SOMBRAS DO VELHO MUNDO (Pte 2)
Conto extraído do livro "Sombras do velho mundo" , deste mesmo autor, com lançamento previsto para Novembro de 2013.
- Fantasmas não existem!
Era o que Seu Gustavo gritava pela quinta vez naquela semana para sua esposa. A pobre senhora reclamava mais uma vez do choro de uma criança à noite, - talvez uma menina, pelo muxoxo – dizia ela.
Como não tinham filhos, devido à um problema de esterilidade mútuo – ela não conseguia produzir óvulos que resistissem muito tempo, ele perdera sua produção para uma sífilis mal curada – ele atribuía a nova paranoia da esposa, o mesmo nível de interesse que dedicou às anteriores: Nenhum.
O fato é que Dona Lurdinha sofrera a vida inteira por ser – como ela mesma dizia – uma “árvore seca”. Casaram jovens lá pelos idos de 1917, e ainda agora, vinte e cinco anos depois, sofria por não ter dado ao seu amado, o mínimo do papel de uma boa esposa, que pela norma da época era gerar filhos, arrumar a casa, e manter a boca calada sempre.
Como dona de casa era exemplar. As vizinhas eram unânimes em considerar a casa dos dois um mimo. Lurdinha descontava no linóleo as frustrações e apostou no fogão para segurar seu Gustavo, que já naquela época gostava de uma boemia.
As mesmas vizinhas se esbaldavam com as estórias de que Gustavo já devia ter uma meia dúzia de filhos espalhados pelo mundo, já que era um morenão atlético.Algumas dessas fofocas chegavam até os ouvidos de Lurdinha, e ela perdera as contas de quantas amizades riscou de seu caderninho.
Discreta, tomava seus sopapos sem dar um pio, e sabia que se estava apanhando, era porque ele ainda gostava dela. A lógica matrimonial da época era essa, e ai de quem discordasse. Era muito melhor apanhar e continuar casada, do que – Deus me livre – perder o homem para uma sirigaita da rua. E Seu Gustavo gostava de uma farra que era uma beleza.
Os anos foram passando, e a falta de crianças correndo pela casa,foi suprida pelas viagens ao redor do mundo que os dois costumavam fazer pelo menos duas vezes por ano. Seu Gustavo progredira na firma de despachos aduaneiros em Santos, onde moravam desde que vieram de São Paulo em lua de mel, e como gerente-geral tinha dinheiro suficiente para viverem sem maiores aborrecimentos numerários.
Volta e meia ele sumia, ficava uma ou duas semanas fora, mas em seguida voltava como se nada tivesse acontecido. Como se simplesmente tivesse sido abduzido por alguma nave espacial extraterrestre, e reconduzido dias depois pelos amigáveis aliens, ao aconchego do seu lar.
Ela fazia vista grossa, assim como toda mulher daquela época. Era melhor os maridos terem “amigas” na rua, mas voltarem para casa, do que se perderem por aí, diziam.
Chegavam alguns ao cúmulo de trazerem seus filhos com as amantes para almoçar em casa junto com os filhos da “matriz”.Uns eram tão caras de pau que traziam até as amantes, que muitas vezes acabavam se tornando amigas das esposas.
Lurdinha chorava que dava gosto sempre que via a filharada das vizinhas correndo pela rua. Não na frente de todo mundo, que ela não era louca, mas de noite, com a cara chafurdada no travesseiro. Rezava para Nossa Senhora um dia lhe dar a dádiva de ser mãe, de poder sentir a emoção de acalentar um pequeno.
Não foi uma nem duas vezes que pegou Seu Gustavo olhando a molecada correndo atrás de pipa, jogando pião e bolinha de gude na rua. Via como seus olhos se perdiam contemplando os garotos, admirando as meninas. Ele nunca dissera nada, mas ela sabia que ele amargava também uma imensa frustração por não ser pai.
Uma vez, em viagem à Portugal, Lurdinha arriscou:
- E se a gente adotasse uma criança, Gustavo?
Durante muito tempo não soube como não levou um bofete em plena Trás dos Montes, mas a verdade é que Gustavo ficara furioso com a ideia e encurtou a viagem em duas semanas por causa daquele comentário.
