A Ponte da Tribo - DTRL
A serpente rasteja pela floresta sibilando mistérios.
Do seu sangue brota a vida que mantém as árvores e animais.
Ela é filha da chuva e em seu semblante se vê os céu e as estrelas.
Seu grande poder vem de tempos remotos e temível é a sua ira.
Sua fúria desperta com desonra e ofensas.
Ela se levanta em toda a sua força, e não silencia até ter o que quer.
A serpente exige sangue.
Ela deseja sacrifício de vidas.
É o que sacia sua vingança.
Ubirajara Kewan, cacique da tribo tupi Amanayra entoava essas palavras para o grupo sentado ao redor da fogueira, ouvindo suas histórias antigas com toda a atenção. Sentado entres eles estava um jovem universitário chamado Herbert Ricardo, que achava que toda essa história de serpentes vingativas algo estranho para se contar para visitantes, mas não seria a primeira vez que não entenderia um costume indígena. Seu professor, Carlos, era quem era o perito nesse assunto. Ele era um pesquisador de tribos da América do Sul e estava fazendo uma pesquisa sobre os impactos do desmatamento na vida dos índios naquela região para fazer sua tese de doutorado. Quando Carlos recebeu o convite do cacique Ubirajara em uma de suas visitas à tribo para passar quantos dias quisesse na aldeia para realizar seus estudos, achou a oferta irrecusável. Era uma oportunidade de concluir sua pesquisa e talvez ajudar os índios que pareciam está realmente esperançosos de que o trabalho de Carlos os ajudasse a combater a destruição da floresta para explicar tamanha generosidade com eles.
- Tem uma cobra gigante por aqui? – perguntou Emerson, um dos cinco estudantes escolhidos pelo professor para ajudá-lo nas pesquisas na tribo.
- Não exatamente. Com serpente ele está se referindo ao rio Iguatuípa e o sangue que é fonte de vida é a sua água. Essa tribo idolatrava o rio como um deus. Quando aconteciam cheias, eles pensavam que o rio estava irritado e faziam sacrifícios para acalmá-lo – explicou Carlos, sempre muito didático.
- Espere um pouco. Eles faziam sacrifícios? Quero dizer, de gente? – perguntou Gabriela, outra aluna de Carlos.
- Não. Pelo menos não sempre. Eles sacrificavam animais. Eles jogavam o animal vivo no rio para ser levado pela correnteza – disse Carlos.
- Credo! O animal vivo? Isso é um pouco cruel.
- Isso por que você não ouviu algumas histórias de canibalismo. Selvageria é pouco – disse Natanael, se arrependendo logo depois, com o olhar de Ubirajara.
- Nosso povo nunca praticou o canibalismo – falou o índio.
- Claro. Eu sei. Vocês são diferentes. Vocês são legais.
- Natanael, por favor. Quer parar? – disse Gabriela.
- Tudo bem. Parei. Vou ficar caladinho.
Carlos se levantou do banquinho em que estava sentado se espreguiçando.
- A conversa estava ótima, mas temos que ir dormir. Vamos nos levantar cedo para caminhar até a base militar e de lá irmos embora.
Houve um burburinho de reclamações.
- Lá vamos nós dormirmos no início da noite. Mas eu não me importo mais. Estou exausto.
- Temos mesmo que caminhar até a base militar? Vamos ter que atravessar o rio Iguatuípa no caminho. – falou Herbert.
- Não vai dizer que ficou com medo com a história do Ubirajara, Herbert. O rio é uma serpente diabólica, uhuuu – falou Natanael, fazendo uma voz tenebrosa.
- Não fiquei. Só que fica longe. E os soldados da base não têm mais o que fazer como proteger as onças e as pererecas coloridas? Além do mais, como vamos atravessar o rio?
- Vamos garantir que vocês atravessem o rio – disse o cacique.
- É. E nós já falamos sobre isso. Já até entrei em contato com os soldados. Vamos para a base e ponto final – disse Carlos.
- Tudo bem. Não está mais aqui quem falou.
O grupo se levantou alguns pegando a cadeira em que estavam sentados e caminharam pelo grande pátio da tribo, de volta para a oca. Os índios que estavam sentados com eles também se levantaram e foram dormir. Em praticamente todos os lugares que Carlos e os outros estavam, os índios estavam juntos, perguntando se estavam bem, se queria alguma coisa, ou oferecendo algo para comer, o que era natural. Quando brancos, como eles chamavam, chegavam às tribos isoladas como aquela provocavam sempre uma grande comoção. Mas com aqueles índios especificamente era diferente. Eles abaixavam a cabeça quando alguém olhava diretamente em seus olhos. Ficavam de burburinho uns com os outros e se calavam assim que algum deles se aproximava. As índias pegavam seus filhos pelo braço se eles chegavam para brincar com alguém do grupo. Pareciam constrangidos, até mesmo desconfortáveis com a presença deles, ao mesmo tempo em que se esforçavam para agradar, oferecendo alimentos e jóias artesanais para as mulheres. Era como uma devoção triste e obsessiva.
