure
E cada vez que isso acontece, eu me sinto muito inseguro
I know that I just need you like
Só sei que eu preciso de você
I've never done before
Como eu nunca tinha feito antes

 
 - Só sei que eu preciso de você – Repetiu.
 


 
  Karol, continuava ali, absorta, tentando entender todo aquele cenário e logo começou a fazer o que achava certo. Abriu a janela e começou a jogar tudo que estava lá por ela. Não fazia sentido ele ficar se punindo assim, nada daquilo fazia sentido.

 
  A jovem começou a chorar, enquanto os lábios começaram a se mover, e em meio ao turbilhão de sentimentos a música surgiu de dentro de si.

Help me if you can I'm feeling down  
Ajude-me se você puder, estou me sentindo desanimado
And I do appreciate you being 'round
Eu gostaria de ter você por perto
Help me get my feet back on the ground
Ajude-me a colocar meus pés de volta ao chão
Won't you please, please, help me, help me, help me?
Você não vai, por favor, me ajudar, me ajudar, me ajudar?
 
 - Oh, papai – pensou em voz alta.
 


 
  Karol chorava e se lembrava da imagem da irmã no espelho. O sangue brotando de todo aquele lugar, e a porta sendo arrombada. Sentiu o coração bater mais forte, lembrou-se, afinal nunca se esqueceria, nunca mais.
 
  Quando a imagem refletida se distorcera aos poucos até que formara outra, o reflexo de outro rosto, de uma menina, uma menina triste e chorosa, a jovem reconheceu a irmã maldita, estava bela, ainda tinha os quinze anos, paralisada no tempo.

 
  Os olhos vermelhos e chorosos, as lágrimas fugiam de si.
 
 - Manuela? Não pode ser – espantou-se descrente naquilo tudo. A imagem da irmã agora estava ali.
 
 - Karol – agora ela podia ouvir claramente a voz da irmã – preciso que me ajude, salve-o. Não sei por que fazia aquilo. Desculpe-me se magoei tanto a todos vocês. Eu sentia um desejo incontrolável, sentia-me triste e preciso que você o ajude, agora. Acredito que um louco é apenas uma alma perdida em seu próprio corpo, e assim eu sempre fui – a menina chorava – tentei me desculpar com a mamãe, mas sou um maldito espírito preso num lago, e a única forma de me comunicar é assim, através de espelhos, movendo coisas, criando pesadelos e sonhos – parecia exausta – fui amaldiçoada pelo crime insano que cometi, metade de mim é inferno agora – Não sei se tudo começou pelo ciúme que senti de você Karol, mas preciso que salve-o – terminou.
 
 - Mamãe morreu porque se assustou com você? – indagou, mas a imagem já não estava mais no espelho, e a porta fora arrombada. Ela estava se sentindo mal, sentou-se, sua pressão caiu de uma vez só e abruptamente desmaiou quando o vizinho e o porteiro do prédio arrombaram a porta.
 
  Quando acordou de tudo aquilo olhou para o banheiro, não havia nada, o espelho estava intacto, não havia nada. Enfim tudo não passou de um pesadelo. Foi o que pensou, mas aí perguntou aos dois:
 
 - Afinal como souberam que estava desmaiada? – questionou.
 
 - Eu vinha lhe trazer essa carta, é do juiz, deve ser sobre o manicômio, você havia me falado se chegasse a carta era para trazer para você, mas aí quando me aproximava do quarto, o Sr. Haroldo batia desesperadamente na porta do seu apartamento (Haroldo era o vizinho que morava um andar debaixo do dela, bem debaixo de seu apartamento) achei estranho, mas ele jurou ter visto sangue gotejando pela laje do teto dele – o porteiro sorriu e deu de ombros – e só poderia ser daqui.
 
  - Mas não tem nada aqui – Haroldo parecia confuso. Karol ficou calada por segundos e então se pronunciou.
 
 - Deve ser esse maldito sol. Faz isso com as pessoas Senhor Haroldo. Pode voltar para casa, mas se precisar de um manicômio procure outro, pois vou fechar o que herdei de meu pai em breve, e essa carta é minha garantia de que logo mais não teremos loucos naquela mansão.
 