Ciente da ignorância cometida com tão dedicada e exemplar companheira, dois meses após o incidente, Gustavo trazia a notícia de um grande negócio que acabara de fechar. Um imóvel esplêndido, frente à praia em uma área nobre da cidade. Estava radiante e sua empolgação também a contaminou, sendo que em menos de um mês estavam já morando na nova casa.
Casarão - diga-se de passagem – uma verdadeira recém-construída mansão nos moldes ingleses, bem pertinho da praia, onde antes fora um grande armazém de propriedade do porto. Gustavo comprara por um preço muito bom, numa área em plena expansão imobiliária, já com vários benefícios da empresa The City of Santos Improvements & Company Ltd, mais conhecida como “City”.
Era imensa para um casal sem filhos, mas ideal para um casal que queria impressionar a elite santista. Estavam próximos ao efervescente burburinho dos novos ricos da região. Gustavo era agora sócio-proprietário da empresa, e Lurdinha administrava com olhos de puma as finanças do casal.
Escondida, contribuía com algumas instituições de caridade que cuidavam de crianças, e sempre que mentia sair para passear com as amigas em alguma confeitaria, estava mesmo era em alguma destas casas, em contato com as crianças que a vida esquecera.
Ainda era uma bela mulher, acabava de entrar nos quarenta, e sentia mais do que nunca o chamado da natureza, clamando por sua maternidade. Gostava de todas as crianças que mantinha contato. Se pudesse, as levaria em bondes lotados para sua enorme mansão, e as criaria com muito amor e carinho.
Tentava em vão puxar o assunto novamente com Gustavo, mas o marido estava sempre às voltas com os jornais, vendo o movimento dos navios, o período de safras, os contingentes de trabalhadores necessários. Não havia como penetrar naquele coração petrificado pela decepção e convencê-lo a adotar uma criança.
Mesmo cercada de riqueza em sua nova morada, continuava a chorar todas as noites.
Foi aí que começou a ouvir o choro.
Fraquinho, gostoso, infantil, vindo de um dos vários quartos vazios. No começo, pensou ser um sonho. Um sonho onde era guiada por um chorinho até uma bela criança de bracinhos abertos e sorridente. Avisara o marido, mas ele - ela começava a ter certeza - devia estar pensando que ela enlouquecera.
Então, uma noite, levantou-se da cama, atravessou o assoalho nu e frio do corredor e entrou no quarto de costura que dava para a chácara dos Monteiro, nos fundos. Andou até a janela e examinou a escuridão. Ouvindo nova batida, forçou a vista.
Viu-se de pé, encostada ao batente da porta, olhando o imenso corredor que se estendia de leste a oeste no andar superior. O alto pé direito do imóvel e as imensas janelas vitorianas, não lhe causavam nenhuma má impressão, mas naquela primeira noite em que ouviu choro trazido pelo vento, correu depressa para debaixo das caras cobertas de seda.
Ficou alguns minutos tentando definir racionalmente o que eram aqueles sons. Primeiro, lembrou que as armações das janelas, devido à pequenos e imperceptíveis empenamentos, deixavam o vento fluir através de minúsculos frisos entre o batente e a armação.
Dependendo do vento que estivesse encanando da praia, poderia ser que gerasse singulares combinações sonoras. Assovios compassados, leves batidas ritmadas, que um cérebro um pouco mais imaginativo, poderia transformar no que quer que fosse.
Sentiu que alguém estava olhando para ela. Espantada, virou a cabeça para trás.
Nada.
Talvez algum ramo da folhagem externa, se desprendera e ficara preso a alguma dessas janelas, roçando e emitindo lúgubres dissonâncias. Era o mesmo princípio – pensava ela – dos gramofones e vitrolas, ou seja, um material ao percorrer um sulco, gerava atrito e este por conseguinte ruído, que devidamente amplificado resultava em notas musicais.
Simples.
Dormiu algumas noites utilizando este ardil. Somente dias depois, se deu conta de que não se pode enganar os sentidos por muito tempo.
Era uma noite chuvosa e fria de maio. O mar de ressaca despejava uma miríade de gotículas cristalizadas nos janelões da casa. Os criados foram dormir mais cedo, e Lurdinha se viu sozinha na imensa residência, já que Gustavo viajara para o Nordeste à negócios. Ela sabia que “negócios” eram estes, mas pouco se importava.