A oca, uma grande tenda circular de palha, que os índios disponibilizaram para eles, estava com todo seu interior iluminado com uma lamparina que estava bem no centro, projetando as sombras das pessoas e redes armadas nas suas paredes de palha.
Emerson chegou perto da lamparina e simulou uma dança ao redor dela, pulando com um pé só e batendo a mão na boca, imitando os índios dos desenhos animados.
- Homem branco cansado. Dormir – ele falou, indo para sua rede.
- Seu desempenho indígena me comoveu Emerson – falou Carolina, deitada em sua rede de franjas de renda.
- Por favor, pessoal – disse Carlos – Comportem-se como adultos. Estou me sentindo professor de Colegial.
- Não vejo por que não podemos nos divertir um pouco – Herbert falou juntando as mãos e observando as sombras – Vejam. Estou fazendo um coelhinho.
- Herbert e suas infantilidades – disse Carolina.
- Alguém tem um repelente? Não estou encontrando o meu – falou Gabriela, remexendo em sua mochila.
- Eu tenho um. Pega! – Carolina jogou um frasco de spray amarelo para ela.
- Obrigada. Sem isso esses mosquitos iriam me carregar.
- Duvido muito. Não sei se eles iriam agüentar – disse Emerson.
- Por acaso está me chamando de gorda? – Gabriela jogou um cantil de água vazio nele.
- Desculpe. Estava só brincando.
- Vamos todos dormir logo que é o melhor que fazemos – falou Carlos, já deitado e de olhos fechados.
Herbert estava sentado em sua rede e se deitou para dormir como o professor sugeriu. Ele se aninhou debaixo do lençol como costumava fazer em sua casa, apesar de que aquela rede não se parecesse em nada com sua cama. Mas ele não se importava. Estava tão exausto que poderia dormir até no chão. Herbert se sentiu relaxar com a chegada do sono quando sentiu o intruso embaixo da coberta, se movendo com uma porção de perninhas pela sua roupa. Ele praticamente saltou da rede, cerrando os lábios para não gritar.
- Qual o problema, Herbert? – perguntou Natanael.
- Tem algum bicho na minha rede – Herbert pegou o lençol e o sacudiu até ver cair um besouro preto, com sua carapaça brilhosa sob a luz da lamparina.
- Eca! – disse Gabriela – Que inseto é esse?
- Algum tipo de besouro gigante – disse Emerson, ficando de pé – Poderíamos perguntar ao professor – ele se virou para a rede de Carlos, mas ele já roncava a sono solto.
- Quer que eu mate? – Natanael levantou o pé.
- Não! Deixe que eu solto lá fora – Herbert tirou um lenço de sua mochila, jogou ela por cima do besouro e depois pegou o inseto, o enrolando.
- Você tem medo que seja uma espécie ameaçada?
- Não. Só não quero ficar matando coisas dentro da nossa oca.
- Sim. A grande serpente pode ficar irritada com o assassinato de um besouro e querer se vingar – disse Natanael.
Herbert simulou uma risada sarcástica.
- Muito engraçado, Natanael. Devia ser comediante – ele disse antes de se virar e sair da oca. Herbert caminhou pelo pátio da aldeia iluminado pela lua e pelas estrelas arranjadas no céu em inúmeras constelações. A fogueira ao redor da qual eles estavam sentados ouvindo histórias da tribo ainda crepitava em uma profusão de chamas e faíscas que subiam lentamente, flutuando pelo ar. Herbert chegou à orla da mata e jogou o besouro na escuridão, sacolejando seu lenço. Depois se virou e começou a caminhar de volta para a oca, se aproximando da fogueira para se aquecer um pouco. Quando chegou bem perto, viu que o cacique ainda estava sentado no mesmo lugar, olhando distraidamente para o fogo. Ele vestia uma blusa de gola larga, uma calça desgastada e chinelo de dedo, e Herbert não sabia se devia está surpreso. Como a tribo Amanayra era uma tribo isolada, mantendo contato com o exterior basicamente com pesquisadores e com o exército, ele esperava que todos os índios andassem pintados com padrões na pele morena, usando apenas uma tanguinha e um adorno na cabeça feito de penas multicoloridas de aves exóticas. A maioria ainda andava assim, na verdade, ao não ser por Ubirajara, e Herbert não se sentia em condições de censurar o cacique por aderir à moda dos homens brancos.
