Roleta Russa
Há dias que Leandro pensava com freqüência e de uma forma aflitiva em seu amigo Lauro. Lembrava dos tempos das festas, das bebedeiras, dos jogos de futebol e principal da noite fatídica em que Lauro bêbado fazendo roleta russa com o revólver do pai estourou os miolos. O corpo sofrendo um baque, como se levasse um choque, a parede branca espirrada de vermelho e o grito desesperado e a agonia de tentar acudir quem não tinha mais salvação.
O tiro, o velório, o enterro, o desespero dos pais e o olhar de acusação de muitas pessoas foram imagens que nunca saíram de sua lembrança. E agora, elas vinham ainda mais intensas e torturantes.
Depois da noite em claro, Leandro sentou à mesa e tomou café, pensando no amigo morto há trinta anos.
Foi despertado de seu devaneio pela algazarra dos amigos, que não via há muito. Estava tão absorto em suas lembranças que nem reparou que seus conhecidos conservavam a juventude dos vinte anos. Foi sendo levado pelo corredor até a rua, onde embarcou num antigo veículo, o mesmo que os levava para as festas e diversões quando jovens.
O automóvel seguiu por uma rodovia reta, asfaltada, estreita, totalmente plana, cercada de uma vegetação rasteira, de um verde intenso. Não havia prédios, nem painéis de propaganda ou árvores. Há cada cinqüenta metros, Leandro via de cada lado da pista uma pessoa que já partira. O pai, a mãe, os tios, os avós, os primos e vários amigos e colegas de faculdade ou de profissão. Estavam imóveis e o observavam com um semblante triste.
Espantado, Leandro remexia-se no banco, tentando se comunicar com algumas daquelas pessoas. Pedia para o motorista parar, mas, não era atendido. Os amigos riam, davam-lhe tampinhas nas costas e na cabeça, como antigamente, enquanto que ele insistia em olhar os vultos na estrada e era acompanhado por seus olhares tristes a distância.
De repente, as pessoas sumiram e a paisagem ganhou um tom amarelado e logo a seguir marrom. Foi quando os amigos o deixaram num velho bar, onde não havia ninguém.
Leandro não estranhava a solidão do lugar. Não sentia medo. Mas, se questionava porque agia como se tivesse alguém a lhe guiar. Uma força que lhe atraía.
Viu o carro se afastar e ficou ali sem saber o que fazer. Não havia sol nem lua, noite ou dia, nem céu. Tinha a impressão de que era um personagem em um desenho numa folha de papel. Tudo era marrom. Um marrom claro, desbotado. Entrou no bar vazio. Um velho prédio de dois pisos em madeira, sem atendente ou clientes. Pensou em sentar, mas, viu a chegada de um ônibus antigo.
Lentamente, aproximou-se do coletivo e observou a face do motorista. Era um rosto duro, uma expressão fria como se ordenasse para que ele embarcasse.
Leandro caminhou pelo corredor, observando os passageiros que viajavam todos de cabeças baixas. Ninguém olhava pelas janelas e nem para o companheiro ao lado. Tinham as mãos entrelaçadas nos meios das pernas como se rezassem ou sentissem frio, mas, Leandro não ouvia nenhum som e não via nenhum lábio trêmulo. Estavam todos imóveis, resignados com o seu destino.
O coletivo não fez nenhuma parada, seguia devagar e aos poucos a paisagem árida ganhava uma coloração acinzentada.
O veículo parou em frente a um prédio de três pisos, antigo e mal cuidado, maior que um estádio de futebol. Uma enorme caixa, que apenas possuía uma porta e nenhuma janela. Sem nada ao redor.
Leandro entrou. Lá dentro fazia muito calor e de todos os lados vinham gemidos, sussurros, lamúrias e gritos desesperados de dor. O cheiro da morte era insuportável.
O visitante observou pessoas de todas as idades, umas grudadas às outras que andavam em grupos e em círculos, que deixavam seus rastros e partes de seus corpos que se decompunham no chão de uma terra cinza ou de um cimento que não foi usado, apenas tirado do saco e largado ali.
Alguns ainda possuíam a forma humana e se via bem seus corpos. Estes eram os que mais gritavam. Tinham à vista suas chagas: tumores, cortes, buracos de tiros, amputações.
Outras deixavam à mostra seus ossos e órgãos putrefatos. Choravam baixinho e caminhavam cansados como se procurassem um lugar onde pudessem depositar suas carcaças apodrecidas.
O terceiro grupo era formado apenas por espectros. Imagens distorcidas, corpos repuxados como se a gravidade quisesse enterrá-los e eles relutassem, desejando permanecer entre aqueles que ainda conservavam a forma humana.
Foi neste grupo, que Leandro encontrou Lauro que ao ver o amigo levantava o que sobrara de seus braços e implorava por ajuda. Leandro observou que ele caminhava com dificuldade. Já não possuía mais as pernas, apenas, um imagem borrada em seu lugar, como se alguém tivesse passado uma borracha escolar por elas e agora eram tragadas pelo solo.
Seu rosto começava a perder a forma. Ficava estreito como se uma mão de cada lado de sua cabeça a espremesse.
Leandro olhou para o enorme depósito. Só via corpos em decomposição. Pensou em ir embora, quando viu caminhando em sua direção Angelina, uma antiga namorada, que ele sabia ter morrido há poucos dias. Não se sabia se ela havia pulado ou sido atirada do vigésimo andar de um prédio no centro da cidade. Seu corpo foi encontrado na marquise e a polícia investigava a causa da morte.
Seu rosto apresentava uma coloração roxa. Seu crânio tinha um enorme buraco na parte traseira e seus cabelos em pé estavam endurecidos pelo sangue e a sujeira da laje que amparou seu corpo.
Angelina vinha apressada de braços abertos como se visse em seu antigo amor a sua salvação. À medida que ela se aproximava ia perdendo rapidamente sua forma. Sua cabeça se estreitava, seu corpo se desvanecia e se transformava apenas em uma luz. Leandro recuava assustado sem tirar os olhos da acelerada metamorfose que a mulher sofria. A boca de lábios grossos ganhava um contorno oval o mesmo acontecendo com seus olhos, até que Leandro pressentiu algo e ao olhar para o lado viu a face de Lauro. Seu rosto repuxado e vertical se transformou em uma caveira com enormes dentes, que procurava a jugular do amigo.
Um berro aflito ecoou pelo quarto e por toda a casa. Leandro acordou trêmulo, ofegante e suado. Olhou o dormitório. Tudo estava em ordem, menos, o despertador que havia derretido sobre a escrivaninha. Talvez um alerta de que a vida dia a dia se esvai.