Aprendera a minimizar as ausências do marido com a leitura. Subiu para o seu quarto e vestiu sua camisola adquirida de um mascate na Espanha. Cobriu-se e esticou o braço para pegar seu exemplar de “Histórias fantásticas” de Edgar Alan Poe. Adorava seus contos tétricos e uma noite daquelas era perfeita para se deliciar nos labirintos sombrios da imaginação de Poe.
Abriu e folheou o elegante exemplar. Escolheu o conto “A queda da casa de Usher”.
Nele, um homem é chamado por um amigo que havia muito tempo não via até sua casa. Lá, percebe que seu velho colega de adolescência, tornara-se vítima de uma doença única, uma enfermidade que lhe aguçava todos os sentidos aos mais extremos limites. Um simples som, uma tênue iluminação, um simples toque, era o suficiente para desencadear infames sofrimentos à pobre alma.
Além disso, existia um segredo a respeito de sua irmã...
Não soube se impressionada pelo texto, ou simplesmente ao acaso , ouviu novamente o choramingo fraco que ouvira das outras vezes. Só que desta vez não despertava de um sono profundo, mas estava alerta, com todos os sentidos despertos e em prontidão.
A voz, tinha certeza absoluta, era real, podia ouvi-la, senti-la!
- É uma criança – repetia ela para si mesma, estática sob os finos edredons.
A penumbra causada por apenas um bico de luz aceso no quarto, não a deixava ver claramente o corredor através da porta entreaberta do quarto.
O choro parecia mais intenso, mais perto.
Fechou os olhos e enfiou a cabeça debaixo das cobertas, iniciando uma sequência de Ave-Marias e Pai Nossos, que só foi interrompida porque ela teve a nítida, a mais perfeita impressão de que alguém sentara na ponta da sua cama.
E agora?
Entrou em pânico e por reflexo, pois já não atinava mais que reação tomar, puxou o cobertor até a altura do queixo.
Soltou um grito de terror.
- Pare com isso! - gritou, tapando os ouvidos com as mãos.
Nos seus pés, encolhida, querendo se aconchegar, estava deitada uma menina de no máximo uns oito anos de idade, loira como uma fada.
Puxou novamente as cobertas, dessa vez derrubando-as no chão, tamanho o seu desespero e quase ela também caindo no chão.
Quando olhou novamente, a menina havia sumido.
Estranhou que nenhum dos cinco empregados da casa, não tivessem vindo ao seu socorro, tal foi o seu grito. Ninguém, nem mesmo os cachorros em torno da casa, se manifestaram.
Não foi um sonho, isso ela sabia, mas também como uma criança havia conseguido entrar na casa e subir até seus aposentos?Não era filha de nenhum empregado, pois nenhum deles tinha filhos morando juntos na casa. Apenas Adelaide, a cozinheira tinha filhos, mas que já eram grandes e soltos pelo mundo. Os demais, eram jovens e solteiros.
Não tinha como.
Tomou coragem e decidiu descer da cama. O livro que estava lendo, voara até o outro lado do quarto e ela se abaixou para pegá-lo. Verificou se nenhum dano havia sido causado pelo arremesso e constatou apenas uma pequena raspada na parte inferior da capa. Recolocou-o de volta na estante de mogno.
Talvez sua mente estivesse lhe pregando peças, completando as lacunas que sua vida real apresentava, como a frustrada maternidade, a solidão compulsória. Já havia lido sobre isso. Em “Patologias mentais de senhoras de tenra idade” de um tal de Dr. W.G. Phillips, ficou sabendo que mulheres na sua faixa de idade, estavam mais sujeitas a “poluções noturnas” e “catatonias mesmerizáticas”.
Não tinha a mínima ideia do que o tal doutor queria dizer com aquelas doenças, mas Gustavo lhe garantiu que eram doenças de senhoras que não tinham muito o que fazer e ficavam se preocupando com a vida dos outros, o que ela não acreditou logo de cara, mas preferiu não entrar em debate, pois o marido saboreava uma suculenta feijoada e da última vez que ela lhe interrompera no meio da sua degustação, feijões pretos, tufos de couve manteiga e farofa, voaram pelos ares.