Percebendo a presença de Herbert, Ubirajara levantou o rosto e olhou para ele por cima da fogueira com seus olhos negros profundos.
- Não devia está dormindo?
- Sim. Eu só fui jogar fora um inseto que estava na minha rede.
- Está tudo bem?
- Está. Não se preocupe. Era só um besouro inofensivo.
- Ah. Tenha um bom descanso. Se precisar de alguma coisa pode chamar.
- Obrigado. A propósito, estamos muito felizes com sua hospitalidade. Foi muito proveitoso para o professor. Vocês foram muito gentis.
Ubirajara voltou a olhar para a fogueira com um olhar triste.
- Vocês nos ajudam, nós ajudamos vocês.
Herbert imaginou que ele estava se referindo ao trabalho de Carlos que talvez mostrasse às autoridades a necessidade de se combater o desmatamento na região onde ficava a tribo.
- Com a pesquisa do professor se perceberá a urgência de se combater a destruição da floresta. Irão fazer alguma coisa a respeito – disse Herbert, apenas querendo animar o velho índio cabisbaixo. Na verdade, muitos outros trabalhos como o de Carlos tinham sido feitos e ignorados. O professor não era o primeiro e nem seria o último.
- É. Muitas árvores foram cortadas nos últimos anos. Animais desapareceram. A natureza tem sido ferida. Ela ficou ofendida, e uma grande ofensa exige uma grande reparação – disse Ubirajara como se recitasse um poema.
- É muito triste mesmo. Vamos fazer o possível para ajudar.
- Eu sei que vão. No começo eu tinha dúvidas, mas agora vejo que vocês são necessários – disse o cacique de uma forma que quase causou arrepios em Herbert – O Raoni vai guiá-los até a base dos soldados. Ele conhece o caminho.
- Ah, obrigado. Bem, tenho que ir antes que o professor dê por minha falta. Boa noite, cacique.
- Boa noite – ele falou.
Herbert se afastou andando rápido para a oca, o deixando sozinho novamente. O tom do cacique ressoando em sua cabeça.
- Onde você estava? – perguntou Carlos, acordado. Todos os outros estavam em suas redes, dormindo.
- Acabei demorando um pouco lá fora depois de jogar um besouro – disse Herbert sacolejando seu lençol para verificar se não tinha mais nenhum inseto e se deitando.
- Você não estava atrás das índias, não é?
- O quê?! Não! Que idéia!
- Ainda bem.
- Eu estava falando com o cacique. Ele ainda está lá fora.
- Ah. O cacique é um bom sujeito.
- Sim – concordou Herbert – O cacique é um bom sujeito – ele falou antes de adormecer, um sono profundo e sem sonhos.
Herbert acordou com o som de vozes e com sua rede sendo balançada por alguém.
- Levanta donzela.
Herbert abriu os olhos e viu Natanael segurando as cordas de sua rede.
- Todos já estão prontos. Levanta.
Herbert olha em volta. Além dele estavam na oca apenas Natanael e Emerson, que estavam arrumando suas mochilas. As garotas e o professor provavelmente estavam lá fora, esperando. Ele se levantou com pressa e foi verificar sua mochila, colocando um ou outro pertence que estava de fora. A lamparina ainda estava acessa no centro da oca, fornecendo alguma luz para o ambiente escuro. Herbert pôs a mochila nas costas, ajeitou o cabelo e saiu com Natanael e Emerson para o pátio da aldeia. Ainda não havia amanhecido e uma iluminação esverdeada tingia o horizonte acima da copa das árvores, anunciando o nascer do sol iminente. Alguns índios estavam ao redor do professor Carlos, de Carolina e Gabriela, e do cacique Ubirajara sem camisa e com marcas pintadas na pele se destacando na penumbra.
- Pronto. Estão todos aqui – falou Carlos, vendo os seus três alunos se unir ao grupo.
- Raoni também está pronto – Ubirajara chamou um índio mais jovem e magro também pintado com tintura preta e vermelha formando os desenhos sinuosos característicos dos amanayras – Ele guiará vocês pela mata até os soldados.
Carlos apertou a mão de Raoni, que não deu muitos sinais de simpatia, e depois a do cacique.
- Somos muito gratos por tudo. Eu desejo muita prosperidade para você e sua aldeia.
- Obrigado. Uma boa viagem para vocês. Desculpe por qualquer coisa.
- Imagina. Temos só o que agradecer.
