O DIABO NÃO PERDOA
[...] Atormentada pelo medo e pela angústia continuou seu caminho. Não sabia para onde estava indo, não tinha norte, por vezes parecia não ter saído do lugar desde que se iniciara aquela estúpida peregrinação.
E o fogo parecia aumentar. O calor castigava. O cansaço chegava e o desânimo era total. Que lugar era aquele? Quantas sombras, quantos fantasmas, quanta estranheza nesse mundo?
Como se despertasse de um sonho viu-se diante de uma camada de luz, que anunciava um grande portão dourado, após alguns poucos degraus. Pensou finalmente ter chegado ao lugar certo. Tentando se aproximar, viu de longe que o lugar era bonito, de paisagens tranquilas, águas correndo como pequenos rios, e muita nitidez em tudo, um grande jardim. Uma visão deslumbrante! Era ali o lugar onde desejaria morar, sempre. Reinava nele uma enorme paz.
- Quem é você, e o que quer aqui?
Perguntou a voz carregada de doçura.
- Devo estar sendo esperada, sou filha do Rei, e aqui estou para assumir meu lugar!
Pedindo gentilmente que aguardasse, o jovem recepcionista do grande jardim entrou, fechando em seguida o portão. Instantes depois, abrindo-se novamente a grande porta de grades de puro ouro, a voz declarou:
- Deve haver algum engano! Consultamos a nossa lista, e aqui não há lugar para você.
- Santo anjo, uma chance, por favor! Preciso falar com o Rei!
O jovem explicou que os atendimentos eram pré-agendados e que certos tipos sequer tinham acesso ao Rei. A checagem feita no seu histórico, de acordo com a lista das maldades cometidas, não lhe dava direito a subir o primeiro degrau que fosse, imagine falar com o Rei. Entrar no céu, nem pensar!
- Deixa-me refrescar sua memória listando alguns dos seus deslizes: agiu de má fé contra o próximo; perseguiu subordinados; abusou do poder; usou o corpo, templo do Rei, para conquistas pessoais; mentiu; dissimulou; mascarou; infernizou; fez crescer o ramo da psiquiatria; atentou contra o outro; usou o nome do Rei em vão (e não foram poucas vezes); e tentou enganar o diabo, entre muitos outros.
- Eu tive meus motivos e, em alguns casos, fui injustiçada! Posso me explicar, se me der uma chance.
- Perdão! Muitas chances de arrependimento lhe foram dadas, mas nenhuma aproveitada. Pelas suas atitudes demonstrou estar disposta a ser do outro lado, então é para lá que deve ir.
E viu sumir tudo: o anjo, o portão, os degraus, o jardim maravilhoso... e outra vez as sombras, a escuridão, o medo, o calor, e o cheiro de enxofre.
Seguiram-se momentos de muito terror, de grandes turbulências e desassossego até que, finalmente, um novo portão lhe foi indicado.
Desta vez não havia luz, mas negras imagens, de monstros com várias cabeças feitas em mármore. E pelos arredores do largo portão preto, chamas e mais chamas flamejando com veemência.
Ali provavelmente seria o inferno. Pensou que, embora a recepção não fosse a merecida, ao menos ao ingressar teria chances de se dar bem, aliando-se ao encardido. Buscou forças para não se entregar ao medo. Aquela era a segunda e última porta. Não havia outras portas, era uma ou outra: céu ou inferno.
Desta vez não foi um representante quem a atendeu, mas um bicho de três chifres pontiagudos, orelhas de abano, que de dentro expulsavam muitos pêlos, olhos flamejantes, bafo de onça e uma cara de cão. Sim, o capeta!
- Esquece, o inferno não lhe quer!
- Mesmo depois do tanto que servi?
- Ser humano idiota! Ser humano medíocre! Acreditou mesmo que eu comprava almas?
E deu risadas sem fim, tripudiando sobre a decepção daquela criatura.
Riu tanto que caiu no chão, se contorcendo todo.
- Aqui só há espaço para um demônio! Um demônio, entendeu?
E bateu o portão com tanta força que a atirou longe dali.