- É isso, estou ficando louca. Louquinha da silva.
O susto havia passado e as faculdades mentais estavam restabelecidas por pura auto sugestão. Decidiu ir até a cozinha na parte térrea para buscar uma jarra de água. Toda aquela maluquice lhe dera sede. Decidiu também que por um bom tempo não pegaria o livro de Poe novamente. Era fraca das ideias para livros como aquele, como Gustavo sempre gostava de frisar.
Caminhou até a porta e a abriu, projetando seu belo corpo para fora do quarto.
Voltou como se uma mola gigante a tivesse catapultado para dentro.
A menina estava parada em frente à um dos janelões, olhando para a chuva do lado de fora.
- Não tenha medo – disse ela. - Eu não vou te fazer mal.
Seu vestidinho esvoaçava enquanto ela olhava em direção ao quarto. Lurdinha espiava em choque, a menina que estava de pé no fim do corredor. Fechou a parte de cima da camisola segurando com as duas mãos apertadas ao peito e pé ante pé, foi saindo porta afora.
- Pode vir moça. Eu só tô olhando a chuva. Tá tão bonita...
- Que..quem é você? - perguntou Lurdinha se segurando no beiral de uma das janelas.
- Meu nome é Cosmina, moça. Eu também moro aqui.
- Como é?
- Isso. Eu também moro aqui. É que eu nunca quis incomodar a senhora, por isso nunca deixei a senhora me ver. Tem bastante tempo que eu fico olhando a senhora chorando quando vem deitar. Fico com bastante pena, mas não queria assustar. Sei que eu assusto as pessoas que olham pra mim.
- Não é verdade...quer dizer...você é uma menina muito bonita. É que...
Sem saber o que dizer, Lurdinha tentava agora discernir o que era que estava no seu campo de visão. Ao mesmo tempo em que via uma linda menina, branquinha como um floco de neve, via também um espectro maltrapilho, sujo e judiado pela passagem do tempo. Como no conto de Poe, algo de muito errado estava presenciando, mas não podia descrever o que, tamanho o horror que lhe paralisava os músculos.
- Assusto sim, moça. Não precisa mentir não. Minha irmã sempre diz que só se pode mentir se for para poder arranjar comida, de outra forma não. É feio.E ela não gosta de gente feia...
Criou coragem e chegou mais perto da menina. Conforme caminhava em sua direção, sentia sua camisola se esvoaçando em câmera lenta, enroscando-se em suas pernas e braços. Seus longos cabelos negros grudavam ao suor em sua face e ela tinha dificuldade em retirá-los.
Cosmina a observava e sorria. Um sorriso de criança, mas de uma criança que já vira muita desgraça em sua pobre vida.
- Não tenha medo de mim também Cosmina. Meu nome é Lourdes, mas você pode me chamar de Lurdinha. É como todos me chamam.
- Lurdinha, muito bonito.
- O seu nome também é muito bonito Cosmina, mas, você disse que tem uma irmã. Ela é mais velha, onde ela está?
Cosmina virou o rosto novamente de encontro à janela. Encostou a testa no vidro e esticou a mão direita para Lurdinha, que a segurou sem se dar conta. Uma estranha sensação percorreu todo o seu corpo,assim que tocou a delicada pele da menina.
De repente, já não estava mais ali, na sua casa enorme de frente à praia.
Estava num navio, sujo, lúgubre e desolador. Ratos escalavam corpos e paredes, devorando-se uns aos outros, pois a comida acabara. Vozes de homens gritando, ondas batendo impiedosamente no casco do navio.
A um canto, duas sombras encolhiam-se agarradas uma à outra. Podia ver seus rostos. Uma era a da menina que segurava sua mão agora. A outra...
Um espasmo, um clarão e já não estava mais no navio, mas numa praia, uma espécie de píer. Via muitas pessoas desembarcando, todas muito pálidas, maltrapilhas e doentes. Alguns caíam da rampa, sendo recolhidas de qualquer jeito pelos homens que descarregavam seus pertences. Muitos saíam enrolados em lençóis rotos. Eram os que não tiveram tempo de serem jogados ao mar.