Carlos cumprimentou outros índios e um a um dos estudantes fizeram o mesmo. Então, acompanharam Raoni, volta e meia se virando para acenar com gestos largos, se despedindo dos índios que responderam acenando timidamente. Antes de entrar na trilha da mata, onde estavam entrando os outros, Herbert olhou uma última vez para a aldeia que os tinha acolhido nos últimos dias. Cacique Ubirajara estava de pé com os outros índios, observando a partida deles. Não pareciam contentes, nem mesmo tristes. Apenas observavam melancólicos, como se lamentassem por algo. Herbert se virou sem acenar mais e seguiu os outros para dentro da mata que se erguia majestosa sobre eles. Professor Carlos e seus alunos sabiam pelo mapa que possuíam que o rio Iguatuípa não ficava longe da aldeia. Uma hora e meia de caminhada ou menos talvez bastasse para chegar e depois mais alguns minutos e estariam na base militar, mas a distância relativamente curta não tornava o caminho menos difícil. A umidade que a floresta exalava se unia ao calor tropical e transformava o ambiente em uma estufa em que eles sentiam desidratar em uma velocidade espantosa. Isso além do receio constante de encontrar um animal peçonhento. Em determinados trechos o caminho se afunilava de tal maneira que eles precisavam andar em fila indiana sobre uma trilha tão sutil que apenas um índio experiente como Raoni saberia distinguir.
- Então, Raoni. O que você é da tribo? – perguntou Natanael que não sabia ficar calado por muito tempo. Os outros ficaram a maior parte do tempo de boca fechada, poupando o fôlego.
- Pajé – foi só o que Raoni falou.
- Pajé – Natanael saboreou a palavra – É o curandeiro da tribo?
- E o principal responsável pelas cerimônias religiosas. Você ainda não aprendeu Natanael? – disse Carlos.
- Estava só puxando conversa. Falta muito, estimado sacerdote?
- Não.
- Por falar nisso – disse Carlos – Essas pinturas em seu corpo são apenas para rituais, não é? Vai fazer algum quando chegar à tribo?
Raoni não respondeu. Eles começaram a ouvir o barulho da água corrente e pouco depois eles saíram às margens do grande rio Iguatuípa. Fora da floresta densa viram que o dia estava claro, com nuvens pesadas cobrindo o céu e que eram refletidas nas águas, dando ao rio um aspecto cinzento. Eles o margearam e Raoni aponta para a ponte muitos metros à frente, um gesto desnecessário, uma vez que não seria difícil de enxergar a estranha construção que ela era. A ponte era uma passarela de madeira muito longa que ligava uma margem à outra do rio e era sustentada por troncos que emergiam como colunas das águas. De suas extremidades partiam duas paredes de varas e galhos entrecruzados, uma de cada lado, que se uniam no topo, formando ao todo uma espécie de túnel.
- Que coisa estranha – disse Carolina – Por que essa ponte é assim?
- Costume da nossa tribo – disse Raoni.
- Então é um costume muito novo, porque eu nunca ouvi falar – disse Carlos.
- Achei que iríamos atravessar de canoa – disse Emerson.
- É tempo de cheia do rio. Sua correnteza é forte e fica difícil remar. É perigoso – explicou o pajé enquanto caminhavam para a ponte.
- Quando a construíram? – perguntou Carlos.
- Há poucos dias.
- Já tinham construído uma assim antes?
- Não – disse Raoni, claramente incomodado com as perguntas – Já chegamos.
Eles tinham chegada na entrada da ponte. De perto viram que ela era toda amarrada com cordas ou fibras de árvores e da base até a metade das duas paredes tinham também varas atadas na horizontal, e assim se seguia em toda a sua extensão.
- É seguro? – perguntou Gabriela.
- Sim – disse Raoni – Construímos com todo o cuidado.
- O importante é que vamos atravessar – disse Carlos, observando a ponte.
- E o que estamos esperando? Vamos entrar – disse Herbert.
O professor entrou primeiro, pisando com cuidado como se não confiasse completamente. Em seguida entraram Emerson, Natanael, Herbert, Carolina e Gabriela.
- Você não vem, Raoni? – perguntou Carlos para o índio que ficou parado.
- Não agora. Atravessem vocês primeiro e me esperem do outro lado. Tenho que voltar. Esqueci uma encomenda importante para os soldados.
- Tudo bem. Mas vá depressa. Não podemos demorar.