 


 
   O diretor chegou a beira do lago, olhou bem para as águas paradas daquele que um dia foi seu maior orgulho. Adorava ficar ali, sentado, forrava uma toalha por sobre a grama e se banhava do sol da tarde. Ouvia o canto dos pássaros. Os loucos também gostavam de ficar ao ar fresco, fazia bem para eles. Mas naquele fatídico dia, tudo acabou.

  - O que você fez Manu? – perguntou, lembrando-se novamente.

  Glória e ele estavam de pé à porta. O avô de Karol
e Manuela desfalecia enquanto a menina parecia estar possuída. Olhou para o pai, agora com remorso, e então deixou a faca cair ao chão ao lado do corpo do avô que ainda desfalecia.


  - Nãoooooooo! – gritou à enfermeira, ela era jovem e bonita naquela época, amava o velho, sempre amou e por isso o ódio pela menina só fez-se crescer.

  - O que você fez Manu?! – indagou novamente. Raul jazia anestesiado pelas diversas sensações que o corpo experimentava naquele momento. O pai estava agonizando no chão, e a filha era uma assassina, e o pior é que ele era quem fizera tudo errado, Rita sempre tivera razão – Meu Deus –suspirou, e naquele instante algo pior aconteceu.

 

 
  Karol saiu do quarto, saiu correndo.O corredor parecia não ter fim e ela precisava dele, precisava dizer a ele. O inverno dentro de si parecia descongelar, desmoronar depois de todos aqueles anos.

 Sentiu a depressão ir embora, sentiu o mundo voltar ao seu lugar. Ela sempre sentiu tanta falta do pai e agora ele estava ali. Lembrou-se de quando o viu no corredor, quando estranhamente o viu falando sozinho, acreditando que sua irmã estava ali.

  Recordou-se de quando falou com ele e sentiu o toque quente e paternal. Seu pai ainda estava vivo dentro de si mesmo, ela só precisava ajudá-lo a se reencontrar, a sua irmã estava certa. Era apenas uma alma perdida em seu próprio corpo. Ela desceu as escadas correndo.

 

 
 Manuela estava de pé, o órgão sexual do avô na mão. A enfermeira chorava, caíra de joelhos no chão perante toda a tragédia, afinal ainda não podia acreditar no que via. E o pobre Raul não pôde fazer nada, mas tentou.

 O avô juntou as ultimas forças, apanhou a faca com uma das mãos, e ergueu o braço como pôde para desferir o golpe derradeiro. A lâmina ficara ali naquele corpo, enquanto o velho agora tinha o filho sobre si. Raul deu um salto e tentou impedir a ação do pai, mas não houve tempo. O velho segurou firme o pescoço do seu filho, apertou como se quisesse matá-lo.
 
- Deixe-a ir – o velho disse – deixe a morrer meu filho, não posso deixar que a salve – e em seu ultimo suspiro seus dedos deslizaram do cabo da arma.

  Manuela arregalou os olhos, a respiração foi pausada. Olhou para o pai e depois para Glória. Saiu andando vacilante, a arma fincada na barriga. Atravessou a porta e começou a caminhar pelo corredor, um rasto de sangue se estendia atrás de si, enquanto o pai ainda jazia no chão, estupefato. Logo desceu as escadas, ela perdia muito sangue.

 


  - Ele nunca foi o culpado, não é? Foi você – ele perguntou olhando para o lago – ele não transou com você, meu pai não faria isso – as lágrimas rolavam – seu avô não faria isso!! –  ele gritou.

  Um vento gelado cercou aquele lugar, trabalhava em círculos, folhas voando com o vento como se espíritos zombassem daquela discussão idiota entre um homem e um lago, e as malditas recordações ainda estavam vivas.

  Assim que chegou a porta e ele a viu. Quando ela disse que o avô era ruim. Naquele instante Raul entendera quem realmente era ruim. Lembrou-se de sua filha e de sua esposa, lembrou-se do pai. Todos sabiam do que ela era capaz. Mas por que ele não?