Ninguém sorria como nas fotos dos periódicos de antigamente. Nenhuma alegria em seus rostos, só desolação e doença. De novo viu as duas sombras esgueiraram-se navio afora. Estavam cadavéricas e muito, muito sujas. Amparavam-se uma na outra enquanto caminhavam, a mais velha esforçando-se mais para carregar a mais nova. Eram elas, Cosmina e sua irmã...
- Ekatherina! - exclamou Lurdinha, ao mesmo tempo em que a garota lhe encarava e tudo se esmaecia novamente.
- É a minha irmã moça – sussurrou Cosmina ao ouvido de Lurdinha. - Ela teve que ir embora, mas me protegeu antes de ir, cuidou de mim e me ensinou a dar o troco nos homens maus.
Mais um choque percorreu o corpo de Lurdinha, e dessa vez ela estava num local que lhe era conhecido, mas que ela não lembrava de ter já realmente visitado. Era como um Deja-vu de alguma outra vida, de alguma outra entidade. Tudo rodava e ela via o teto, o chão, as paredes, o teto novamente.
Quando tudo parou de girar, tinha uma visão panorâmica, como se estivesse pendurada em alguma viga no alto. Era um salão imenso, e lá embaixo, alguns homens reuniam-se para fazer alguma coisa. Pareciam antigos estivadores, pela aparência de suas roupas.
Sua respiração cessou quando viu o que estava acontecendo.
- Oh meu Deus, oh meu Deus...FAÇA ISSO PARAR!
Mas não parou, e ela viu quando os homens, um a um , violentaram Cosmina, quase a matando.
Sua perspectiva agora havia mudado, e ela estava no mesmo nível deles, a poucos metros do que estava se desenrolando. Gritava, mas sua voz não era ouvida pelos selvagens. Via o corpo franzino e angelical de Cosmina ser sucessivamente profanado.
Tudo de repente escureceu. A mão negra da noite eterna se abateu sobre seus olhos e dessa vez, não foi apenas um choque que percorreu seu corpo, mas uma força tal qual um relâmpago cortando-a ao meio, dividindo suas células.
Um caleidoscópio soturno e aterrador corria ante seus olhos e uma força, uma entidade acima de sua compreensão entrou em cena. Pôde ver pedaços dos corpos dos homens serem arremessados contra as paredes. Vísceras serem arrancadas sob uma força descomunal. Um sopro do inferno que lufava a rápidos galopes e varria toda a podridão que presenciara.
Um deles foi poupado, e Deus tivesse tido piedade e que tivesse lhe dado o privilégio de ser um dos primeiros a morrer.
O espectro o cobriu e Lurdinha pôde ver a vida esvaindo-se dos olhos do fascínora. Sua pele esbranquecer e perder totalmente o brilho. Seus olhos ficarem vermelhos, como duas chamas desafiando milhões de demônios. Sua boca se escancarar em infinita agonia enquanto lhe era sugado o elixir da vida.
Viu quando a sombra se desvencilhou do corpo já ressequido. Em seguida o pegou e o despedaçou como fizera com os anteriores.
Novamente sentiu seu corpo ser eletrocutado e desta vez parecia que havia sido jogada para cima e para baixo, por mãos titânicas e mais uma vez, recolocada em terra firme.
Viu um rosto, uma das mulheres mais lindas que já vira em toda a sua vida. Uma mulher encantadora e sensual, que tinha um olhar magnético, capaz de enfeitiçar homens e mulheres, quem quer que fosse. Era jovem ainda, mas seus olhos não disfarçavam sua dor.
Tinha sede de vingança.
Ao voltar a si, viu que Cosmina ainda estava do seu lado, só não segurava mais a sua mão. Quis abraçá-la, mas Cosmina foi quem se afastou dela. Sabia que não podiam passar daquele contato que tiveram.
- Eu, eu sinto muito – gemeu Lurdinha olhando ternamente para a menina. - Eu não sabia...meu Deus, quanto sofrimento...
- Tudo bem moça, já passou. Agora eu nem sinto mais nada. Eu só fico chorando porque a Eka não vem me buscar, me levar para o outro lado. Ela conseguiu voltar e me esqueceu aqui.
- Voltar para onde meu bem? Ela se foi, descansou?