- Vou correndo – disse Raoni – Podem ir. É seguro – ele esperou eles caminharem um pouco mais pela ponte antes de sair. O professor e os outros começaram a andar hesitantes pela ponte, ouvindo com temor a correnteza bater nos troncos que a sustentavam. Poucos minutos se passam e estavam na metade, andando um atrás do outro, mas não muito juntos com medo de concentrar o peso sobre o piso de madeira. Natanael esticou o braço para tocar nas varas atadas e continuou andando, passando seus dedos por elas como um garoto na rua passando suas mãos por um portão.
- Esses índios fizeram um bom trabalho. Ainda não tinha visto algo assim.
- Para mim também é a primeira vez – admitiu Carlos – Vou perguntar para os soldados quando chegarmos se eles sabem como eles construíram.
- Você acha que eles tiraram toda essa madeira da floresta? – perguntou Gabriela.
- Duvido muito. Parece-me que tiraram todos esses troncos de árvores caídas – disse Carlos.
- Então estamos caminhando sobre uma ponte de madeira podre?
- Ainda não caímos na água. Acho que é seguro – ponderou o professor.
- Gente, olha isso! – Carolina se aproximou da parede e observou encantada através das brechas entre as varas a imensidão das águas do rio, sumindo abaixo da ponte para reaparecer do outro lado. A visão da correnteza dava a sensação de se estar navegando mesmo estando em um ponto fixo, o que poderia dar vertigem se olhasse por muito tempo – É lindo. Os índios foram espertos. Essa ponte pode atrair muitos turistas.
- Eu não contaria com isso – disse Carlos – O fato é nós não somos turistas. Temos um trabalho a fazer e precisamos nos apressar. Daqui a pouco Raoni volta e ainda estaremos aqui – ele passou a caminhar mais depressa sobre a ponte para a outra ponta, seguido de seus alunos e pelos baques de pés sobre a madeira. Conforme se aproximavam eles percebiam algo de estranho no final do túnel e foi quando chegaram que viram o que era. O que seria a saída da ponte estava bloqueado com um emaranhado de pequenos troncos amarradas, exatamente como era feito o revestimento da ponte.
Emerson empurrou o bloqueio e procurou nos cantos alguma tranca ou dobradiça.
- Isso é uma porta? Não abre.
- Acho que não é uma porta. Está tudo amarrado – Natanael chutou e foi repreendido pelo professor.
- O que você pensa que está fazendo?
- Tentando nos tirar daqui.
- Chutando tudo?
- Eu não vejo outra forma. Você vê?
- Não. Mas acho que isso deve ter uma explicação plausível. É melhor esperar o Raoni voltar – Carlos tirou sua mochila de suas costas doloridas – Ele falou para esperar.
- É. Mas não disse que não teria saída. Isso está muito estranho.
- Concordo com o professor – disse Gabriela – Vamos esperar o Raoni. Ele vai nos tirar daqui e talvez nos explique o que está acontecendo.
- Pessoal, acho que o índio deve vir logo – Carolina continuava observando através das brechas nas paredes – O rio está enchendo.
- Raoni falou que era época de cheia – disse Herbert.
- Sim. Mas o rio está enchendo muito rápido. Venham ver.
Os outros se aproximaram e também observaram. De fato, o rio estava enchendo rapidamente. A correnteza rugia contra as colunas, as encobrindo enquanto a superfície da água subia cada vez mais próxima da base onde pisavam. Mais um pouco e a água tocaria seus pés. Natanael se afastou e desferiu outro chute contra a grade de troncos amarrados que bloqueava a saída.
- Natanael! – esbravejou Carlos.
- Temos que sair daqui, professor. Ou você quer ficar aqui quando o rio encher? Quem vai me ajudar a quebrar isso?
- Eu ajudo – Emerson se juntou a Natanael e ambos começaram a chutar a grade, o que não estava surtindo muito efeito. Eles estavam se preparando para sincronizar um chute mais forte quando a ponte estremeceu fazendo-os parar.
- Mas o que foi isso?
Outro tremor sacolejou a ponte como se ela tivesse sofrido um golpe violento em suas bases. Todos se seguram onde puderam ou se agacharam para não cair.
- O que houve?
- Não vamos entrar em pânico – disse Carlos – deve ter sido alguma coisa carregada pelo rio que bateu nas colunas da ponte.
- Então deve ter sido algo muito pesado – disse Herbert.
- O professor está certo. Olhem – Gabriela apontou para além do revestimento de galhos e varas, na direção em que corria o rio, e eles viram um pesado tronco de palmeira saindo de debaixo da ponte e sendo levado pela correnteza – Foi só um tronco.
Em seguida houve outro golpe tão forte quanto o último seguido de outros três que fizeram oscilar a ponte inteira. Mais troncos de palmeira apareceram de debaixo da ponte seguindo o curso das águas barrentas.
