TOTEM

Um uivo de cachorro e o cantar de um galo fizeram com que ele pulasse assustado da cama que ocupava na única hospedagem de Vila Vazia. Benzeu-se automaticamente e conferiu o relógio: 04h20min. Foi até a pia e molhou a cara com água fria. Acendeu a lanterna e verificou se a arma estava no lugar onde a havia deixado antes de dormir.

Abriu levemente a janela sem produzir qualquer ruído, posicionou a arma na direção desejada e começou a espera. Quatro e quarenta e cinco pontualmente ela surgiu na rua estreita. Estava descontraído e caminhava confiante.

Ele tremeu levemente o músculo direito da face e firmou a pontaria. Esperou mais alguns passos e disparou certeiro na altura do coração da vítima, mesmo com a pouca iluminação. Escutou o baque do corpo contra o chão de terra; cofiou a barba rala e cheia de falhas que lhe conferia um ar mais assustador.

Nélio era conhecido naquela cidadezinha como um contador de histórias estranhas. Dava-as por verdade e ninguém punha dúvidas. O que sempre o levava a contar a próxima com mais riqueza de detalhes infames, fantásticos, descabidos e até escabrosos. Alguns riam daquela técnica, mas consideravam aqueles detalhes como ingredientes que apimentavam a arte de Nélio.

Até Alaor, sujeito arredio, quieto, sempre de boné com a aba na altura dos olhos e que cultivava uma barba cheia de falhas no rosto vincado, sentava para ouvi-lo na birosca que ficava no início da rua esburacada. Alaor tinha fama de matador e assassino de aluguel. Sua frieza, porém, inibia os da redondeza de perguntarem a ele se aquela fama era verdadeira.

“Contam os antigos que, antes da gente, houve um prefeito por aqui. Dr. Barroso, esse era o nome dele; bravo que só. Pois bem, certa feita ele contratou um circo. Armaram tudo lá na praça e divertiram os moradores. Mas sabe como é... artista de circo sempre teve má fama por esses interiores. E naquele Circo havia três anões. E um deles sempre andava grudado com um cachorro. Parece que o maiorzinho dos três achou de se engraçar por uma parenta do prefeito. Contam que ele mandou prender os três; não na delegacia, mas num cômodo da casa dele. De caso pensado, chamou um carpinteiro que tinha por aqui e ordenou que o homem esculpisse um totem, composto de três compartimentos sobrepostos. Cada compartimento tinha a altura de um dos anões. Terminada a obra, o prefeito mandou executar os três, mais o cachorro, embalsamou-os e cada um foi posto num compartimento, inclusive o cachorro. O Dr. Barroso gostou tanto da obra de arte que resolveu presentear seu amigo, o prefeito de Vila Vazia. Este, não sabendo do recheio, instalou aquilo na entrada da cidadezinha. Fim da história, gente.” Alguns se benzeram. Alaor apenas esboçou um sorriso discreto.

Afastou-se da janela, recolheu os poucos pertences e jogou-os na mochila. Esticou a corda lentamente pela janela, verificou se estava bem presa, atravessou a arma no ombro e desceu para a rua. Seguiu rumo à saída de Vila Vazia. Deu de cara com uma escultura de madeira. Relembrou da história contada por Nélio. Riu discretamente. Retirou a arma e apontou. Três tiros certeiros, um para cada corpinho do monumento. Apanhou a faca e aproximou-se mais. Riu mais uma vez: faltava acertar o cachorro. Quando tentou cravá-la no compartimento do meio, um monstro que lhe pareceu imenso saiu dali, derrubou-o e cravou as presas enormes em seu pescoço. Tentou empurrá-lo de cima dele, mas o peso era considerável. O sangue esguichava em profusão. Esvaindo, ouviu um uivo muito próximo e o cantar de um galo bem ao longe.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 16/08/2013
Código do texto: T4437409
Classificação de conteúdo: seguro