Cosmina sorriu e Lurdinha viu um pouco de malícia em seu sorriso.
- Deixa pra lá moça, minha irmã sabe se cuidar. E o presente que ela me deu antes de ir embora...bem, eu também consigo me cuidar.
Conversaram por mais algumas horas, sobre coisas que no dia seguinte de manhã, Lurdinha não conseguia se lembrar. Quando faltava pouco para os primeiros raios do dia se erguerem no horizonte, Cosmina se despediu.
- Foi muito bom ter alguém para conversar moça. Fazia muito tempo que eu não me sentia tão feliz.
- Eu também gostei muito Cosmina, mas para onde você vai agora? Você disse que mora aqui, mas onde?
A menina ficou na ponta dos pés e deu um beijo no rosto de Lurdinha, que se assustou em sentir como eram frios os lábios da menina.
- Eu vou ficar bem moça. Se você quiser, amanhã eu volto e lhe conto uma coisa.
- Que coisa?
Cosmina observava nervosamente a claridade começar a avançar pelos ladrilhos do extenso corredor. Um olhar de visível pavor tomou conta do seu semblante.
- Amanhã – disse ela. Cuide para o seu marido não voltar, moça. Ele pode não gostar de me ver aqui.
Do mesmo modo que entrara silenciosamente na casa, o espectro ou fosse lá o que fosse, desaparecera diante dos olhos de Lurdinha. Pelo menos era o que ela achava que tinha acontecido quando acordou horas depois.
Os empregados estranharam que a patroa não madrugara como sempre fazia. Do contrário, meio dia passado e ela ainda não tinha descido. Talvez estivesse doente, pensaram.
Mas não estava. Lurdinha passava e repassava todas as cenas da noite anterior. Para se certificar que não estava qualificada para uma temporada no Pinel, relembrava cada momento, desde o primeiro sinal de presença da menina, até a viagem que fizera ao tocar a sua mão.
Não tinha dúvidas de que tudo o que viu tinha sido real, e sem perder tempo, tratou de se certificar se Gustavo não voltaria aquela noite para casa.
Pediu a ligação à telefonista, e alguns minutos depois, atendia um apressado Gustavo, que lhe disse que talvez dali um dia ou dois mais, estaria voltando para casa.
- Ótimo – exclamou ela. Assim teria total liberdade em seu segundo encontro com a misteriosa garotinha.
Na mesma noite, Cosmina mais uma vez, a esperava no corredor. Estava mais animada, e falante. Lurdinha não acreditava como os empregados sequer ouviam as gargalhadas que as duas soltavam, enquanto conversavam sobre tudo.
Lurdinha evitou mencionar sua irmã, e Cosmina parecia saber disso e levava a conversa para onde queria. Pode-se dizer que Lurdinha sentia em seu coração uma sensação que jamais sentira. Uma chama acesa que poderia incendiar qualquer coisa que tocasse. Uma vontade louca de abraçar e cuidar daquela menina como se fosse a sua tão aguardada filha.
Ficou um bom tempo alimentando essa ideia, até que Cosmina, de súbito, invadiu seus pensamentos.
- Eu sei o que você está pensando Lurdinha, e o que eu posso lhe dizer, é que não, eu não posso ser quem você deseja, infelizmente.
Os olhos da menina pareciam duas imensas bolas azuis penetrando a mente de Lurdinha.
- Mas, por que? - clamou Lurdinha.
- Você sabe porque. No fundo você sabe, só não consegue compreender. É normal – e sua voz aqui adquiriu um tom de uma pessoa muito mais velha – é uma reação normal. Muita gente morreria só de me ver, fugiria de mim como um cão danado, sentiria asco e terror ao meu simples toque. Mas você não. Você tem dentro de si a bondade que eu e Eka perdemos há muito tempo. A esperança de que pudéssemos conviver com as outras pessoas como se nada tivesse acontecido. Só que não é verdade.
Lurdinha tentou dizer alguma coisa, mas um simples gesto de mão de Cosmina a impediu de continuar.
- Você é boa moça, e eu quando lhe vi pela primeira vez chorando no escuro, pensei em lhe dar o meu presente, igual o que minha irmã me deu. Mas acontece que eu não tive escolha, era isso ou a morte e ela sabia disso. Foi um presente diferente, que exige muito de quem ganha. Pensando bem, se ela me perguntasse se eu queria, eu diria que não, mas ela não fez isso, não podia.