- Você acha que tem alguma madeireira usando o rio Iguatuípa para transportar madeira? – Perguntou Emerson.
- Não é impossível – disse Carlos.
- O estranho é que não vejo os troncos vir. Só vejo depois que passam pela ponte – disse Carolina.
- Tem certeza?
- Tenho. É só ficar observando na direção em que vem o rio. Não há nenhum tronco.
Dois outros tremores ocorreram um após o outro e depois um terceiro diferente dos anteriores. Não foi como um golpe. Pareceu como se a ponte estivesse cedendo, as madeiras rangendo e estalando como se sobre elas tivesse sido posto um peso extra, o que fez o professor entender o porquê que não viam os troncos chegar, apenas irem embora.
- São as colunas.
- O quê? – disseram os alunos.
- Esses troncos. Eles não estão descendo o rio. Eles são as colunas que sustentam a ponte que estão se soltando.
- Como assim estão se soltando? – perguntou Emerson.
- Parece mais é que estão sendo arrancadas por esses estrondos – disse Herbert.
- Como isso é possível? – perguntou Carolina.
- Não sei, mas é o que está parecendo.
- Isso quer dizer que a ponte vai cair? – disse Gabriela.
Natanael chutou o bloqueio com mais força.
- Não vamos esperar para ver. Se essa ponte afundar vamos morrer afogados aqui dentro.
As palavras pareceram motivar o restante do grupo a se juntar a Natanael nas tentativas de quebrar o emaranhado de varas e troncos amarrados de uma forma que não conseguiam desatar que estava ao redor deles. Até tentaram cortar as cordas, mas eles não tinham nada afiado o suficiente em mãos, a não ser o canivete de Carlos que não estava adiantando muito. O professor se afastou um pouco pela ponte vendo se mais outras colunas tinham se soltado até que uma onda de baques sacolejou a ponte seguidas vezes. Carlos se segurou nos galhos, assim como Gabriela. Carolina que tinha subido na grade para tentar fazer uma abertura na parte de cima caiu sobre Emerson que a tentou segurar. Natanael e Herbert se deitaram no piso esperando a ponte parar de tremer.
- Essa foi mais forte que as outras – disse Gabriela, sem se soltar.
Ao tentar se levantar do chão, Herbert percebeu que algumas marcas que pensou serem apenas imperfeições na madeira do piso eram na verdade letras rudemente talhadas, formando uma escrita que ele não compreendia.
- Professor, veja isso – ele chamou.
Carlos se aproximou e olhou para as letras talhadas que Herbert indicava.
- São palavras.
- Sim – concordou o professor – Não tinha reparado. E está escrito em tupi.
- É mesmo? E o que significa?
- Quer dizer algo como “a serpente exige sangue. Grandes ofensas, grandes sacrifícios”.
O rosto de Herbert ficou pálido. A conversa que teve no dia anterior com o cacique veio imediatamente em sua cabeça e ele recordou a amargura com que Ubirajara falava sobre a destruição da floresta e sobre eles serem necessários.
- O que foi Herbert? Parece que viu um fantasma – disse Natanael.
- Estão nos ofertando – Herbert falou sem parar para pensar o quão absurdo pareceria.
- Do que está falando?
- Ontem falei com o cacique e ele disse que estão ofendendo com o desmatamento. Achei que ele estava falando de uma maneira genérica da natureza, mas ele falava do rio. Acho que eles estão no oferecendo para o rio, com medo de sua fúria.
- Não fale bobagens – disse Carlos.
- Sabia que tinha ficado impressionado com a história do cacique, mas não pensei que tanto – disse Emerson.
- Não é bobagem. O jeito dessa ponte, o comportamento estranho dos índios, agora tudo faz sentido. Essa ponte é uma grande arapuca.
- Você deve está delirando – disse Carolina – Além do mais, o professor pode ter traduzido a frase errada. Se é que isso é uma frase.
- Creio que seja – disse Carlos.
- E não fizemos nada contra os índios. Por que eles tentariam nos matar? – disse Gabriela.
- Eles devem estar desesperados.
A ponte estremeceu outra vez e eles a sentiram rebaixar, cedendo.
- Arapuca ou não, vamos ter que sair e por aqui mesmo. Não sei se seria seguro voltar – Emerson pediu para os outros se afastar – Fiquem longe, preciso de espaço para pegar impulso e tentar quebrar esses paus.
Os outros se afastaram e esperaram. Emerson, que era o mais robusto, olhou para a grade de varas, agora distante vários metros.
- Tome cuidado – disse Gabriela.