De volta ao ponto de partida, ela já não suportava mais a infinita jornada a que fora submetida. Buscou pensar em bondade, arrependimento, ou algo de sentimentalidades, como faziam muitos dos que conheceu. E lembrou que se tivesse um coração, talvez fosse mais fácil.
Mas pensou no que diziam sobre a generosidade do Rei e decidiu recorrer aos anjos do grande jardim. Mentalmente formalizou um pedido de socorro, apelando para a misericórdia dos que habitavam o lado do bem.
Um portão secreto abriu-se, envolto em luz e brilho. “Bom sinal”, pensou ela. E ficou aliviada ao ver se aproximar o que pensou ser o todo-poderoso. “Funcionou! Ele acreditou no meu arrependimento e vai me deixar entrar!”
- Criatura abominável!
E ela ficou abismada, nunca imaginara aquele soberano tão duro!
E continuou o Rei:
- O que espera para o seu fim, depois de tanta maldade e tanta persistência em ser cruel, sua vaca? Pensou que ia ser fácil? Quer tentar ser boa, agora? Tarde demais!
Enquanto falava, era dominado por uma ira visível. O rosto ficava vermelho e, por um momento, pareceu ter um cheiro ruim.
- Você é uma cadela, filha da puta! Não merece piedade de ninguém!
Deve ir para o inferno, isso sim. É lá o seu lugar, esfregando o chão que o diabo pisa e lavando a privada por ele usada.
Não se conteve mais, disparou em gargalhadas. Era impossível não rir da fragilidade daquela criatura que um dia se achou poderosa e agora nada mais era do que um brinquedo do cão. Isso mesmo, disfarçado de Rei, o demônio continuava castigando a cria enjeitada.
- Idiota! Como você é idiota!
E ria, ria muito, ria de fazer gosto, divertindo-se graças à dor daquela pobre e falida criatura que a ninguém pertencia. Humilhou-a incessantemente. Adorava esse tipo que faz e acontece e depois que sai do mundo padece perambulando sem encontrar destino algum.
- Você é pior do que eu. Tê-la aqui poderia acabar com meu reinado! Sua cobra! Some daqui, agora!
Sentindo-se vítima, arrasada, massacrada, entregou-se ao pranto. Nunca fora tão rejeitada, tão humilhada. E de nada agora lhe servia ser má, não tinha mais ninguém a quem molestar. Era só ela e aquele vale de sombras. Sentia-se perdida, largada, sem rumo.
Para piorar a situação, viu-se diante de um cenário com bichos nunca vistos antes. Animais medonhos com pés na cabeça, olhos nas costas, chifres nos joelhos. E uma multidão de pequenos morcegos se aproximava pronta para o ataque, do qual não se livrou embora tenha sido voraz a sua luta. Sentindo arder cada abocanhada viu descer pelo corpo o seu sangue. Uma dor insuportável a fez pensar no quanto o mal destrói, no quanto se padece ao infringir as leis.
Não mais resistindo aos bichos que a devorava, clamou pela clemência do Rei. Precisava do seu amparo, da sua magnitude e do seu amor, embora nunca soubera amar ao próximo.
E como um milagre, surge a sua frente ele, agora sim, o Rei. E com ele a paz, o fim do suplício e do sofrimento. Sentiu o corpo livre dos insetos, limpo, sem as manchas do sangue que escorria instantes antes, e sem qualquer marca deixada pelos pequenos agressores.
E o Rei disse:
- Veja bem: quando a criei, meu projeto era que fosse ao mundo para amar e servir. Idealizei para você uma família, uma casa, um trabalho, tudo como manda o figurino. Agiu de forma equivocada e acabou se perdendo. Mas, como no nosso jardim reina a generosidade e o amor, pensei numa solução para você. Mas desta vez precisa aprender a tempo, pois não terá uma segunda chance, ou melhor, uma terceira.
E o inferno fez sua maior festa! Fogueiras e mais fogueiras foram queimadas e utilizaram-se os melhores caldeirões, música alta, muita bagunça e muita bebida, sem tempo para acabar. Graças ao Rei o inferno não teria batendo a sua porta aquela ameaça que assustava o próprio demônio. Sua volta à terra, para outra vez tentar ser gente, era a melhor notícia que chegava aos ouvidos do diabo nos últimos tempos.