Os olhos de Lurdinha se encheram de lágrimas.
- Eu vou embora moça, e você nunca mais vai me ver. E pode ter certeza que a minha irmã também não. Ela tem muita coisa pra fazer agora. Mas eu queria lhe dar outro presente, uma coisa que eu sei que você quer faz tempo, mas que por medo, medo de ser quem você realmente é, ainda não conseguiu.
Abriu a mão e nela estava um papel bem dobrado. Lurdinha o pegou e quando ia abri-lo, Cosmina a segurou.
- Amanhã – continuou ela. - Amanhã quando você acordar, talvez não se lembre muito bem dessa nossa conversa, mas vai olhar este papel e então saberá o que fazer.
Lurdinha concordou com a cabeça e abraçou a garota. Dessa vez, não sentiu nada, nenhum choque. Apenas o corpinho franzino e gelado de Cosmina junto ao seu.
No dia seguinte acordou aos berros dos empregados. Desceu correndo as escadarias, quase se enroscando na camisola e foi recebida pelas duas empregadas da limpeza, aterrorizadas.
- Senhora...os cachorros, que horror!
Correu até o canil e antes que o empregado responsável pelos cachorros pudesse evitar, viu o motivo da gritaria.
No meio do cercado onde eles ficavam durante a noite, dois dos três pastores alemães estavam mortos. O terceiro, estava acuado no canto, rosnando e salivando em abundância. Estava completamente ensanguentado, como se tivesse sido parido naquele instante. O cuidador agarrou Lurdinha antes que ela entrasse canil adentro.
- Não entre lá senhora – disse ele com pavor nos olhos. - Algum bicho entrou no canil essa noite e sugou todo o sangue dos coitadinhos. Eles estão durinhos, sem uma gota de sangue!Só o Targo escapou mas acho que ele foi contaminado, tà espumando e quase arrancou um pedaço da minha perna.
Horrorizada, Lurdinha se desvencilhou aos berros do zeloso funcionário e entrou no canil. Targo apenas a encarava, havia parado de rosnar e ela viu – não sabe como mas conseguiu ver – em seus olhos - que ele testemunhara algo terrível e ao mesmo tempo conhecido para ela. Chegou mais perto e acariciou o bicho. Ele começou a gemer e a esfregar sua cabeça nas mãos dela.
Pouco abaixo da orelha esquerda, duas perfurações purgavam um sangue escuro e mal cheiroso. Os olhos do cão estavam avermelhados e perdidos.
Ao sair do canil, ordenou ao funcionário que sacrificasse Targo e queimasse os três cães. Sabia o que eles haviam sofrido e não tinha esperança de vê-lo correr novamente pelo terreno.
“Nem vivo e muito menos morto”.
Duas horas depois, descia do carro em frente à uma modesta casa na periferia de Santos. Pediu ao motorista que desligasse o carro e a esperasse. Foi recebida por uma educada senhora que a convidou a entrar e lhe ofereceu um cafezinho muito bom.
A princípio, não entendeu direito que espécie de casa era aquela, do endereço rabiscado por Cosmina no pedaço de papel. Assim que a senhora se pôs a falar, tudo se esclareceu.
- Nós somos uma entidade ligada à Santa Casa de Misericórdia. Nosso trabalho aqui, é dar abrigo à crianças abandonadas, vítimas de lares desfeitos ou de tragédias maiores. Contamos com o apoio de pessoas como a senhora, para que possamos manter todas bem alimentadas e saudáveis até que uma boa alma as adote. Elas são alfabetizadas e batizadas de acordo com os preceitos da Igreja Católica. A senhora é católica, não é?
- Si...sim – respondeu Lurdinha saindo do transe. - Minha família toda é católica.
O rosto da velha mulher se acendeu e ela tagarelou por mais uma hora.
Espantou-se mesmo quando descobriu que Lurdinha não fora até lá para fazer uma doação, mas para adotar uma criança.
Uma bela e saudável criança, um menino, a quem deu o nome de Cosme, em homenagem a uma velha amiga, respondia quando lhe perguntavam.