- Não esquenta. Eu tenho um bom chute – disse Emerson. Ele respirou fundo e disparou correndo pela ponte, se sentindo como se estivesse se deslocando dentro de um tubo de pau-a-pique. Quando chegou ao fim saltou para dar o golpe contra a grade. Troncos e galhos se despedaçaram em um estrondo gigantesco que sacudiu a ponte inteira e ecoou pela floresta como o rugido de um monstro, mas isso não foi por causa do chute de Emerson. Logo que ele tinha tocado os troncos houve uma explosão como o de um gêiser embaixo da ponte no ponto onde ele estava e uma imensa coluna de água subiu levando consigo o rapaz, bem como os pedaços da construção cuja madeira de que era feita voou para cima e para todos os lados. A coluna começou a se desfazer e os respingos caíram como uma chuva sobre os outros entorpecidos com a cena. Toda aquela parte da ponte começou a afundar como se fosse puxada pela água que descia.
- Emerson! – gritou Carolina, se levantando com um impulso de correr para lá, embora já fosse tarde, mas foi puxada para trás pelo professor.
- Vem. Temos que sair daqui.
Eles correram pela ponte na outra direção, não se importando com os estalos da madeira querendo ceder sem bases para sustentá-los. Eles sentiram a ponte inclinar e oscilar, tirando a firmeza de seus passos. Estavam chegando à metade da ponte quando viram outra coluna se erguer do rio como uma tromba d’água à frente e se inclinar sobre a ponte para cair do outro lado, formando um arco. Vendo boquiaberto através do emaranhado de varas e troncos, Herbert se lembrou do movimento de baleias ou golfinhos saltando em alto mar. Exceto que aquilo não se parecia em nada com nenhum desses animais. Estava mais para um tentáculo colossal que apertava o abraço sobre a ponte. Ou uma serpente que fechava o cerco ao redor de uma presa.
- Continuem correndo! – gritou Carlos para os alunos paralisados. Porém, a coluna se desfez e a água caiu sobre o rio e sobre a ponte, entrando pelas inúmeras brechas no revestimento, percorrendo-a como uma corredeira. Eles foram atingidos pela água e caíram. Outra coluna se ergueu bem mais perto e arrancou um grito de Gabriela, quando se inclinou e atingiu a ponte que estremeceu uma última vez e repousou sobre a superfície do rio. Todos os troncos que serviam de coluna tinham sido quebrados e arrancados, deixando a ponte suspensa como uma embarcação sobre as águas. O tentáculo de água se desfez e mais água se espalhou, os atingindo e os empurrando para traz. Eles se seguraram onde puderam para não serem levados pela corredeira que percorria o interior da ponte como se tivesse vida própria. Eles ficaram submersos por alguns instantes, sentindo a forte correnteza os puxar até que ela cessou e quando se deram por si estavam de pé novamente, com a água até a altura do peito. A ponte estava afundando e mais um pouco eles estariam condenados, presos ali dentro como pássaros indefesos em uma gaiola que era engolida pelo rio.
- Estão todos bem? – perguntou Natanael, tossindo.
- O professor! – disse Carolina – Onde está o professor?
- Professor Carlos! – eles chamaram. Natanael mergulhou para ver se o professor não estava inconsciente, preso no fundo.
- Aqui! – ouviu-se uma voz familiar ao longe e uma mão acenou para eles na outra parte da ponte.
- Professor!
Carlos se esforçou para chegar até eles, ora nadando, ora correndo, tentando vencer a resistência da água, mas ele estava sem forças depois de ser arrastado pela correnteza. Atrás dele a água sobe como uma serpente empinada, pronta para dar o bote.
- Professor, cuidado!
Essa foi a última coisa que ele ouviu antes da tromba d’água descer sobre ele e o fazer desaparecer nas águas. Carolina começou a chorar compulsivamente.
- Vem. Corra para o outro lado. Vou tentar pegá-lo – Natanael segurou o braço dela.
- Não. Aquilo vai te pegar também – Carolina o puxou e assim todos começaram a correr na outra direção, para onde tinham entrado na ponte. Eles sentiram-na sacolejar como se algo muito grande se movesse por baixo dela.
- Está fechado! – disse Gabriela que vinha a frente do grupo. Eles olharam entorpecidos para os troncos sobrepostos subindo do rio, bloqueando a saída como estava a outra ponta da ponte. Mesmo assim, tentaram nadar ou correr para lá, mas não chegaram a alcançar o bloqueio recém colocado. A ponte inteira foi puxada e a parte que estava ligada a terra se rompeu em estalos de dezenas de troncos se quebrando. Um segundo depois a ponte estava descendo a correnteza, feito uma balsa a deriva e eles tentaram se segurar, vendo a mata se distanciar e passar diante deles. De repente sentiram um solavanco e a água começou a escoar. Gabriela que estava na ponta foi levada pela água e caiu suspensa, se segurando nas tábuas onde pisavam. Os outros sentiram o corpo pesar e quando perceberam a ponte estava subindo e se inclinando no ar.
