SOB O CINZA QUE NOS PROTEGE
Nunca quis ser empregado de nenhuma transportadora. Grande, média ou pequena. Nenhuma! Vivia sozinho no caminhão de modelo já quase ultrapassado, mas que rodava bem e que sempre estava com a mecânica em dia. Considerava fundamental uma boa manutenção, pois parar de rodar significava menos do já parco dinheiro.
Quando terminaram de retirar a última caixa da carroceria, sentiu mais uma vez a satisfação dominá-lo, pois efetuara com sucesso mais uma entrega. O responsável assinou o recibo e deu-lhe um envelope. Conferiu as notas. Pagamento ok. Tratou de ganhar a estrada de volta. Um pouco mais à frente parou num boteco para um café.
Enquanto comia silenciosamente seu pão, foi abordado por um desconhecido. Cismou com os traços daquele rosto. Continuou comendo. Risonho e educado o sujeito afastou qualquer possível desconfiança que pudesse gerar nele.
Feita a aproximação, ele foi direto:
- Preciso que o senhor leve uma encomenda até a cidade de ... Aceita?
A viagem era meio longa, mas não poderia se dar ao luxo de recusá-la. Propôs um valor condizente com aquela distância e o desconhecido topou prontamente.
Seguiram até o local onde ele apanharia a tal carga. Quando estacionou descobriu tratar-se de caixões. Vazios, garantiu o desconhecido, rindo. Carregou o caminhão, apanhou as guias necessárias, recebeu as instruções do contratante e sentou-se ao volante. “Este rosto não me é estranho”. Fez um aceno de despedida e partiu.
A parte inicial da viagem foi tranqüila. Preocupava o trecho final, principalmente a subida da Serra do Nevoeiro, verdadeiro desfiladeiro sobre o qual contavam casos de acidentes horripilantes. Tomaria um cuidado redobrado para que todos, ele o caminhão e a carga, chegassem intactos.
No sopé da montanha parou e procedeu a uma verificação geral. Recusou subir na carroceria e olhar de novo para os caixões. Benzeu-se e assumiu de novo o volante. À medida que subia, a névoa começava envolver o entorno. Fechou os vidros aos primeiros sinais de arrepio provocados pela súbita queda de temperatura.
Em alguns trechos, a estrada estreitava-se muito, ficando espremida entre o paredão à esquerda e o precipício invisível à direita. Subia muito lentamente ouvindo apenas o barulho de motor. Sentiu um leve entorpecimento. Procurou manter-se alerta, pois não havia como estacionar para descansar por instante sequer.
Esfregou os olhos. Pelo retrovisor notou uma estranha fumaça atravessar o vidro traseiro da cabine e avançar rumo ao volante. Tentou girá-lo para a esquerda numa tentativa desesperada e instintiva de manter o veículo na trilha estreita, mas sentiu o estranho miasma jogá-lo para a direita. A densa névoa envolveu-o como um lençol.
Ao primeiro baque no precipício perdeu a consciência. O caminhão continuou despencando para ser mais uma carcaça no fundo invisível do vale-cemitério.
Em meio aos destroços apareceu alguém e estendeu a mão puxando-o para fora da cabine. Reconheceu a figura de imediato. Risonho, perguntou: “trouxe a encomenda?” Sem nenhum atordoamento falou num tom neutro:
- Agora me lembro! Você não é o...?
- Isto mesmo. Sou o alpinista que, assim como você, despencou deste despenhadeiro.
- Mas, você me contratou lá...
Rindo, ele disse com ênfase:
-Esqueça! Vamos apanhar nossas novas moradias aí na carroceria.