  Manuela abriu a porta com dificuldade, estava sem forças, passou por ela enquanto o sangue continuava derramando-se e escorrendo pelo cabo da faca, uma das mãos ainda segurando o pênis do avô, talvez inconscientemente. A outra mão segurava a lâmina que ainda a mantinha viva e ao mesmo tempo a matava.

  Andou manquitolante, os pés já se arrastando, e na metade do caminho caiu cuspindo uma saraivada de sangue. O órgão do avô foi deixado de lado e as mãos se apoiaram na grama, manchando as folhas verdes com aquele liquido rubro. Ergueu-se forçosamente e as forças lhe faltaram, caiu de novo e antes que tocasse o chão o pai lhe pegou no colo.

 - Me ajude a chegar ao lago, papai – ela disse.

 


  Karol olhou para o pai, estava em meio a uma espécie de redemoinho, folhas voando circularmente, como se cercassem o lago, árvores dançavam ao ritmo daquela ventania e o pai estava agora calado, parado de frente ao lago, recordando-se, reencontrando-se em meio ao caos de seus pensamentos.

  Ela caminhou até ele.

 

  Raul carregou-a no colo, ela era linda. Olhava para ele de uma forma que nunca a havia visto. Racional, emotiva, não podia ser a mesma criança que fizera tudo aquilo.

   - Vamos nadar papai – ela pediu – me leve até no lago, eu quero ficar aqui, quero ficar aqui para sempre – a voz estava fraca.

  O pai chorava, sentindo-se culpado por não ter feito nada por ela, e então entrou no lago. Quando colocou os pés na água, o pescoço de Manuela pendeu para baixo e ela desfaleceu.

  Raul continuou andando, só parou quando a água atingiu seu queixo. Ficou ali por quatro horas e meia, abraçado ao corpo da filha, chorando e se entregando a loucura. Só saiu retirado por policiais, e desde então nunca mais fora o mesmo, era como se nada além dela existisse.

 

 
 - Você a encontrou? – perguntou Karol parando ao lado dele.

 - Acho que ela está aqui – as lágrimas rolavam – em algum lugar.

 - Talvez seja hora de deixá-la ir, não acha diretor? – A filha perguntou tentando se conter, pousou a mão sobre o ombro do pai e recostou a cabeça ali. Ele fez o mesmo, retribuindo o gesto.

 - Acha que pode me perdoar filha? – Perguntou.

 - Não sou a Manuela, Raul – disse a jovem.

 - Eu sei, Karol.

  Raul virou-se para filha e abraçou.

 

 Da porta, olhando além da estranha ventania, o velho jardineiro sorria, um riso tolo e banguelo. Lembrou-se do velho amigo e então viu a menina, viu-a de pé sobre as águas. Abriu a boca espantado e esbugalhou os olhos.

  - Minha nossa senhora! – disse enquanto fazia o sinal da cruz.

 


  Nem mesmo Raul, tampouco Karol a viram novamente, ao menos não em pesadelos. O Hospício continuou ativo, um verdadeiro show de horrores.

  Quanto ao quarto treze, lá dorme uma jovem, a nova proprietária do hospício, ela cuida do lugar e do pai, tem uma quase avó, e o louco é que continuam acreditando que no lago ainda existe uma menina, e dizem que a noite ainda se escutam estranhos barulhos, como se pedras fossem lançadas da escuridão. Alguns juram que é a menina nadando.

  Mas se nem Martha e sua insônia a viram, quem garante? Talvez a alma dela tenha sido liberta, ou talvez não.


Fim.

  Dedicado a Karol Pacheco e Manuela Salles que tem acompanhado boa parte dos meus contos, e sempre a minha maior e mais presente leitora, Carlinha, que me acompanha antes da grande maioria por aqui, lendo árduamente a maioria de meus contos.


Abraço a todos  parabéns pelo sucesso do DTRL11!
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 16/08/2013
Reeditado em 20/08/2013
Código do texto: T4438002
Classificação de conteúdo: seguro
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