A REVOLTA DOS DEFUNTOS (EC)
 
 
Era um pequeno vilarejo com menos de cinco mil habitantes. Havia uma pequena igreja, um supermercado (shopping nem de longe haviam visto um). O único hospital que os atendia ficava na cidade mais próxima, distante sessenta quilômetros dali. Crime não existia, desde o assassinato do Deputado Estadual, eleito pela cidade, há mais de trinta anos. Ele havia sido acusado de estuprar uma garota da cidade, de dezesseis anos, muito bonita. O irmão da moça cobrou a conta.
 
O pequeno cemitério que abrigava todos os mortos da região fora construído na década de cinqüenta, estava velho e mal cuidado. Mas um novo Prefeito fora eleito; jovem, ousado e interessadíssimo em fazer campanha para Governador, nas próximas eleições. Reuniu sua Assessoria, no dia da posse e decidiu que a cidade merecia um novo cemitério. Maior e muito mais bonito, com campas de mármore (para os ricos, claro)! Isto iria lhe render muitos votos. Havia coisas mais urgentes para a cidade, mas ele cismou que o cemitério seria a melhor solução para o progresso daquele vilarejo.

- Se cumpádi Odorico fez, em Sucupira, eu também posso (costumava dizer).

 
A coisa toda foi feita por baixo dos panos; em menos de um ano a obra estava pronta. Todo iluminado ao redor, parece que chamava os próximos habitantes, por sua beleza e magnitude.  (Eu nunca entendi porque, em qualquer lugar, eles capricham nos cemitérios, com túmulos caríssimos e toda a pompa. Será que isso importa para os moradores)?
 
Mas, encurtando a conversa, todos que morriam daí pra diante, eram sepultados no novo cemitério, o povo fazia questão. E o antigo, ficou abandonado, ninguém mais entrava lá nem mesmo para visitar os seus entes queridos. (O povo tem o governo que merece)! Certo dia, os defuntos, moradores do velho cemitério, insuflados pelo ex-Deputado, assassinado, resolveram se rebelar. Nem visitas eles recebiam mais, isto não podia ficar assim!
 
- Vamos sair em passeata, pessoal! A gente vai até a casa do Prefeito, resolver essa questão.
 
Levantaram de suas covas, atravessaram os portões trancados do cemitério e saíram às ruas, fazendo panelaço e cantando um refrão que dizia:

“Prefeito, bundão... Vai virar um defuntão...!”

Era uma noite escura, feito breu, e a cidade iluminou-se toda com as velas que seguravam nas mãos. Os defuntos mais antigos levavam lampiões a gás. Carregavam bandeiras e cartazes com palavras de ordem, alguns palavrões, escritos pelos zumbis de baixo nível, cujas almas deviam estar nas profundezas. (Não me perguntem onde conseguiram todo este material, pois não saberia explicar).
 
Os moradores da cidade acordaram com o barulho ensurdecedor e saíram às janelas, para verem o que estava acontecendo. A cena era de amedrontar o mais destemido que se vangloriava de não ter medo de fantasmas.
 
Quando chegaram ao portão da casa do Prefeito, cantavam e dançavam cada vez mais alto, até que a autoridade saiu na sacada, de pijama e nada entendendo do ocorrido. Voltou ao quarto, colocou os óculos de grau e, mesmo não acreditando no que presenciava, entendeu tudo. A defuntada toda estava ali, protestando e ele não entendia a razão daquilo.  
 
Chamou os seguranças e ordenou que eles descessem o cacete naqueles imbecis que ousaram vir até sua casa e o acordaram no meio da madrugada. Toda a polícia da cidade, armada de fuzis com balas de borracha, gás lacrimogêneo e cacetetes, tentou dispersar os manifestantes, mas todos os golpes caíam no vazio. Era como se não houvesse ninguém ali. Quando perceberam que era gente morta há tempos (ou não), abandonaram as armas e fugiram dali, correndo mais do que se estivessem em uma competição de Olimpíada. Não se soube mais notícias deles.
 
- “Prefeito, bundão... Vai virar um defuntão!”
 
Invadiram a casa do Prefeito e botaram fogo em tudo. Foram até o cemitério, novinho em folha, quebraram túmulos, revolveram a terra e quase acabaram com o “elefante branco” que o Prefeito construíra com tanta esperança de que fosse o seu passaporte para o Governo do Estado.
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Ninguém sabe, até hoje, onde o Prefeito se escondeu. Uns dizem que ele teve um enfarte, de tanto medo, naquela noite e que os defuntos o levaram para o velho cemitério. Outros, que ele saiu voando em sua caminhonete 4X4, levando mulher e filhos, isolaram-se em um país da América Latina e que ele não quer nem ouvir falar de política.
 
O novo Prefeito da cidade tomou uma decisão que agradou a todos, inclusive aos defuntos rebeldes. Reformou o novo cemitério e mandou transferir todas as ossadas do antigo para lá. Assim todos ficaram acomodados em um mesmo local, recebiam visitas dos parentes e amigos e nunca mais se ouviu falar em novos manifestos, reivindicações e passeatas dos defuntos.


Este texto faz parte do EC
"A revolta dos defuntos"
Saiba mais sobre o tema:

http://encantodasletras.50webs.com/arevoltadosdefuntos.htm