- Socorro! – Gabriela gritou. Mas nenhum de seus amigos estava em condições de ajudar. Herbert estava agarrado à grade que revestia a ponte. Natanael tentava firmar seus pés e continuar se segurando, não conseguindo suportar seu próprio peso e o de Carolina que se agarrava em sua mochila.
- Não estou agüentando, Carolina. Tente se segurar na ponte.
- Não posso. Se te soltar eu vou cair.
A água subiu como um braço embaixo e se aproximou de Gabriela, pendurada. Ela gritou e foi envolvida dentro da tromba d’água que a pegou e se fechou sobre ela. Depois voltou para baixo levando a garota consigo para o fundo. A ponte ficou completamente na vertical como se estivesse sendo segurada pela sua parte submersa e a coluna de água voltou a se materializar. Herbert não sabia se era a água em seus olhos ou o esforço para se segurar que estivesse o fazendo ver coisas, mas ele podia jurar que a ponta da tromba d’água formou perfeitamente a cabeça de uma serpente, nítida e vigorosa como se ficasse mais forte a cada morte que causava. E também como uma serpente ela cortejou a ponte reta no ar, dando uma volta ao seu redor e se enrolando nela, envolvendo metade da ponte em um turbilhão de água onde as tábuas e paus estalavam, se soltando uns dos outros. Carolina agitava seus pés tentando se firmar em algo, mas Natanael não suportou mais se segurar. Ele se soltou e os dois caíram, sumindo para sempre no turbilhão de água do rio Iguatuípa.
- Não! – Herbert gritou. Acumulando as últimas forças ele se solta de sua mochila, uma alça de cada vez e sobe para a ponta da ponte que começou a inclinar e descer, tragada pelo rio. Ele viu o rio agitado de cima e percebeu que o movimento estava involuntariamente o levando para mais próximo da outra margem, onde um galho se projetava sobre o rio como uma tábua de salvação. Com a adrenalina e o puro terror pulsando em suas veias, Herbert só esperou a ponte descer mais um pouco para pular o mais forte que pode, conseguindo alcançar o galho. Ele ouviu um estalo e se sentiu cair. Herbert achou que cairia às margens do rio, mas ao invés disso o galho não totalmente separado da árvore balançou como um cipó e com isso ele foi levado para dentro da mata, caindo cheio de arranhões e sangramentos. Herbert se levantou dolorido e correu. Atrás dele a ponte sucumbiu completamente, afundando no rio agitado, possuído por uma tempestade que brotava de seu interior. Outra tromba d’água se ergue dos caos das águas, inconformada por perder sua última presa e ela avança para a floresta, se desmanchando em uma onda que se alastrou como os rosnados de toda uma horda de bestas infernais.
Os soldados da base do Comando militar na mata esperaram pelo professor Carlos e sua comitiva a manhã inteira. No final da tarde, eles enviaram dois oficiais à tribo, coisa que acontecia com pouca freqüência, perguntar se eles tinham saído. Os índios informaram que os tinham levado até o rio onde deveriam esperar pelo guia que retornou para a tribo buscar algo de que havia se esquecido e quando ele voltou, eles não estavam mais lá. Os militares fizeram uma busca pelo professor e seus alunos pela região e encontraram Herbert agarrado a uma árvore, em completo estado de choque. Levaram-no de helicóptero para o hospital da capital, balbuciando sobre rios e serpentes gigantes, e todos supuseram que os delírios eram por causa da desidratação. A hipótese de todos era que Carlos e os alunos haviam tentado atravessar o rio que acabou enchendo rápido e os levando com a correnteza. As cheias repentinas seriam uma conseqüência do desmatamento, e o desaparecimento do grupo causou a comoção necessária para finalmente fazerem de toda a extensão do rio Iguatuípa uma reserva ecológica. Como Herbert se salvou ninguém soube. Herbert não comentava sobre o ocorrido, mas isso não significa que ele algum dia esqueceria a manhã na ponte. Só o que ele não sabia era que o rio também não se esqueceria dele. A oferenda que escapou. Herbert acordaria e iria dormir sem saber que em algum lugar, em uma floresta, um rio onde não se soube mais de eventos estranhos, corria tranquilamente, e ficaria lá, sempre à sua espera.